Coluna no Globo
Mirian Leitao
Em dez anos, os desmatadores destruíram no Brasil 260 mil hectares na Mata Atlântica, ou 2,6 mil km, o equivalente a duas cidades do Rio; e 176 mil km na Amazônia, área maior que toda a Inglaterra. Em sete anos, foram 85 mil km de cerrado; 4,3 mil km, no Pantanal; e 16,5 mil km, na caatinga. E o que o Congresso está discutindo não é como parar o crime, mas como perdoar os criminosos.
Esse é o principal ponto que torna o projeto do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) um equívoco. Ele leva o Brasil na direção oposta do que se deve ir. Em cada ponto, a proposta acelera na contramão. O que os poderes da República poderiam estar considerando é: dado que o atual Código não impediu essa destruição toda, o que fazer para que as leis possam ser cumpridas?
Os rios brasileiros estão assoreados, muitos já morreram, os rios que cortam o interior do país viraram latas de lixo e esgoto. As histórias são tão frequentes e antigas que nem cabe repetir aqui. A discussão urgente é como proteger os rios, aumentar o saneamento básico, limpar as correntes de água, garantir que a faixa de mata ciliar seja recomposta. Mas o que a proposta de novo Código Florestal estabelece é como reduzir a proteção aos rios, diminuindo o tamanho das Áreas de Proteção Permanente (APP).
O Brasil tem tido assustadores problemas de deslizamento de encostas nas cidades, nas estradas. Elas servem como um alerta sobre o cuidado com o uso de terrenos muito íngremes. A lei de 1965 cria limites ao uso de terrenos com 45 graus de inclinação e protege o topo dos morros. O novo Código reduz a proteção dessas áreas frágeis.
Imaginemos dois proprietários rurais na Amazônia, no Cerrado ou na Mata Atlântica, ou qualquer outro bioma brasileiro, como o nosso belo e frágil Pantanal. Um preservou a reserva legal guardando o percentual da
propriedade estabelecido por lei, respeitou as APPs e não contou essas áreas nas reservas legais. Se já entrou na propriedade com uma área desmatada maior do que o permitido, replantou espécies da região. O outro desmatou com correntão, incendiou parte da floresta, fez corte raso ou qualquer uma dessas formas primitivas e predatórias de ocupar a terra. O segundo terá as seguintes vantagens: pode continuar usando as áreas "consolidadas" sem pagamento de multa, tem 30 anos para recompor a reserva legal de forma voluntária, pode usar espécies exóticas, pode replantar em outro local, pode fazer lobby junto ao governo estadual para reduzir a área a ser protegida. Pode continuar explorando o topo dos morros, reduzir a área de proteção aos rios e contar a APP como parte da reserva legal. Como se vê, será compensado, anistiado, incentivado. E quanto ao primeiro? Ao que cumpriu a lei? Ora, esse deve procurar o primeiro espelho, olhar para seu próprio rosto e dizer:
"Cumpri a lei, fui um otário!"
No século XXI, diante de tantos exemplos dos riscos da degradação ambiental, o que o Brasil deveria estar fazendo? Discutindo seriamente como aumentar a proteção ao meio ambiente. Mesmo os que não acreditam nas mudanças climáticas sabem que o meio ambiente é essencial para a qualidade de vida. Em vez de uma discussão serena e atualizada, o relator do projeto de mudança do Código Florestal, deputado Aldo Rebelo, nos propõe uma sequência delirante de explicações persecutórias. O mundo estaria conspirando contra o desenvolvimento brasileiro através de
malévolas organizações infiltradas no país, impondo aos cidadãos nacionais convicções exóticas sobre a necessidade de evitar o desmatamento e inventando evidências científicas de que o clima está mudando.
Até quem tenha muito boa vontade com este tipo de raciocínio alienista precisa saber como explicar algumas contradições: muitas das ONGs são genuinamente brasileiras, o maior beneficiário de um meio ambiente sadio
e protegido é o próprio brasileiro, o clima está de fato mudando perigosamente, os países desenvolvidos estão impondo para si mesmos metas de redução de emissões maiores do que as que o Brasil espontaneamente se dispôs a cumprir.
O Brasil é uma potência agropecuária. Os números crescentes de produção, produtividade e exportação derrubam a tese de que o Código Florestal está impedindo essa atividade econômica no país. Há pouca chance de que continuemos avançando em mercados mais competitivos se a decisão for permitir mais desmatamento, tornar mais frouxas as regras, controles e limites. É bem provável que ocorra o oposto: que esse passe a ser o principal argumento para imposição de barreiras contra o produto brasileiro, seja ele produzido de forma sustentável ou não.
O principal problema do Código não é ser excessivamente rigoroso. Se fosse, o Brasil não teria as estatísticas que tem. É que as leis não têm sido respeitadas. Mudar a lei para que o Código seja cumprido é tão inútil e perigoso quanto tentar reduzir a incidência de febre nos pacientes com infecção, estabelecendo que febre é apenas de 39 graus para cima. O racional a fazer com a febre é tratar a infecção; o melhor a fazer com nosso persistente desmatamento é impor o respeito à lei e ao patrimônio público; e não suavizar o Código, anistiar quem não a cumpriu e postergar seu cumprimento.
Em Minas, há um desmatador profissional que tira a mata dele e dos vizinhos, pequenos proprietários, a quem paga alguns trocados. De tanto ser denunciado e multado, ele já aprendeu o truque. Agora, ele mesmo se denuncia, paga a multa e assim legaliza seu ato. É o crime que tem que ser combatido, deputados e senadores, e não a lei.
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