segunda-feira, 2 de junho de 2014

Negacionismo: o empurrão cínico para o abismo climático

Antonio Donato Nobre

No caso das mudanças climáticas a situação é  muito agravada pela ação muitas vezes difamante e desagregadora dos céticos do clima, também conhecidos por negadores das mudanças climáticas e da responsabilidade humana nestas. Usando ainda a metáfora do alcoólatra: os negadores -quase sempre sem fundamento factual de evidencias ou de conhecimento demonstrável- usam elaboradas táticas de marketing e maliciosas estratégias difamatórias na militância para desacreditar o médico e convencer o alcoólatra a continuar no vício, uma atividade frequentemente bem paga por corporações que lucram vendendo álcool. Mas quem são os negadores das mudanças climáticas e como agem?

Alexandre Costa[1] da Universidade Estadual do Ceará, depois de elencar como idealmente o processo da ciência garante por transparecia e testabilidade a veracidade e solidez dos conhecimentos que gera, resumiu sua visão sobre a ação dos negadores das mudanças climáticas:

... os negadores não seguem as regras do debate e do método científicos. Pelo contrário, atacam-nos, sem cerimônia. É possível fazer qualquer afirmação tresloucada em um blog, em uma palestra, em um “debate” (desses que mais parecem debate eleitoral) ou em uma aparição na mídia. A liberdade para mentir, fantasiar, tergiversar nesses casos é quase infinita e para quem tem compromisso com a verdade científica, é difícil dar conta até de uma pequena parcela dessas mentiras, falsificações e tergiversações. Explicar porque determinada afirmação é falsa dá muito mais trabalho do que fazê-la. ... É desse terreno que os negadores gostam. É por meio dele, e não de um debate verdadeiramente científico e honesto, que eles tentam envenenar a opinião pública e os tomadores de decisão...

E  explica a pouca reação da comunidade cientifica:

Poucos cientistas, portanto, terminam por entrar nessa arena de gládio, para encararem o vale-tudo dos negadores. Individualmente, nada se ganha ao fazê-lo, pelo contrário. Perde-se tempo e energia que poderia estar sendo dedicada à pesquisa e à produção científica ... Há também os cientistas que acham que não é seu papel popularizar a ciência ou sequer combater a pseudo-ciência e a anti-ciência junto ao público. Por fim, há um fator que não se deve desprezar. Pela virulência dos ataques e pelo grau acentuado de desonestidade dos negadores, muitos dos meus pares simplesmente preferem não lutar no terreno deles. É preciso, realmente, muito estômago!

Mas no campo negacionista não existem somente inescrupulosos bufões. Os maiores estragos na introdução de dúvidas e confusão sobre as mudanças climáticas tem historicamente sido feito por influentes cientistas dissidentes.  Quem são eles, quais suas historias e como grande parte deles tornaram-se mercenários a favor da causa do imobilismo tem sido analisado por livros[2] e estudos sociológicos.[3] 

Após o escândalo fabricado do climategate, Myanna Lahsen,[4] investigando o impacto causado na percepção pública da integridade da ciência do clima, explica e caracteriza uma das formulas da qual se valem os negadores para obter sucesso:

“O que pode impressionar... é a forma como o público é vulnerável ​​e manipulável ​​pelas campanhas do reacionarismo [negacionista], que pinta a ciência do clima como corrupta ....muitos trabalhos explicam a absorção pelo público das mensagens do reacionarismo [negacionista], em termos da influencia das estratégias escusas das elites financeiras e politicas, auxiliadas por um pequeno conjunto de cientistas contrários que emprestaram a necessária (aparência de) credibilidade científica.”

Essa autora vai além e desenvolve uma critica rara ao campo do consenso científico. Segundo ela o conhecido esquema de difamação e semeadura de duvidas dos negadores não teria tanto sucesso não fosse uma imagem idealizada de superioridade da ciência do clima que cientistas do IPCC e seus seguidores cultivam e projetam. Mais grave, ela cita omissão por estes das críticas desafiando o IPCC e aqueles que suportam o consenso, feitas por cientistas sérios e não politizados, através de canais usuais e respeitados da ciência.

Sem querer descontar essa analise critica, é preciso considerar que cientistas massivamente agredidos por uma bem financiada maquina difamatoria, e na defensiva, se vejam na contingência de isolar as correntes negadoras, situação onde eventualmente pode-se perder algum argumento valido. Em ultima analise a ferocidade e desonestidade das forças corruptoras da negação, a serviço do que parece ser uma elite feudal, tem parte importante da responsabilidade nesta perturbação da ciência.  

Mas existem saídas para essa situação. Desde o Climategate em 2009 a respeitada cientista do clima Judith Curry da Georgia Tech tem adotado uma distensão com os céticos do clima. Em uma carta aberta na blogosfera ela pondera:

“...eu diria que há três estratégias para [os cientistas do clima] lidarem com os céticos:
     1. Isolar-se na torre de marfim.
     2 Montar um círculo defensivo ao redor dos vagões [da ciência do clima] apontando as armas para fora: ataques
Ad hominem/apelo ao motivo; apelar à autoridade; isolar o inimigo por falta de acesso a dados; [manipular] processo de revisão por pares.
     3 Escolher uma "moral elevada:" envolva os céticos em nossos próprios termos (conferências, blogosfera); tornar dados/métodos disponíveis/transparentes; clarificar as incertezas; declarar abertamente nossos valores.”

Segundo ela a maioria dos cientistas se abrigam na torre de marfim. Os emails do Climategate revelam influentes cientistas do consenso adotando a estratégia da guerra. E ela vem adotando a estratégia de envolvimento dos céticos.  A face mais visível da sua estratégia pró-ativa é seu blog Climate Etc., que ela define como “um fórum para pesquisadores do clima, acadêmicos e especialistas de outras áreas, cientistas cidadãos e do público interessado em se envolver em uma discussão sobre temas relacionados com a ciência do clima e da interface ciência-política." Mas note que o ambiente de seriedade e respeito que ela oferece [as discussões são mediadas] abre espaço para dialogo apenas com a pequena fração séria de investigadores céticos. Os negadores mercenários não dão as caras.

Em um outro nível, Alexandre Costa sumariza quais são as prospectos em relação aos conflitos da ciência do clima com os negadores:

“Mas felizmente, os negadores têm um adversário à altura, que não precisa, como nós, caminhar sobre ovos! Um adversário duro, bruto, que vai direto ao assunto, que não se intimida, que não faz juízo de valor, que não tem ideologia. É esse adversário, e não o IPCC e o restante da comunidade da Ciência do Clima, quem tem feito o contraponto mais cristalino aos negadores. Chama-se Natureza! Esta não tem de se preocupar em testar múltiplas vezes suas próprias hipóteses, nem em revisar, em um processo lento, uma análise sobre suas próprias leis. Ela simplesmente é. Simplesmente se comporta de acordo com suas próprias regras. Simplesmente faz! E bate duro na negação!

De fato, independente das deficiências e incertezas preditivas, e mesmo das limitações humanas daqueles que fazem a ciência do clima, evidencias observacionais são o que são, inegáveis. Quando secas ou tormentas de granizo em série e outros alucinantes desastres no menu  da nova realidade climática chacoalham a indolência usual de milhões de pessoas, como negar? No sumário para tomadores de decisão do quinto e mais recente Relatório de Avaliação do IPCC (AR5) o Grupo de trabalho 1 (A Base das Ciências Físicas), baseado na revisão exaustiva e meticulosa de milhares de artigos científicos e vastas bases de dados resume:

“O aquecimento do sistema climático é inequívoco, e desde a década de 1950 muitas das mudanças observadas não tem precedentes ao longo de décadas a milênios. A atmosfera e o oceano tem aquecido, a quantidade de neve e gelo tem diminuído, o nível do mar subiu, e as concentrações de gases de efeito estufa aumentaram.”

Qualquer observador sereno e isento deveria estar finalmente convencido das mudanças climáticas. Porém, a despeito da avassaladora enxurrada de evidencias, o negacionismo segura as rédeas do imobilismo e aparentemente está obtendo exito na defesa de seus (sujos) interesses. Embalada por eficazes embaralhadores-cognitivos ministrados pelo negacionismo, a civilização global segue trotando sobre as evidencias, teimosamente ignorando que, por sua culpa, o conforto ambiental da nave planetária esteja falindo. Diferente do alcoólatra, que pode receber um transplante de fígado para evadir a reciprocidade fatal das suas escolhas irresponsáveis, no gravíssimo caso planetário, quando chegar o colapso do sistema de regulação climática, não haverá transplante possível, teremos colocado um ponto final nas possibilidades da civilização humana continuar sua despreocupada existência no conforto desta Terra. A biosfera, como prevê a teoria de Gaia, saberá continuar sua existência e até eventualmente recobrará seu equilíbrio como o fez diversas vezes na historia geológica do planeta. Mas durante milhões de anos, até o restabelecimento do conforto climático, a violência geofísica imperará.

Auto reparo, ilusão de imunidade e a letargia do sapo[1]


Antonio Donato Nobre


A nova ciência do sistema terrestre vem revelando e demonstrando que os sistemas vivos de regulação climática tem enorme capacidade de responder e compensar por abusos e perturbações, semelhante ao resiliente pneumático cuja borracha flexível absorve os impactos dos buracos na estrada. À mente reducionista e pragmática, incapaz de considerar além do bem-estar imediato para formar julgamento, essa resiliência natural é usual e ignorantemente tomada por “imunidade” a abusos.  Apesar desta capacidade de absorver abusos, o sistema natural não é imune; como na metáfora do pneumático o desgaste e a fadiga cumulativa dos materiais decorrente do mau uso, comprometem sua capacidade e longevidade, ou um impacto poderoso simplesmente o estoura.

Um paralelo ilustrativo para compreender a relação irresponsável da humanidade atual com a complexa nave Terra é a relação do alcoólatra com seu corpo. Os episódios de bebedeira seguem mais ou menos a mesma rotina de dependência: desejo irrefreado de prazer leva a ingestão de substancia tóxica; a substancia atua no corpo e produz uma avalanche de sensações – suprindo o circuito de recompensa no cérebro do viciado - e também promove uma serie de danos; alguns dos danos são perceptíveis no dia seguinte, quando o prazer e o torpor já evaporaram e a ressaca indica estragos no sistema; os órgãos trabalham freneticamente para processar/expulsar o tóxico até que o sistema volte ao normal. Porém, cada episodio de intoxicação deixa atrás de si uma esteira de milhões de células mortas e defeitos bioquímicos cumulativos. Mas o sistema de “conforto” orgânico é tão eficiente que o alcoólatra, passada a ressaca, tem a viva ilusão de que não foi nada, que afinal buscar o prazer ao ingerir o tóxico não é tão mal assim, já que o sistema sempre se recupera e fica bom de novo. Até um dia no qual os invisíveis defeitos e danos cumulativos superam a capacidade de auto-reparo do organismo e este entra em colapso súbito (por cirrose hepática). 

A humanidade quer seguir seu curso gerando, ingerindo e expelindo para o meio todo tipo de tóxicos. O organismo terrestre (biosfera) processa o abuso em seus órgãos (ecossistemas), atenuando ou anulando as perturbações. Mas a ignorante humanidade, não contente de contaminar e intoxicar, dedica-se também a devastar os próprios órgãos (ecossistemas), que em condições normais fariam em maior ou menor tempo a faxina e os reparos dos abusos. Neste sentido a relação da humanidade com a grande nave planetária é ainda pior do que a do alcoólatra com seu sofrido corpo; apesar de intoxicar-se repetidamente, não ocorreria ao alcoólatra sair “desmatando” seu fígado. É neste exemplo que se pode também compreender porque o entendimento de quem estuda o clima academicamente é tão diverso daquele que o vivencia, sem compreende-lo. O médico do alcoólatra, por teoria ou mesmo por analise dos exames, não se engana sobre a ilusão de bem estar recorrente, ele sabe dos danos do vício ao corpo, e alerta ao viciado dos riscos cumulativos e da necessidade imperiosa de parar com os abusos. Como o indolente sapo na panela da fábula,  o alcoólatra -analfabeto em medicina-, desconsidera os alertas de seu médico e segue no vício, iludido pela desconectada e fatal micrológica do bem estar resiliente. Mas a metáfora não termina aí.


[1] Conhecida anedota sobre a reação de um sapo em uma panela com água, à velocidade com que se aquece. Um aquecimento rápido o fará saltar, mas um aquecimento bem lento e gradual terá o animal completamente imóvel, até morrer na fervura sem reação. Uma revisita ao experimento porém, publicado na revista Nature no século 19, -e outros experimentos modernos- mostra que o único sapo que não salta no experimento de aquecimento lento é aquele de quem fora removido o cérebro.  Sapos normais saltam em qualquer velocidade de aquecimento.

Mudanças Climáticas: O Alarme da Ciência


Antonio Donato Nobre


A popularização da verdade através do saber é o caminho mais seguro para despertar consciências aptas a agir. Porém, quando se propõe a popularizar o conhecimento sobre o gigantismo e incrível complexidade da Terra a abordagem acadêmica caminha sobre o gume afiado de uma faca. Ao simplificar para a compreensão, surge o temor do assunto ser tomado por simplório;  ao elaborar para se aproximar da dimensão real, surge a dificuldade na popularização. Todo o profuso e contencioso debate atual sobre mudanças climáticas está contaminado em maior ou menor grau por esse dilema. As fundamentadas elaborações acadêmicas dos cientistas convencem aos próprios cientistas da dimensão real e urgente das mudanças climáticas. Mas não se pode esperar que cada governante ou cada pessoa torne-se cientista para alcançar e abranger o entendimento corrente na academia. Nas simplificações feitas para a difusão da visão cientifica, muitas sem sal nem tempero,  perde-se parte importante da força do argumento acadêmico.  Com isso abre-se um campo fértil de incompreensão popular, incompreensão frequentemente explorada como substrato para a disseminação oportunista, difamatória e até criminal de versões contraditórias à ciência.

Independente destas dificuldades de comunicação, e apesar das suas limitações e controvérsias, há mais de um século a ciência vem exercendo importante papel de alerta sobre as mudanças climáticas. Em 1896 o químico Sueco Arrhenius, no auge da revolução industrial, fez o primeiro cálculo registrado em artigo cientifico de que ao dobrar-se o CO2 atmosférico o planeta esquentaria de 5o a 6o C. Contudo a quantidade de carvão queimado, que era usado para acionar as maquinas a vapor, não ameaçava, e o próprio Arrhenius, interessado no risco oposto de novas eras glaciais, não via o improvável aquecimento com maus olhos. Depois disso ganhou escala o petróleo no acionamento de motores de combustão interna. Curioso que já aí a humanidade tenha feito uma escolha desfavorável. Na virada do século XX, no inicio da produção do automóvel em larga escala, haviam modelos elétricos competindo com os de combustão. Motores a combustão eram sujos, barulhentos, desconfortáveis e cheiravam mal; mas suas vantagens em autonomia e rápido reabastecimento lhes deram rapidamente primazia. Houvessem os elétricos predominado naquela época hoje teríamos veículos silenciosos e não poluentes, e, com mais de 100 anos de desenvolvimento, certamente teriam extraordinária autonomia. Houvesse o precoce cálculo de Arrhenius sobre a ligação entre aumento de CO2 na atmosfera e aquecimento sido levado em consideração a historia seria outra. Não foi.

Apesar dos cálculos de Arrhenius irem na direção correta (aumento da concentração de CO2 -> aumento de temperatura), durante a maior parte do século XX a ciência não conseguiu livrar-se de contraditórias explicações para a relação do clima com os gases estufa produzidos em quantidades crescentes pela humanidade. E justamente no ultimo século entraram em expansão exponencial a população humana, seus flatulentos animais, suas poluentes traquitanas técnicas e a contaminação e devastação dos ecossistemas por toda parte. A perturbação no ar-condicionado da grande nave inevitavelmente se faria sentir. A partir dos anos 50 o aumento progressivo e constante do CO2 na atmosfera foi confirmado por observações cada vez mais acuradas. E poucas décadas mais tarde o consequente aumento de temperatura foi e continua sendo observado. Mas ha muito mais que isso. O passado remoto, até milhões de anos - das concentrações de CO2 na atmosfera e sua relação com a temperatura-, foi revelado por diversos estudos a partir de pistas fosseis no gelo e nas rochas. Já nas ultimas décadas do século XX tornou-se finalmente evidente para a esmagadora maioria da comunidade cientifica que o clima estava aquecendo além do que ocorrera no ultimo milhão de anos, como decorrência de ações humanas.  A afirmação recente de James Powell[1] ilustra e sumariza como a comunidade científica vê seu estado de compreensão:

“Os cientistas não discordam sobre o aquecimento global causado pelo homem. É o paradigma dominante da ciência do clima, da mesma forma que as placas tectônicas é o paradigma dominante da geologia. Sabemos que os continentes se movem. Sabemos que a Terra está se aquecendo e que as emissões humanas de gases do efeito estufa são a principal causa.”

Em 1972, pressionada pela escalada dos problemas ambientais mundo afora, em especial o da poluição do ar, a Organização das Nações Unidas realizou a primeira Conferencia sobre meio Ambiente em Estocolmo. A delegação Brasileira apresentou lá uma incrível mensagem, reveladora da inconsciência predominante: -“A poluição é bem vinda no Brasil”. Em 1988, ano com a maior taxa de desmatamento e do assassinato do famoso seringueiro ambientalista Chico Mendes na Amazônia, a ONU criava o IPCC conjuntamente com a Organização Meteorológica Mundial, que produziria seu primeiro relatório de avaliação sobre o clima em 1990. Em 1992 o Brasil, com a sua imagem tisnada por cenas medonhas de devastação das florestas tropicais, sediou no Rio de Janeiro a marcante segunda conferencia sobre meio ambiente da ONU. No mesmo ano um grupo congregando mais de 1.500 cientistas saídos do topo da lista de maiores da ciência, inclusive a maioria dos prêmios Nobel vivos, publicou um apelo intitulado Alerta dos Cientistas do Mundo para a Humanidade:

"Os seres humanos e o mundo natural estão em rota de colisão. Atividades humanas infligem danos severos e frequentemente irreversíveis ao ambiente e a seus recursos vitais. Se não reavaliadas, muitas das nossas práticas correntes colocam em sério risco o futuro que queremos para a sociedade humana, e assim podem alterar o mundo vivo de tal forma que este será incapaz de dar suporte para a vida da forma que conhecemos. Mudanças fundamentais são urgentes se quisermos evitar a colisão que nosso presente curso irá trazer... Não temos mais que uma ou algumas décadas antes que a oportunidade de desviar as ameaças que enfrentamos agora venha a se perder e as perspectivas para a humanidade venham a ficar imensuravelmente diminuídas. Se uma vasta miséria humana precisa ser evitada e se o nosso lar global neste planeta não pode ser irremediavelmente mutilado, exige-se uma grande mudança em nossa atitude com relação à Terra e à sua vida.”

É especialmente significativo que tal alerta tenha vindo de uma comunidade normalmente afeita à moderação, cética e quase sempre desunida. A incomum eloquência e seus tons vivos devem dar uma medida do grau de convencimento sobre a gravidade da situação. Em 1994 a ONU criou a convenção quadro sobre as mudanças climáticas (UNFCC) que era a primeira tentativa de estender as recomendações cientificas para o âmbito da ação internacional coordenada dos governos nacionais. Em 1997 a UNFCC, reunida no Japão, produziu o famoso mas pouco eficaz protocolo de Kyoto. Em 2001 o IPCC produziu mais um Relatório de Avaliação, e outro em 2007. Infelizmente, para a humanidade, todas estas ações e alertas, e outros progressivamente mais graves feitos desde então não foram levados a sério como deveriam. Nestes 22 anos desde o Alerta dos Cientistas do Mundo, a ciência das mudanças climáticas melhorou em escala exponencial seu conhecimento, e com ele a qualidade dos alertas. Melhorou também sua comunicação com a sociedade, a ponto de render-lhe um premio Nobel em 2007.  Não obstante, é perturbador que com todas as evidencias a situação de inação hoje não difira muito de duas décadas atrás, quando a ciência iniciava os alertas mais sistemáticos.

Lester Brown, em seu livro Plano B, cujo subtítulo passou de “resgatando um planeta em stress e uma civilização em apuros” na versão 2.0 (2006) para “mobilizando para salvar a civilização” na versão 4.0 (2009), afirma que:

“...com o business as usual[2] (Plano A), as tendências ambientais que estão minando o nosso futuro vão continuar ... o tempo é o nosso recurso mais escasso. Estamos atravessando limites naturais que não podemos ver e violando prazos, fixados pela Natureza, que não reconhecemos.” 

Provavelmente as incertezas das projeções climáticas formem o fundamento deste alerta sobre nossa extensiva ignorância do funcionamento, das capacidades e dos limites da grande nave que nos abriga. Hoje porém, com as mudanças climáticas em pleno curso, os prazos fixados pela Natureza estão expirando a medida em que se tornam visíveis os limites naturais ao os atravessarmos. Porque, ainda assim, a humanidade não escute alarmes tão evidentes, nem compreenda a dimensão de gravidade em que se encontra?


[1] Vídeo: How do scientists know that global warming is true? Because the evidence is overwhelming (Como os cientistas sabem que o aquecimento global é verdade? Porque a evidência é esmagadora)
[2] Nota de Tradução: “continuar como está para ver como é que fica”

Mãe Terra: conforto na Nave Planetária


Antonio Donato Nobre

 "O homem só irá perceber a grandeza do mundo quando for capaz de sair dele
e contemplá-lo de fora." Sócrates  (filósofo Grego ~500 aC)

Na antiguidade, sem astronautas ou satélites, muitas civilizações souberam cultivar uma veneração respeitosa pela Natureza. Hoje,  apesar de havermos saído da atmosfera e ido muito além, e da espetacular explosão do conhecimento sobre a Terra, pouca reflexão se vê sobre nosso habitat cósmico. É preciso que, a despeito da embaladora proteção e conforto ainda oferecidos pela Terra, saibamos qual o tamanho e complexidade das elaborações da Natureza para que tal nave planetária tenha surgido, e -por ser a única que temos-, que se mantenha a nós favorável. Comecemos por pintar o cantinho cósmico onde surgiu esse lar único.

Nosso sistema solar encontra-se na posição mais favorável na Via Láctea, longe do núcleo galáctico, cuja proximidade nos “assaria” em tormentas de radiação, e longe também das periferias externas, onde o deserto de elementos pesados não teria permitido a formação da Terra nem da vida como tal. Tratemos de imaginar o quadro real: nos encontramos sobre uma rodopiante esfera de pedra, abrigados e protegidos por uma tênue camada de gás, cruzando o vácuo gélido do espaço a mais de 107 mil km por hora, sob o bafo quente e erosivo do sol cuja fornalha nuclear funde 600 milhões de toneladas de hidrogênio a cada segundo, um cataclismo controlado e duradouro da Natureza que nos dá vida através da sua luz e calor. Mas não fosse a eficaz constituição filtrante da nossa atmosfera e a efetiva capacidade defletora do nosso campo magnético, a proximidade da massiva e continua explosão nuclear no sol nos fritaria com todo tipo de radiação e partículas perigosas. Em nossa vizinhança planetária e nos arredores do sistema solar flutua um número astronômico de pedras e pedregulhos formadores de meteoros e cometas, os bólidos, dos quais somos protegidos pelo “guarda chuva” gravitacional dos gigantes gasosos em orbitas externas, nossos verdadeiros big brothers. A Terra está na distancia ideal do sol, nem muito próxima onde ferveria, nem muito longe onde congelaria. Ela tem o tamanho e constituição certas para a formação de núcleo metálico, gerador do forte campo magnético protetor, e um envelope gasoso de densidade, composição e espessura adequados para a proteção e evolução da vida. Estes fatores geofísicos, lentamente apropriados, descritos e demonstrados pela ciência, formaram tijolos essenciais na construção do planeta adequado e seguro que temos. Mas milhares de outros fatores compuseram a receita da formação e evolução da Terra, muitos ainda superficialmente conhecidos pela ciência.

Ter o planeta favoravelmente posicionado e nas dimensões e composição certas, foi apenas o começo de uma longa historia de incríveis transformações. Foram necessários 4 bilhões de anos de elaboradíssima evolução interativa entre rocha, água, ar e seres vivos para converter um mar de lava, uma atmosfera irrespirável e um ambiente de irradiações proibitivo para a vida, - no delgado,  pacato, seguro e fecundo ambiente esférico que nos abriga. Todo o oxigênio que podemos respirar,  e muito mais que ficou preso nas rochas, foi produzido pela elaborada cozinha bioquímica da vida, na labuta incansável do numero astronômico de células microscópicas que colonizaram mar, ar e terra. A vida como tal configurou-se em manipuladora extraordinária de substancias por toda a superfície do planeta, e dessa manipulação surgiu, em uma cadeia inimaginavelmente intrincada de reações, o clima estável e favorável, com persistente água liquida à superfície -condição desconhecida em outros corpos celestes. Assim, toda a imensa sequencia de eventos na evolução de seres vivos complexos, cujo ser humano é o ápice, somente pode se dar com o amparo das condições favoráveis e duradouras geradas - no planeta certo- pelos processos elementares da vida.

É preciso ter humildade e reverencia diante da formação de um planeta habitável, esta apoteose cósmica na obra gigantesca que consumiu bilhões de anos.

Mas porque saber da constituição e mecânica do sistema terrestre torna-se importante para compreender as mudanças climáticas e o papel critico da Amazônia nestas? Utilizando a metáfora da exploração do espaço, pensemos no clima como se fosse o sistema de ar condicionado de uma nave espacial, que assim como a Terra deve oferecer um habitat confortável e saudável para seus passageiros enquanto viaja pelo agressivo vazio do espaço. Na estação espacial internacional (ISS) complicados compressores, reguladores térmicos, fontes de gases e sistemas de reciclagem do ar usado trabalham integrada e continuamente para manter o ar respirável e o ambiente confortável. Esses sistemas foram desenhados para funcionamento autônomo e com eficiência na reciclagem dos líquidos e gases, buscando a menor dependência possível do suprimento externo. Se fosse tarefa fácil criar tal ambiente habitável no espaço não haveria como há registros de verdadeiro pesadelo tecnológico em lidar com inúmeros defeitos e mal funcionamentos nos equipamentos. Não poucas vezes estes problemas técnicos colocaram a tripulação da ISS em risco, e muitas vezes a ISS precisou de resgate com suprimentos frescos transportados da Terra pelos cargueiros Russos Progress.




















Figura 1 Estação espacial internacional (ISS) mostrando sua posição no espaço exterior, fora da atmosfera terrestre; em corte esquemático o ambiente interior abrigando astronautas, que simula o ambiente e atmosfera terrestre; e as naves Soyuz-Progress (em negro) de suprimento de alimentos, gases e água e coletoras de lixo da ISS.

Outro experimento mais próximo na simulação isolada do sistema terrestre, o Biosfera II no Arizona, pretendia demonstrar ser possível criar um mundo autônomo, copiado em miniatura do sistema terrestre. Diferente dos equipamentos mecânicos da ISS o Biosfera II continha, a exemplo da vida planetária (Biosfera I), plantas micróbios e animais exercendo papeis de condicionamento e renovação da sua atmosfera interna lacrada. Pouco tempo depois do isolamento de biosferaII-nautas na colônia autônoma, tiveram que socorre-la com a injeção de oxigênio e limpeza dos gases tóxicos, sem falar nas selvagens perturbações das populações de animais e insetos ali encerradas. A conclusão do épico fracasso é que reproduzir o sistema estável que mantem o clima da Terra confortável não é tarefa fácil.

O clima terrestre possui sistemas análogos ao da ISS de condicionamento e manutenção, mas em escalas incomparáveis de tamanho e complexidade, e de funcionamento completamente automático e autorregulado. Para a atmosfera terrestre não é possível buscar “suprimentos frescos” fora do planeta como na ISS ou fora do domo lacrado do Biosfera II. Tampouco o clima na nave planetária pode ser recuperado facilmente, - concertando ou trocando equipamentos condicionadores como na ISS-. O incrivelmente complexo, elaborado e massivo sistema que condiciona a atmosfera terrestre trabalhou na escala microscópica, de átomos e moléculas em células vivas, e gigantesca porque abrangeu todo o planeta, por bilhões de anos, para atingir e manter seu equilíbrio e conforto. Se por um momento nestas comparações cada pessoa se desse conta da imensa e ao mesmo tempo delicada capacidade da nave mãe Terra de nos prover um oásis de conforto no meio do deserto negro do espaço, a compreensão e aceitação sobre nossa responsabilidade nas mudanças climáticas seria grandemente facilitada.