segunda-feira, 2 de junho de 2014

Mãe Terra: conforto na Nave Planetária


Antonio Donato Nobre

 "O homem só irá perceber a grandeza do mundo quando for capaz de sair dele
e contemplá-lo de fora." Sócrates  (filósofo Grego ~500 aC)

Na antiguidade, sem astronautas ou satélites, muitas civilizações souberam cultivar uma veneração respeitosa pela Natureza. Hoje,  apesar de havermos saído da atmosfera e ido muito além, e da espetacular explosão do conhecimento sobre a Terra, pouca reflexão se vê sobre nosso habitat cósmico. É preciso que, a despeito da embaladora proteção e conforto ainda oferecidos pela Terra, saibamos qual o tamanho e complexidade das elaborações da Natureza para que tal nave planetária tenha surgido, e -por ser a única que temos-, que se mantenha a nós favorável. Comecemos por pintar o cantinho cósmico onde surgiu esse lar único.

Nosso sistema solar encontra-se na posição mais favorável na Via Láctea, longe do núcleo galáctico, cuja proximidade nos “assaria” em tormentas de radiação, e longe também das periferias externas, onde o deserto de elementos pesados não teria permitido a formação da Terra nem da vida como tal. Tratemos de imaginar o quadro real: nos encontramos sobre uma rodopiante esfera de pedra, abrigados e protegidos por uma tênue camada de gás, cruzando o vácuo gélido do espaço a mais de 107 mil km por hora, sob o bafo quente e erosivo do sol cuja fornalha nuclear funde 600 milhões de toneladas de hidrogênio a cada segundo, um cataclismo controlado e duradouro da Natureza que nos dá vida através da sua luz e calor. Mas não fosse a eficaz constituição filtrante da nossa atmosfera e a efetiva capacidade defletora do nosso campo magnético, a proximidade da massiva e continua explosão nuclear no sol nos fritaria com todo tipo de radiação e partículas perigosas. Em nossa vizinhança planetária e nos arredores do sistema solar flutua um número astronômico de pedras e pedregulhos formadores de meteoros e cometas, os bólidos, dos quais somos protegidos pelo “guarda chuva” gravitacional dos gigantes gasosos em orbitas externas, nossos verdadeiros big brothers. A Terra está na distancia ideal do sol, nem muito próxima onde ferveria, nem muito longe onde congelaria. Ela tem o tamanho e constituição certas para a formação de núcleo metálico, gerador do forte campo magnético protetor, e um envelope gasoso de densidade, composição e espessura adequados para a proteção e evolução da vida. Estes fatores geofísicos, lentamente apropriados, descritos e demonstrados pela ciência, formaram tijolos essenciais na construção do planeta adequado e seguro que temos. Mas milhares de outros fatores compuseram a receita da formação e evolução da Terra, muitos ainda superficialmente conhecidos pela ciência.

Ter o planeta favoravelmente posicionado e nas dimensões e composição certas, foi apenas o começo de uma longa historia de incríveis transformações. Foram necessários 4 bilhões de anos de elaboradíssima evolução interativa entre rocha, água, ar e seres vivos para converter um mar de lava, uma atmosfera irrespirável e um ambiente de irradiações proibitivo para a vida, - no delgado,  pacato, seguro e fecundo ambiente esférico que nos abriga. Todo o oxigênio que podemos respirar,  e muito mais que ficou preso nas rochas, foi produzido pela elaborada cozinha bioquímica da vida, na labuta incansável do numero astronômico de células microscópicas que colonizaram mar, ar e terra. A vida como tal configurou-se em manipuladora extraordinária de substancias por toda a superfície do planeta, e dessa manipulação surgiu, em uma cadeia inimaginavelmente intrincada de reações, o clima estável e favorável, com persistente água liquida à superfície -condição desconhecida em outros corpos celestes. Assim, toda a imensa sequencia de eventos na evolução de seres vivos complexos, cujo ser humano é o ápice, somente pode se dar com o amparo das condições favoráveis e duradouras geradas - no planeta certo- pelos processos elementares da vida.

É preciso ter humildade e reverencia diante da formação de um planeta habitável, esta apoteose cósmica na obra gigantesca que consumiu bilhões de anos.

Mas porque saber da constituição e mecânica do sistema terrestre torna-se importante para compreender as mudanças climáticas e o papel critico da Amazônia nestas? Utilizando a metáfora da exploração do espaço, pensemos no clima como se fosse o sistema de ar condicionado de uma nave espacial, que assim como a Terra deve oferecer um habitat confortável e saudável para seus passageiros enquanto viaja pelo agressivo vazio do espaço. Na estação espacial internacional (ISS) complicados compressores, reguladores térmicos, fontes de gases e sistemas de reciclagem do ar usado trabalham integrada e continuamente para manter o ar respirável e o ambiente confortável. Esses sistemas foram desenhados para funcionamento autônomo e com eficiência na reciclagem dos líquidos e gases, buscando a menor dependência possível do suprimento externo. Se fosse tarefa fácil criar tal ambiente habitável no espaço não haveria como há registros de verdadeiro pesadelo tecnológico em lidar com inúmeros defeitos e mal funcionamentos nos equipamentos. Não poucas vezes estes problemas técnicos colocaram a tripulação da ISS em risco, e muitas vezes a ISS precisou de resgate com suprimentos frescos transportados da Terra pelos cargueiros Russos Progress.




















Figura 1 Estação espacial internacional (ISS) mostrando sua posição no espaço exterior, fora da atmosfera terrestre; em corte esquemático o ambiente interior abrigando astronautas, que simula o ambiente e atmosfera terrestre; e as naves Soyuz-Progress (em negro) de suprimento de alimentos, gases e água e coletoras de lixo da ISS.

Outro experimento mais próximo na simulação isolada do sistema terrestre, o Biosfera II no Arizona, pretendia demonstrar ser possível criar um mundo autônomo, copiado em miniatura do sistema terrestre. Diferente dos equipamentos mecânicos da ISS o Biosfera II continha, a exemplo da vida planetária (Biosfera I), plantas micróbios e animais exercendo papeis de condicionamento e renovação da sua atmosfera interna lacrada. Pouco tempo depois do isolamento de biosferaII-nautas na colônia autônoma, tiveram que socorre-la com a injeção de oxigênio e limpeza dos gases tóxicos, sem falar nas selvagens perturbações das populações de animais e insetos ali encerradas. A conclusão do épico fracasso é que reproduzir o sistema estável que mantem o clima da Terra confortável não é tarefa fácil.

O clima terrestre possui sistemas análogos ao da ISS de condicionamento e manutenção, mas em escalas incomparáveis de tamanho e complexidade, e de funcionamento completamente automático e autorregulado. Para a atmosfera terrestre não é possível buscar “suprimentos frescos” fora do planeta como na ISS ou fora do domo lacrado do Biosfera II. Tampouco o clima na nave planetária pode ser recuperado facilmente, - concertando ou trocando equipamentos condicionadores como na ISS-. O incrivelmente complexo, elaborado e massivo sistema que condiciona a atmosfera terrestre trabalhou na escala microscópica, de átomos e moléculas em células vivas, e gigantesca porque abrangeu todo o planeta, por bilhões de anos, para atingir e manter seu equilíbrio e conforto. Se por um momento nestas comparações cada pessoa se desse conta da imensa e ao mesmo tempo delicada capacidade da nave mãe Terra de nos prover um oásis de conforto no meio do deserto negro do espaço, a compreensão e aceitação sobre nossa responsabilidade nas mudanças climáticas seria grandemente facilitada.