Antonio Donato Nobre
"O homem só irá perceber a grandeza do
mundo quando for capaz de sair dele
e contemplá-lo
de fora." Sócrates (filósofo Grego
~500 aC)
Na antiguidade, sem astronautas ou satélites, muitas civilizações
souberam cultivar uma veneração respeitosa pela Natureza. Hoje, apesar de havermos saído da atmosfera e ido
muito além, e da espetacular explosão do conhecimento sobre a Terra, pouca
reflexão se vê sobre nosso habitat cósmico. É preciso que, a despeito da
embaladora proteção e conforto ainda oferecidos pela Terra, saibamos qual o
tamanho e complexidade das elaborações da Natureza para que tal nave planetária
tenha surgido, e -por ser a única que temos-, que se mantenha a nós favorável. Comecemos
por pintar o cantinho cósmico onde surgiu esse lar único.
Nosso sistema solar encontra-se na posição mais favorável na
Via Láctea, longe do núcleo galáctico, cuja proximidade nos “assaria” em
tormentas de radiação, e longe também das periferias externas, onde o deserto
de elementos pesados não teria permitido a formação da Terra nem da vida como
tal. Tratemos de imaginar o quadro real: nos encontramos sobre uma rodopiante
esfera de pedra, abrigados e protegidos por uma tênue camada de gás, cruzando o
vácuo gélido do espaço a mais de 107 mil km por hora, sob o bafo quente e
erosivo do sol cuja fornalha nuclear funde 600 milhões de toneladas de
hidrogênio a cada segundo, um cataclismo controlado e duradouro da Natureza que
nos dá vida através da sua luz e calor. Mas não fosse a eficaz constituição
filtrante da nossa atmosfera e a efetiva capacidade defletora do nosso campo
magnético, a proximidade da massiva e continua explosão nuclear no sol nos
fritaria com todo tipo de radiação e partículas perigosas. Em nossa vizinhança
planetária e nos arredores do sistema solar flutua um número astronômico de
pedras e pedregulhos formadores de meteoros e cometas, os bólidos, dos quais
somos protegidos pelo “guarda chuva” gravitacional dos gigantes gasosos em
orbitas externas, nossos verdadeiros big
brothers. A Terra está na distancia ideal do sol, nem muito próxima onde
ferveria, nem muito longe onde congelaria. Ela tem o tamanho e constituição
certas para a formação de núcleo metálico, gerador do forte campo magnético protetor,
e um envelope gasoso de densidade, composição e espessura adequados para a
proteção e evolução da vida. Estes fatores geofísicos, lentamente apropriados,
descritos e demonstrados pela ciência, formaram tijolos essenciais na
construção do planeta adequado e seguro que temos. Mas milhares de outros
fatores compuseram a receita da formação e evolução da Terra, muitos ainda
superficialmente conhecidos pela ciência.
Ter o planeta favoravelmente posicionado e nas dimensões e
composição certas, foi apenas o começo de uma longa historia de incríveis
transformações. Foram necessários 4 bilhões de anos de elaboradíssima evolução
interativa entre rocha, água, ar e seres vivos para converter um mar de lava,
uma atmosfera irrespirável e um ambiente de irradiações proibitivo para a vida,
- no delgado, pacato, seguro e fecundo
ambiente esférico que nos abriga. Todo o oxigênio que podemos respirar, e muito mais que ficou preso nas rochas, foi
produzido pela elaborada cozinha bioquímica da vida, na labuta incansável do
numero astronômico de células microscópicas que colonizaram mar, ar e terra. A
vida como tal configurou-se em manipuladora extraordinária de substancias por
toda a superfície do planeta, e dessa manipulação surgiu, em uma cadeia
inimaginavelmente intrincada de reações, o clima estável e favorável, com
persistente água liquida à superfície -condição desconhecida em outros corpos
celestes. Assim, toda a imensa sequencia de eventos na evolução de seres vivos
complexos, cujo ser humano é o ápice, somente pode se dar com o amparo das
condições favoráveis e duradouras geradas - no planeta certo- pelos processos
elementares da vida.
É preciso ter humildade e reverencia diante da formação de
um planeta habitável, esta apoteose cósmica na obra gigantesca que consumiu
bilhões de anos.
Mas porque saber da constituição e mecânica do sistema
terrestre torna-se importante para compreender as mudanças climáticas e o papel
critico da Amazônia nestas? Utilizando a metáfora da exploração do espaço,
pensemos no clima como se fosse o sistema de ar condicionado de uma nave
espacial, que assim como a Terra deve oferecer um habitat confortável e
saudável para seus passageiros enquanto viaja pelo agressivo vazio do espaço.
Na estação espacial internacional (ISS) complicados compressores, reguladores
térmicos, fontes de gases e sistemas de reciclagem do ar usado trabalham
integrada e continuamente para manter o ar respirável e o ambiente confortável.
Esses sistemas foram desenhados para funcionamento autônomo e com eficiência na
reciclagem dos líquidos e gases, buscando a menor dependência possível do
suprimento externo. Se fosse tarefa fácil criar tal ambiente habitável no
espaço não haveria como há registros de verdadeiro pesadelo tecnológico em
lidar com inúmeros defeitos e mal funcionamentos nos equipamentos. Não poucas
vezes estes problemas técnicos colocaram a tripulação da ISS em risco, e muitas
vezes a ISS precisou de resgate com suprimentos frescos transportados da Terra
pelos cargueiros Russos Progress.
Figura 1 Estação espacial internacional (ISS) mostrando sua posição no espaço exterior, fora da atmosfera terrestre; em corte esquemático o ambiente interior abrigando astronautas, que simula o ambiente e atmosfera terrestre; e as naves Soyuz-Progress (em negro) de suprimento de alimentos, gases e água e coletoras de lixo da ISS.
Outro experimento mais próximo na simulação isolada do
sistema terrestre, o Biosfera
II no Arizona, pretendia demonstrar ser possível criar um mundo autônomo,
copiado em miniatura do sistema terrestre. Diferente dos equipamentos mecânicos
da ISS o Biosfera II continha, a exemplo da vida planetária (Biosfera I),
plantas micróbios e animais exercendo papeis de condicionamento e renovação da
sua atmosfera interna lacrada. Pouco tempo depois do isolamento de biosferaII-nautas na colônia autônoma,
tiveram que socorre-la com a injeção de oxigênio e limpeza dos gases tóxicos,
sem falar nas selvagens perturbações das populações de animais e insetos ali
encerradas. A conclusão do épico fracasso é que reproduzir o sistema estável
que mantem o clima da Terra confortável não é tarefa fácil.
O clima terrestre possui sistemas análogos ao da ISS de
condicionamento e manutenção, mas em escalas incomparáveis de tamanho e
complexidade, e de funcionamento completamente automático e autorregulado. Para
a atmosfera terrestre não é possível buscar “suprimentos frescos” fora do
planeta como na ISS ou fora do domo lacrado do Biosfera II. Tampouco o clima na
nave planetária pode ser recuperado facilmente, - concertando ou trocando
equipamentos condicionadores como na ISS-. O incrivelmente complexo, elaborado
e massivo sistema que condiciona a atmosfera terrestre trabalhou na escala
microscópica, de átomos e moléculas em células vivas, e gigantesca porque
abrangeu todo o planeta, por bilhões de anos, para atingir e manter seu
equilíbrio e conforto. Se por um momento nestas comparações cada pessoa se
desse conta da imensa e ao mesmo tempo delicada capacidade da nave mãe Terra de
nos prover um oásis de conforto no meio do deserto negro do espaço, a
compreensão e aceitação sobre nossa responsabilidade nas mudanças climáticas
seria grandemente facilitada.