Se a conjuntura gera uma índole perversa, mudemos a conjuntura. E isso só acontece com gente na rua e um projeto político nas cabeças
Quando lancei o “Álbum Memória de São Bernardo”, sobre a história da
cidade no ABC paulista, no início da década de 1980, duas passagens tiveram
maior repercussão. O texto escrito por Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e a
fotografia de Lula (PT) no estádio da Vila Euclides durante a greve dos
metalúrgicos.
Mais tarde, tornei-me amigo de FHC e admirador de Lula. Durante a
campanha das Diretas-Já, estávamos todos reunidos no comício da praça Sé. No
mesmo palanque, estava Ulysses Guimarães, 300 prefeitos e artistas de todos os
credos e partidos, para lutar pela democracia representativa, participativa e
social com a qual sonhávamos.
Se ainda estivéssemos no mesmo palanque, como recomendava Franco
Montoro, e o que não aconteceu porque ambição é patrimônio de cada um, o Brasil
não se encontraria tão ferido pela violência, falta de rumo da democracia
social e corrupção banalizada como se encontra.
Do amigo Fernando Henrique, só lamento ele não ter superado a tentação
da reeleição. Sua atuação marcante como presidente da República se teria
tornado politicamente inesquecível para o Brasil.
Quanto a Lula, apesar de sua inteligência política, da inflexão social
de seu governo (2003-2010) e dos bons resultados de seu primeiro mandato,
considero-o culpado pela ganância por poder, ao qual se adaptou como um Ph.D.,
láurea comprovada por inúmeras academias.
Mestre de Maquiavel, Lula serviu aos ricos com juros, oportunidades e
empréstimos dirigidos. Aos pobres, serviu com o Bolsa Família e o viés social
de parte do Orçamento da União. Cooptou parlamentares com o loteamento de
ministérios e aos seus companheiros de sindicato entregou a gestão das estatais
e dos fundos de pensão.
Não há, em toda a história deste país, desde a divisão das capitanias
hereditárias, uma tal distribuição de poder. Lula não inventou tudo isso, é
claro. Soube, isso sim, aproveitar-se das circunstâncias.
Num regime presidencialista em que só se conquista a maioria
corrompendo parlamentares, Lula percebeu que, sem o apoio das classes
dominantes, não se governa. Percebeu que, sem o apoio do povão, agradecido e
obrigado a votar, ninguém se reelege nem elege postes. E, mantendo a gratidão
aos companheiros de ofício, entregou aos sindicalistas os destinos da Petrobras
e demais empresas estatais, além da gestão dos fundos.
Essa divisão, ainda que curiosa do ponto de vista político, não
permite o desenvolvimento necessário a médio ou longo prazo. Tampouco condiz
com a probidade indispensável ao exercício do poder público. O loteamento
político dispensa a presença de técnicos e administradores à altura dos
problemas intrínsecos à gestão das empresas públicas. Há uma ilusão
generalizada de distribuição de renda.
O patrimônio e os ativos brasileiros continuam, como sempre estiveram,
nas mãos dos ricos. Incluam-se nessa conta os ativos intelectuais, afinal quase
20% da população ainda é analfabeta funcional.
Se tal conjuntura engendra uma índole perversa, qualquer que seja o
histórico do postulante ao poder, mudemos a conjuntura. E isso só acontece com
gente na rua e um projeto político nas cabeças.
JORGE DA CUNHA LIMA, 82, é presidente da Aliança Francesa e
vice-presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta e do Itaú
Cultural