quinta-feira, 22 de maio de 2014

Carisma e ruptura em Lula


Se a conjuntura gera uma índole perversa, mudemos a conjuntura. E isso só acontece com gente na rua e um projeto político nas cabeças



Quando lancei o “Álbum Memória de São Bernardo”, sobre a história da cidade no ABC paulista, no início da década de 1980, duas passagens tiveram maior repercussão. O texto escrito por Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e a fotografia de Lula (PT) no estádio da Vila Euclides durante a greve dos metalúrgicos.

Mais tarde, tornei-me amigo de FHC e admirador de Lula. Durante a campanha das Diretas-Já, estávamos todos reunidos no comício da praça Sé. No mesmo palanque, estava Ulysses Guimarães, 300 prefeitos e artistas de todos os credos e partidos, para lutar pela democracia representativa, participativa e social com a qual sonhávamos.

Se ainda estivéssemos no mesmo palanque, como recomendava Franco Montoro, e o que não aconteceu porque ambição é patrimônio de cada um, o Brasil não se encontraria tão ferido pela violência, falta de rumo da democracia social e corrupção banalizada como se encontra.

Do amigo Fernando Henrique, só lamento ele não ter superado a tentação da reeleição. Sua atuação marcante como presidente da República se teria tornado politicamente inesquecível para o Brasil.

Quanto a Lula, apesar de sua inteligência política, da inflexão social de seu governo (2003-2010) e dos bons resultados de seu primeiro mandato, considero-o culpado pela ganância por poder, ao qual se adaptou como um Ph.D., láurea comprovada por inúmeras academias.

Mestre de Maquiavel, Lula serviu aos ricos com juros, oportunidades e empréstimos dirigidos. Aos pobres, serviu com o Bolsa Família e o viés social de parte do Orçamento da União. Cooptou parlamentares com o loteamento de ministérios e aos seus companheiros de sindicato entregou a gestão das estatais e dos fundos de pensão.

Não há, em toda a história deste país, desde a divisão das capitanias hereditárias, uma tal distribuição de poder. Lula não inventou tudo isso, é claro. Soube, isso sim, aproveitar-se das circunstâncias.

Num regime presidencialista em que só se conquista a maioria corrompendo parlamentares, Lula percebeu que, sem o apoio das classes dominantes, não se governa. Percebeu que, sem o apoio do povão, agradecido e obrigado a votar, ninguém se reelege nem elege postes. E, mantendo a gratidão aos companheiros de ofício, entregou aos sindicalistas os destinos da Petrobras e demais empresas estatais, além da gestão dos fundos.

Essa divisão, ainda que curiosa do ponto de vista político, não permite o desenvolvimento necessário a médio ou longo prazo. Tampouco condiz com a probidade indispensável ao exercício do poder público. O loteamento político dispensa a presença de técnicos e administradores à altura dos problemas intrínsecos à gestão das empresas públicas. Há uma ilusão generalizada de distribuição de renda.

O patrimônio e os ativos brasileiros continuam, como sempre estiveram, nas mãos dos ricos. Incluam-se nessa conta os ativos intelectuais, afinal quase 20% da população ainda é analfabeta funcional.

Se tal conjuntura engendra uma índole perversa, qualquer que seja o histórico do postulante ao poder, mudemos a conjuntura. E isso só acontece com gente na rua e um projeto político nas cabeças.

JORGE DA CUNHA LIMA, 82, é presidente da Aliança Francesa e vice-presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta e do Itaú Cultural