quarta-feira, 31 de março de 2010

Amazônia: boi ou florzinhas?

14/01/2010

O Acadêmico Luiz Hildebrando Pereira da Silva, 80 anos, diretor do Instituto de Pesquisas em Patologias Tropicais de Rondônia, publicou este interessante artigo na revista /Nosso Caminho/, de Oscar Niemeyer.

"Oscar Niemeyer me pediu há meses um artigo sobre política de Ciência e Tecnologia na Amazônia para a revista que ele e Vera Lucia Niemeyer criaram. Tenho retardado a tarefa, um pouco por preguiça e um pouco também porque, no fundo, eu sigo o exemplo dele Oscar. Gosto de fazer e não gosto de falar sobre o que faço, menos ainda sobre o que os outros fazem ou devem fazer...

Entretanto, nas últimas semanas desse ano 2009, experiências pessoais que atravessei me convenceram de que eu tinha alguma coisa a dizer sobre políticas de ciência e tecnologia para a Amazônia. Não se trata de nada relativo a biotecnologia aplicada a tão celebrada biodiversidade amazônica, nem sobre o desenvolvimento de programas sobre tecnologias de vanguarda, como as que estamos tentando desenvolver em nosso Instituto. Trata-se de algo muito mais terra a terra, que interessa a mim mais como jardineiro decorador do que como cientista e que me levaram a experiência que aqui transcrevo.

Tudo começou com minha pretensão de criar um jardim decorativo, com flores, no condomínio da casinha em que vivo em Porto Velho. Coisa de velho saudosista. A casinha é uma das 23 de um condomínio fechado, casas térreas, com pequeno terreno na frente e algum quintal nos fundos. Há uma grande área central, gramada, onde as crianças e os jovens das residências jogam o futebol nos fins de tarde, quando voltam da escola.

Tenho tentado, sem sucesso, convencer os sucessivos síndicos a criar alguns canteiros de flores no terreno central e arborizar os entornos para criar áreas de sombra e repouso. Para que as mamães, numerosas no condomínio, tragam seus bebês para gozar o ar fresco do entardecer e os velhinhos(as), como eu e outros(as), venham bater papo e descansar. Deixar apenas pequena área de terreno para o futebol das crianças menores, evitando que as que estão crescendo transformem a área em sitio de algazarras e confrontações esportivas violentas.

Árvore e canteiro de flores são coisas fora do interesse dos condôminos. A maioria cimentou ou ladrilhou os terrenos da frente, estendendo a cobertura dos terraços, com telhados para proteger da chuva os vários carros de cada residência. Árvores então, nem pensar. Entre as únicas quatro do condomínio, conta-se uma pobre jambeira que nasceu escondida a um canto do terreno central e sobreviveu não sei como. As três outras fui eu que plantei e cuido: um ipê no jardim da frente, uma mangueira e uma cibipiruna no quintal do fundo. Eu tenho sempre assinalado aos síndicos que, se cimentarem toda a área descoberta, o condomínio vai terminar, como a cidade de São Paulo, virando piscina a cada chuva mais intensa, sem vias de absorção e escoamento para a água que cai.

Já que não era ouvido, decidi criar meu próprio jardinzinho florido. Nada muito ambicioso, apenas um canteiro de três metros quadrados para os quais fui procurar flores adequadas nas cinco chácaras de plantas decorativas que se abriram em Porto Velho nos últimos anos. Nelas as florzinhas não são prioridade. Encontra-se apenas variedade de arbustos de equissórias, nas suas versões vermelha e amarela, muito procuradas principalmente para fazer as cercas vivas de que, como as trepadeiras, os rondonienses são grandes consumidores. Preocupação dominante de sinalizar com precisão o limite da propriedade com cercas vivas e menos vivas, de preferência com arame farpado. Enfim, para isso serve a equissória. Florzinha mesmo, para fazer canteiros, muito raro.

Mas nessa lida de freqüentar chácaras, a procura das florzinhas, fui ficando conhecido dos chacareiros e, finalmente, um belo sábado, numa das chácaras, tive a boa surpresa: o chacareiro tinha encomendado em São Paulo e me oferecia 50 mudas de caroline a dois reais cada que aceitei na hora. Quando fui buscar a encomenda puxei conversa, começando por perguntar seu nome.

- Fanker, me diz ele, Herman Fanker.
O nome me pareceu de origem alemã, o que correspondia também ao fenótipo, pensei logo que ele devia ser catarinense e continuei.
- Parabéns, meu caro senhor Fanker. O senhor é dos poucos nessa terra que trata o reino vegetal de modo positivo e respeitoso. Em geral aqui os vegetais nativos são cortados e queimados. O senhor é exceção, pois produz e multiplica vegetais e os adiciona aos nativos, difundindo a representação deles entre nós. Felicitações.
- É de família, responde Fanker. Meu avô já tinha sitio em Santa Catarina e produzia rosas e orquídeas.
- Orquídeas!? digo eu. - Orquídeas em Rondônia são subprodutos das castanheiras e gravatás e tratadas a moto-serra. O senhor está cultivando orquídeas?
- Meu irmão está montando a galeria, as estufas e serras no sítio em Candeias para cultivá-las. E estamos tentando adaptar algumas colhidas na floresta. O problema é que já tem pouca floresta por perto e é preciso ir além de Guajará Mirim para achar orquídeas.
- Em todo caso, meus parabéns. E por falar nisso, quantos hectares o senhor tem aqui.
- Não chega a meio, apenas 4.800 metros quadrados.
- E quantos empregados o senhor tem?
- Oito.
- Oito empregados aqui? E no sitio do seu irmão?
- O sitio é nosso. Somos sócios. Três irmãos. O sitio de Candeias tem quase três hectares. Um hectare e meio de mata original que conservamos. Tem castanheira, gravatá, sucupira e outras. Temos até algumas seringueiras. A idéia é usar para adaptação das orquídeas e árvores floridas da mata. Temos mais seis empregados. Para produzir as mudas de plantas decorativas daqui da sede e também para a horta. Produzimos hortaliças e frutas para a família e ainda vendemos alface, tomate, pepino para um supermercado.
- Meus parabéns ainda. Quer dizer que com meio hectare aqui e mais dois e meio em Candeias os senhores sustentam três famílias e ainda 14 empregados. Eles são declarados?
Vejo que o senhor Fanker hesita um pouco... depois afirma, com ar pouco convincente
- Quase todos.
Faço rapidamente meus cálculos de cabeça: 14 empregados pagos com salário mínimo fazem 400 x 14 empregados x 13meses = 72.800 reais anuais. Digamos que dos 14 empregados seis sejam declarados. São mais R$12.400 em direitos trabalhistas. Chegamos aos 84 mil reais por ano. Arrisco perguntar.
- E o senhor e seus irmãos... vivem também dos rendimentos do sitio e da chácara?
- Meus dois irmãos eram empregados do INCRA quando chegamos. Agora, um deles pediu demissão para se dedicar às orquídeas. Só o menor continua empregado.... por enquanto.

Vejam só! Admirável! Refaço meus cálculos de cabeça. Uma família como a do senhor Fanker, que eu vejo bem vestido e bem apessoado, não pode viver sem retirar ao menos 2.000 reais mensais dos rendimentos do seu negócio. Isso faz ainda para as duas famílias, pelo menos 4 mil vezes 12, ou seja 48.000 reais. O rendimento da sitioca mais a da chacarita de flores dá, portanto, um rendimento mínimo de 130 mil reais por ano para sustento das famílias dos donos e dos empregados, sem contar os direitos trabalhistas de empregados, impostos municipais, estaduais e federais a pagar, compras de fertilizantes, sementes e agrotóxicos, mais os equipamentos de agricultura. Forçoso acrescentar ao menos 20 a 30 mil reais por ano, o que representa mais de 150 mil reais no seu total. Assombroso! Não me retenho e lanço a
provocação.
- Quer dizer, senhor Fanker, que os seus três hectares de produção lhe dão um rendimento de 50 mil reais por hectare por ano!
Ele me olha surpreso e depois vejo, pelas rugas que surgem na testa, que ele também refaz seus cálculos.
- Não chega a tanto, diz de repente. Pela rapidez da resposta eu vejo que, provavelmente, me enganei para menos e não consigo reter nova provocação:
- Mas dá para viver bem, suas famílias e os empregados.
- Vai-se vivendo, vai-se vivendo, concluiu ele.
Eu continuo na minha linha investigatória.Agora me interessa comparar a atividade deles, cujo valor agregado me parece de excelente nível, com o nível de rendimento da pecuária intensiva, a grande responsável atual na Amazônia pelo desmatamento, pelos impactos e degradação ambiental. Volto correndo para casa para abrir, no computador, o sitio IBGE. O sitio IBGE é algo de fantástico. Se eu fosse o Ministro de Educação, obrigaria as escolas secundárias do país a utilizar o sitio para ensino de todas as disciplinas. Da Aritmética e Matemática até a Sociologia e a Filosofia Chego logo ao sitio e me deleito a contemplar dados comparativos entre Rondônia e Santa Catarina. Escolhi Santa Catarina para, mais tarde, voltar a falar com meu chacareiro Fanker. É um estado rico do sul, com grande atividade agropecuária. A superfície de 96 mil km2 é menos de 1/3 de Rondônia e a população de 5,9 milhões é quatro vezes maior. Para fazer
comparações será necessário sempre ter em conta esses fatores. Reduzir dados ao "per capita". Mas, isso dito, o que me interessa é comparar a rentabilidade da atividade pecuária nos dois estados e isso sempre é possível.

Começo a registrar. Segundo dados de 2007, a população de bovinos é de 11 milhões em Rondônia contra 3,5 milhões em Santa Catarina, o que dá, considerando o numero de estabelecimentos agropecuários, 137 animais em média por estabelecimento em Rondônia e 24 em Santa Catarina. Examino o item sobre Contas Regionais do Brasil e vejo que a renda da pecuária em Santa Catarina é maior que a de Rondônia. Como se pode entender isso? Que a atividade de pecuária em Santa Catarina possa ter um rendimento maior que o de Rondônia, quando o rebanho de Rondônia é 3,2 vezes maior que o de Santa Catarina? Entretanto, é o que ocorre: 1,8 bilhões de reais em Santa Catarina contra 1,4 bilhões em Rondônia. Fuçando os dados do IBGE descubro a razão. A explicação encontra-se no item Censo Agropecuário 2007. Na multiplicidade de atividades produtivas associadas à pecuária em Santa Catarina. Para começar, a produção de leite, para um número praticamente igual de vacas ordenhadas é 2,6 vezes superior em Santa Catarina, com uma média de 2.300 litros por animal por ano contra 714 litros em Rondônia. Além disso, o número de cabeças de suínos é 26 vezes maior em Santa Catarina (6,5 vezes maior em valor per capita). O número de galinhas, de 1,7 milhões em Rondônia, é dez vezes menor do que em Santa Catarina (2,5 vezes menor per capita) enquanto o número de ovos é 18 vezes menor (4,5 vezes menor per capita). Tudo isso explica a rentabilidade menor da atividade produtiva na pecuária em Rondônia.

Além disso, os dados do Censo Agropecuário atestam carências, como a ausência em Rondônia de produção de coelhos, de codornas e de seus ovos, que são altamente rentáveis em Santa Catarina. Mais do que isso, a ausência de atividades como a relativa a mel de abelha, com a produção de 3,5 toneladas anuais em Santa Catarina e apenas incipiente em Rondônia. Assinale-se que a produção de mel, como a de oleaginosas, entre outras, tem direta repercussão em atividades de alto valor agregado na industrialização e comercialização de produtos alimentares. A caracterização está feita. Em Rondônia, grandes propriedades, criação extensiva de gado bovino e ausência de atividades que exigem mão de obra: criação de porcos, galinhas, ovos, codornas e coelhos, produção de mel. Mão de obra empregada na pecuária em Rondônia não existe. Apenas alguns peões se ocupando do gado.

Porque então insistir na produção extensiva de gado bovino? Seria ela de rentabilidade interessante? A análise de dados do Ministério da Agricultura sobre comercialização de carne permite mostrar que sua rentabilidade é extremamente baixa. O valor da carne bovina in natura, depois de oscilar abaixo de 50 reais, nos últimos anos, atingiu, antes da crise global atual,
valores de 80 a 90 reais a arroba. Considerem-se dois fatos: (i) o limite de abate, determinado pelo Ministério da Agricultura, é de 16 arrobas para o animal; (ii) o gado criado extensivamente em pastagens naturais leva em média quatro anos para atingir esse peso. Nesse caso, os 11 milhões de cabeças de gado em Rondônia proporcionam um abate de 2.750 mil reses por ano, na melhor das hipóteses. O rendimento seria de 2.750 mil x 16 arrobas = 44 milhões de arrobas, que ao preço de 90 reais por arroba chega a 3,9 bilhões de reais.

Esse valor ideal da produção é, entretanto, o máximo potencial e na verdade é muito menor, devido a perda de animais, doenças, problemas de transporte etc. Mas digamos que fossem quatro bilhões de reais, o que parece muito e vem merecendo grande interesse da parte do governo federal em função das exportações. Esse total representa um valor produtivo agregado extremamente baixo. Se dividirmos quatro bilhões pela extensão de 8,8 milhões de hectares dos estabelecimentos agropecuários, chegamos ao valor agregado de 454 reais por hectare. Supondo que dos 8,8 milhões de hectares de estabelecimentos agropecuários apenas a metade, isto é 4,4 milhões de hectares sejam dedicados à pecuária bovina (e sabe-se que é muito mais), o rendimento por hectare não ultrapassaria o valor de 1.000 reais.

Neste próximo fim de semana irei buscar umas mudas de florzinhas na chácara do senhor Franker e direi a ele que me enganei. Que o rendimento por hectare da atividade dele com plantas decorativas não é 25 vezes maior que a da pecuária extensiva. É 50 a 100 vezes maior! E vou mostrar-lhe os cálculos. Se ele me perguntar como se explica isso eu vou lhe mostrar.
- Em Rondônia, seu Franker, quem tem um hectare e quer criar boi morre de fome, quem tem dez e insiste é pobretão. Quem tem 100 hectares e só precisa de um par de peões para tocar o gado começa a sair do buraco e tem uma renda mais próxima da sua. Mas quem tem 1.000 hectares fica rico. Agora, naturalmente, o valor agregado para o país é muito pequeno, não cria emprego nem distribui renda, ao contrário do que sucede com sua empresa. Por isso é que eu lhe dei minhas felicitações.

Quando eu efetivamente lhe expliquei tudo isso, no sábado seguinte, o senhor Franker ficou uns instantes entre perplexo e incrédulo. Depois de refletir alguns minutos, argumentou:
- É... mas se todo mundo se meter a fazer plantas decorativas, vai haver concorrência e baixa a renda.
- Muito bem seu Franker, o senhor está ficando craque em economia política. Mas reflita um pouco. Não é só de planta decorativa que vive o homem. O senhor já pensou no que se perde ao deixar de produzir, como o senhor mesmo disse, as orquídeas, por exemplo. Tem lugar para muita gente. As rosas que se vendem em Nova Iorque vem todas da Colômbia. Sustentam numerosos produtores. As bananas ouro também, que se vendem nos Estados Unidos e na Europa, empacotadinhas em celofane. E alem disso, já falamos no mel de abelhas. As abelhas amazônicas, como a /Melípona/, fazem mel muito agradável, não tem ferrão e o gosto é diferente do mel da /Apis/ européia. Não se explora isso de maneira coerente. O senhor já sabia que comerciantes do Japão e da Malásia são os maiores vendedores de peixes decorativos. Os peixinhos coloridos de todas as formas são muitos deles originários do Brasil e da Amazônia. E as frutas tropicais, como o cupuaçu e os araçás de vários tipos. Não para vender in natura, mas com a produção de extratos, geléias, concentrados etc. Sem falar dos destilados alcoólicos. E os palmitos, e os pássaros decorativos. A policia federal vive prendendo contrabandistas de pássaros capturados na floresta. Devia-se, evidentemente, produzi-los em cativeiro para comercialização. Assim como as tartarugas, as pererecas e tudo o que se vê por aqui.

Parei por ali. O senhor Fanker já parecia cansado de tanta conversa. Vou continuar a conversa noutro fim de semana. Também, só faltava mostrar a ele que tudo isso é fruto da ignorância. E não quis assustar o homem com a perspectiva que se abre (ou se fecha) agora com a nova crise econômica-financeira mundial. Porque a crise já chegou no boi e vai agravar a situação dos produtores. Em São Paulo, no inicio do século 20, também, todo os produtores agrícolas se meteram a produzir café. Foi tanto café que quando se deu a crise de 1929, o valor do café caiu a zero e queimou-se café nas locomotivas. Foi um escândalo mundial. E a pecuária extensiva é a que vai sofrer agora. O preço do boi, por falta de mercado, despencou e no momento que escrevo foi para 50 reais a arroba. Os frigoríficos fecham um após o outro. E o que se vai fazer com tanto boi no pasto?

A experiência da crise de 1929 talvez seja instrutiva para Rondônia e para a Amazônia. Diversificar as produções agrícolas e pecuárias. Estimular a criação de pequenos e médios estabelecimentos. Mas, para isso falta escola. Faltam cooperativas. Em São Paulo nos anos 1930, enquanto se queimava café nas locomotivas, criavam-se as escolas agrícolas, fundaram-se os Institutos Agronômicos, como o de Campinas, o Instituto Biológico e outros. O prédio da atual Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, uma das mais conceituadas do país, foi construído para ser uma escola agrícola para técnicos de nível básico e médio. Se não se criarem escolas agrícolas, escolas técnicas de Agricultura e Pecuária, nunca teremos pequenos e médios agricultores e pecuaristas competentes, capazes de desenvolver a Agropecuária moderna, dinâmica e diversificada que existe em Santa Catarina.

Os grandes estabelecimentos agropecuários de Rondônia e do Pará devem deixar as atividades de pecuária bovina extensiva, associadas à atividade madeireira de desflorestamento e degradação ambiental. Mas não devem largar a monocultura de boi pela monocultura da cana de açúcar ou da soja na espera da próxima crise."

http://www.revistanossocaminho.com.br/pagina_01rev02.htm

http://www.abc.org.br/%7Elhildebrando

http://www.abc.org.br/www.ibge.gov.br/estadosat/perfilphp?sigla


texto encaminhado pela Dra Ima Vieira, do Museu Goeldi para a rede GEOMA

terça-feira, 30 de março de 2010

Racionalidade nos Transportes Publicos

Friedman conclama americanos a deixar de ser devoradores de riquezas acumuladas e naturais.

Trechos
Por José Eli da Veiga, para o Valor, de São Paulo

Geração gafanhoto
"Acabamos nos transformando na 'geração gafanhoto' - soltamos nosso gafanhoto interior e devoramos nossa riqueza nacional, assim como nossos recursos naturais, em quantidades assombrosas e em curto espaço de tempo, legando para a próxima geração déficit econômico e ecológico."

Maná americano
"Após a Guerra Fria, surgiu a sensação de que tínhamos o 'direito' a viver com largueza, tão prodigamente quanto quiséssemos, sem levar em conta consequências disso para o mundo financeiro ou o mundo real."

A crise não deve ser desperdiçada

“Quente, Plano e Lotado” - Os Desafios e Oportunidades de um Novo Mundo"
Thomas L. Friedman. Trad.: Paulo Afonso e Cristina Cavalcanti
Objetiva, 637 págs., R$ 67,90

Carta do Zé agricultor para Luis da cidade

Luciano Pizzatto (*)

Luis,
Quanto tempo. Sou o Zé, seu colega de ginásio, que chegava sempre atrasado, pois a Kombi que pegava no ponto perto do sítio atrasava um pouco. Lembra, né, o do sapato sujo. A professora nunca entendeu que tinha de caminhar 4 km até o ponto da Kombi na ida e volta e o sapato sujava.

Lembra? Se não, sou o Zé com sono... hehe. A Kombi parava às onze da noite no ponto de volta, e com a caminhada ia dormi lá pela uma, e o pai precisava de ajuda para ordenhá as vaca às 5h30 toda manhã. Dava um sono. Agora lembra, né Luis?!

Pois é. Tô pensando em mudá ai com você.
Não que seja ruim o sítio, aqui é uma maravilha. Mato, passarinho, ar bom. Só que acho que tô estragando a vida de você Luis, e teus amigo ai na cidade. To vendo todo mundo fala que nóis da agricultura estamo destruindo o meio ambiente.

Veja só. O sitio do pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que pará de estuda) fica só a meia hora ai da Capital, e depois dos 4 km a pé, só 10 minuto da sede do município. Mas continuo sem Luz porque os Poste não podem passar por uma tal de APPA que criaram aqui. A água vem do poço, uma maravilha, mas um homem veio e falo que tenho que faze uma outorga e paga uma taxa de uso, porque a água vai acabá. Se falo deve ser verdade.

Pra ajudá com as 12 vaca de leite (o pai foi, né ...) contratei o Juca, filho do vizinho, carteira assinada, salário mínimo, morava no fundo de casa, comia com a gente, tudo de bão. Mas também veio outro homem aqui, e falo que se o Juca fosse ordenha as 5:30 tinha que recebe mais, e não podia trabalha sábado e domingo (mas as vaca não param de faze leite no fim de semana). Também visito a casinha dele, e disse que o beliche tava 2 cm menor do que devia, e a lâmpada (tenho gerador, não te contei !) estava em cima do fogão era do tipo que se esquentasse podia explodi (não entendi ?). A comida que nóis fazia junto tinha que faze parte do salário dele. Bom, Luis tive que pedi pro Juca voltá pra casa, desempregado, mas protegido agora pelo tal homem. Só que acho que não deu certo, soube que foi preso na cidade roubando comida. Do tal homem que veio protege ele, não sei se tava junto.

Na Capital também é assim né, Luis? Tua empregada vai pra uma casa boa toda noite, de carro, tranquila. Você não deixa ela morá nas tal favela, ou beira de rio, porque senão te multam ou o homem vai aí mandar você dar casa boa, e um montão de outras coisa. É tudo igual aí né?

Mas agora, eu e a Maria (lembra dela, casei ) fazemo a ordenha as 5:30, levamo o leite de carroça até onde era o ponto da Kombi, e a cooperativa pega todo dia, se não chove. Se chove, perco o leite e dô pros porco.

Té que o Juca fez economia pra nóis, pois antes me sobrava só um salário por mês, e agora eu e Maria temos sobrado dois salário por mês. Melhoro. Os porco não, pois também veio outro homem e disse que a distancia do Rio não podia ser 20 metro e tinha que derruba tudo e fazer a 30 metro. Também colocá umas coisa pra protege o Rio. Achei que ele tava certo e disse que ia fazê, e sozinho ia demorá uns trinta dia, só que mesmo assim ele me multo, e pra pagá vendi os porco e a pocilga, e fiquei só com as vaca. O promotor disse que desta vez por este crime não vai me prendê, e fez eu dá cesta básica pro orfanato.

O Luis, ai quando vocês sujam o Rio também paga multa né?

Agora a água do poço posso pagá, mas to preocupado com a água do Rio. Todo ele aqui deve ser como na tua cidade Luis, protegido, tem mato dos dois lado, as vaca não chegam nele, não tem erosão, a pocilga acabo .... Só que algo tá errado, pois ele fede e a água é preta e já subi o Rio até a divisa da Capital, e ele vem todo sujo e fedendo ai da tua terra.

Mas vocês não fazem isto né Luis. Pois aqui a multa é grande, e dá prisão.
Cortá árvore então, vige. Tinha uma árvore grande que murcho e ia morre, então pedi pra eu tira, aproveitá a madeira pois até podia cair em cima da casa. Como ninguém respondeu ai do escritório que fui, pedi na Capital (não tem aqui não), depois de uns 8 mes, quando a árvore morreu e tava apodrecendo, resolvi tirar, e veja Luis, no outro dia já tinha um fiscal aqui e levei uma multa. Acho que desta vez me prende.

Tô preocupado Luis, pois no radio deu que a nova Lei vai dá multa de 500,00 a 20.000,00 por hectare e por dia da propriedade que tenha algo errado por aqui. Calculei por 500,00 e vi que perco o sitio em uma semana. Então é melhor vende, e ir morá onde todo mundo cuida da ecologia, pois não tem multa ai. Tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazê nada errado, só falei das coisa por ter certeza que a Lei é pra todos nois.

E vou morar com vc, Luis. Mais fique tranqüilo, vou usá o dinheiro primeiro pra compra aquela coisa branca, a geladeira, que aqui no sitio eu encho com tudo que produzo na roça, no pomar, com as vaquinha, e ai na cidade, diz que é fácil, é só abri e a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de nóis, os criminoso aqui da roça.

Até Luis.

Ah, desculpe Luis, não pude mandar a carta com papel reciclado pois não existe por aqui, mas não conte até eu vendê o sitio.

(Todos os fatos e situações de multas e exigências são baseados em dados verdadeiros. A sátira não visa atenuar responsabilidades, mas alertar o quanto o tratamento ambiental é desiqual e discricionário entre o meio rural e o meio urbano.)

* É engenheiro florestal, especialista em direito socioambiental e empresário, diretor de Parques Nacionais e Reservas do IBDF/IBAMA 88/89, deputado desde 1989, detentor do 1º Prêmio Nacional de Ecologia.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Eu sei, mas não devia


Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma. (1972)

Estou encantada com a minha memória (ai, como me amo!), nem acreditava que me lembraria. Eu estudei este texto na minha infância, lembro que me marcou muito e a partir de então a palavra costume foi me assustando. Sempre tive medo de me acostumar...às pessoas, situações e lugares...mas como diz o texto nos acostumamos mesmo assim!
Não que eu seja a pessoa mais dinamica ou a pessoa mais desistente da face da terra, mas tenho medo de me acostumar com as coisas ruins, com os meus desamores, com a rotina e com o gosto amargo da indiferença.
Tenho medo de me acreditar assim para o resto da vida, como se em algum momento você perdeu o fio de Ariadne que te faz sair do labirinto.
Sempre que me pego desesperada com a vida e com os Homens (este no sentido genérico, por favor!) ...me lembro dos meus planos bobos....de tão bobos que me fazem acordar todos os dias...

Por fim,
É preciso não esquecer nada/ Cecilia Meireles

"É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.
O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.
O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos severos conosco,
pois o resto não nos pertence."

"Deus nos fez perfeitos e não escolhe os capacitados, capacita os
escolhidos. Fazer ou não fazer algo só depende de nossa vontade e perseverança."
(Albert Einstein)

quinta-feira, 18 de março de 2010

A Internacionalização do Mundo

por Cristovam Buarque*

Durante debate em uma Universidade, nos Estados Unidos, fui questionado sobre o que pensava da internacionalização da Amazônia. O jovem americano introduziu sua pergunta dizendo que esperava a resposta de um humanista e não de um brasileiro. Foi a primeira vez que um debatedor determinou a ótica humanista como o ponto de partida para uma resposta minha.
De fato, como brasileiro eu simplesmente falaria contra a internacionalização da Amazônia. Por mais que nossos governos não tenham o devido cuidado com esse patrimônio, ele é nosso.
Respondi que, como humanista, sentindo o risco da degradação ambiental que sofre a Amazônia, podia imaginar a sua internacionalização, como também de tudo o mais que tem importância para a Humanidade.

Se a Amazônia, sob uma ótica humanista, deve ser internacionalizada, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro. O petróleo é tão importante para o bem-estar da humanidade quanto a Amazônia para o nosso futuro. Apesar disso, os donos das reservas sentem-se no direito de aumentar ou diminuir a extração de petróleo e subir ou não o seu preço. Os ricos do mundo, no direito de queimar esse imenso patrimônio da Humanidade.
Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser internacionalizado. Se a Amazônia é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser queimada pela vontade de um dono, ou de um país. Queimar a Amazônia é tão grave quanto o desemprego provocado pelas decisões arbitrárias dos especuladores globais. Não podemos deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar países inteiros na volúpia da especulação.

Antes mesmo da Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer apenas à França. Cada museu do mundo é guardião das mais belas peças produzidas pelo gênio humano. Não se pode deixar esse patrimônio cultural, como o patrimônio natural amazônico, seja manipulado e destruído pelo gosto de um proprietário ou de um país. Não faz muito, um milionário japonês, decidiu enterrar com ele um quadro de um grande mestre. Antes disso, aquele quadro deveria ter sido internacionalizado.

Durante o encontro em que recebi a pergunta, as Nações Unidas reuniam o Fórum do Milênio, mas alguns presidentes de países tiveram dificuldades em comparecer por constrangimentos na fronteira dos EUA. Por isso, eu disse que Nova York, como sede das Nações Unidas, deveria ser internacionalizada. Pelo menos Manhatan deveria pertencer a toda a Humanidade. Assim como Paris, Veneza, Roma, Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, cada cidade, com sua beleza especifica, sua história do mundo, deveria pertencer ao mundo inteiro.

Se os EUA querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos todos os arsenais nucleares dos EUA. Até porque eles já demonstraram que são capazes de usar essas armas, provocando uma destruição milhares de vezes maior do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil.

Nos seus debates, os atuais candidatos à presidência dos EUA têm defendido a idéia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida. Comecemos usando essa dívida para garantir que cada criança do mundo tenha possibilidade de ir à escola.

Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o pais onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro. Ainda mais do que merece a Amazônia. Quando os dirigentes tratarem as crianças pobres do mundo como um patrimônio da Humanidade, eles não deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar; que morram quando deveriam viver.

Como humanista, aceito defender a internacionalização do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa.

(*) Cristovam Buarque, 59, doutor em economia, é ministro da Educação. Foi reitor da UnB (1985-89) e governador do Distrito Federal (1995-98).
Fontes: http://www.almacarioca.com.br/cro38.htm e http://www.educacao.gov.br/acs/pdf/a160203.pdf.

materia encaminhada por Grasiela Rodrigues

O Brasil é o maior ''exportador'' de água virtual do mundo

Entrevista especial com John Anthony Allan

3568Por Graziela Wolfart

“A forma como usamos a terra e os recursos hídricos no passado negligenciava os impactos ambientais impostos pela agricultura intensiva. Esses custos não se refletem nos preços das commodities alimentícias vendidas e compradas internacionalmente, e nem mesmo nos preços dos alimentos no mercado interno. O Brasil não deveria correr para satisfazer a demanda global por sua água, colocando commodities no mercado mundial a preços que impossibilitem que o ambiente das terras e dos recursos hídricos do Brasil seja usado de modo sustentável”. Essas são as palavras do cientista britânico John Anthony Allan, escritas por ele na entrevista que aceitou conceder, por e-mail. Conhecido no mundo inteiro por ter criado o conceito de água virtual, explicado a seguir, Tony Allan identifica que as grandes economias de água podem ser feitas no setor agrícola, onde os volumes de água usados são vastos. “Os agricultores tomam conta de toda a água verde. Junto com os engenheiros, eles tomam conta de toda a água azul usada na agricultura irrigada. Junto, isto representa 80% da água usada no mundo inteiro. Os agricultores detêm a chave para a segurança da água – especialmente no Brasil”, alerta.

John Anthony Allan é professor no King’s College de Londres e na Escola de Estudos Orientais e Africanos. Pioneiro em conceitos chave para a compreensão e a divulgação das questões referentes à problemática da água e à sua conexão com a agricultura, as mudanças climáticas, a economia e a política, Tony Allan foi laureado com o “Prêmio da Água de Estocolmo 2008” (2008 Stockholm Water Prize).

Confira a entrevista.

O senhor pode explicar o conceito de “água virtual”? Como fazer o cálculo de quanto cada produto consume de água?

John Anthony Allan
- Os alimentos e outras commodities necessitam de água para serem produzidos. As commodities alimentícias possuem um teor de água particularmente grande. Por exemplo, as seguintes quantidades de água são necessárias para produzir 1 quilo de:

Trigo: 1.300 litros
Milho: 900
Arroz: 3.400
Carne de frango: 3.900
Carne de porco: 4.800
Carne de ovelha: 6.100
Carne de gado: 15.500
Algodão: 11.000

Ou a seguinte quantidade de litros de água é necessária para produzir 1 unidade dos seguintes produtos:

Um litro de leite: 1.000 litros
Uma xícara de chá: 30
Uma xícara de café: 140
Uma folha de papel: 10
Uma fatia de pão: 40
Uma maçã: 70
Uma camiseta: 2.700

A água embutida nisso é chamada de água virtual.

Quando uma commodity é exportada de um país para outro, o país importador se torna seguro em termos de água e alimentos contanto que tenha uma economia que seja diversificada, e as pessoas tenham meios de vida que lhes possibilitem comprar alimentos importados. Das 210 economias existentes no mundo, ao menos 160 são economias “importadoras” de água virtual. Há apenas cerca de 10 economias que têm um excedente de água significativo que pode ser “exportado” em forma virtual. Esses países incluem os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, Argentina e França. O Brasil é, em potencial, o maior “exportador” de água virtual do mundo.

Quais as maiores consequências ambientais para um país como o Brasil, a partir desta consideração de ser o maior exportador de água virtual do mundo?

John Anthony Allan
- A forma como usamos a terra e os recursos hídricos no passado negligenciava os impactos ambientais impostos pela agricultura intensiva. Esses custos não se refletem nos preços das commodities alimentícias vendidas e compradas internacionalmente, e nem mesmo nos preços dos alimentos no mercado interno. O Brasil não deveria correr para satisfazer a demanda global por sua água, colocando commodities no mercado mundial a preços que impossibilitem que o ambiente das terras e dos recursos hídricos do Brasil seja usado de modo sustentável.

Como podemos fazer para que essa “água virtual” seja contabilizada e informada para os consumidores? O senhor acredita que isso ajudaria na questão da economia da água?

John Anthony Allan
- Será muito difícil fazer com que o valor da água usada na produção de alimentos de origem vegetal e de carne se reflita no preço dos alimentos. Nem os agricultores que produzem as commodities, nem os comerciantes que as tornam disponíveis nas economias importadoras de alimentos, nem seus clientes e consumidores estão conscientes do teor de água embutida nelas e de seu valor. É improvável que a regulamentação cause algum impacto porque os números sobre o teor de água são muito imprecisos e podem ser facilmente questionados. Educar os consumidores é uma forma mais provável de mudar seu comportamento e sua forma de consumo. Os desafios políticos são imensos, especialmente numa economia de mercado.

Qual a importância de se divulgar a “pegada da água” e que tipo de ações deve ser pensado como resposta aos resultados apresentados por essa “água virtual”?

John Anthony Allan
-
O conceito de “pegada de água” é uma forma muito eficaz de contribuir para conscientizar os agricultores, negociantes, supermercados e consumidores a respeito do teor de água das commodities que eles produzem, vendem ou compram e consomem. A comparação da pegada de água de uma dieta pesada à base de carne de gado que consome 5 m3 de água por dia com a de um vegetariano que consome 2,5 m3 de água por dia apresenta um resultado crasso. Tem-se mostrado que uma dieta pesada à base de carne de gado e outros produtos de origem animal é muito ruim para a saúde de um indivíduo. Ela também é muito ruim para o meio ambiente aquático.

De que forma o tratamento de esgotos contribui para a economia da água? Quanto se gasta de água para fazer um saneamento básico de qualidade?

John Anthony Allan -
A maior parte da água é usada para produzir alimentos. Mais de 80% da água que um indivíduo ou uma economia necessita são usados na produção de alimentos. 70% dessa água é água verde – ou seja, água proveniente de chuva que é retida no solo. A maior parte da produção agrícola do Brasil vem dessa água que está no solo. Os outros 30% são constituídos de água azul ou água doce. A água doce vem dos rios e do lençol freático. A água que usamos em casa e para trabalhos que não a agricultura corresponde a entre 10 e 20% da água de que um indivíduo ou uma economia necessita. A proporção depende de quão industrializada é a economia e de quão elevado é o padrão de vida. Os efluentes líquidos e o esgoto são gerados pelo uso doméstico e industrial de água. Mediante um investimento considerável, os efluentes podem ser reutilizados. Mas é preciso lembrar que esses efluentes são sempre uma pequena proporção do total de água de que a sociedade necessita. É cada vez mais possível e apropriado que as economias avançadas invistam na reutilização de efluentes. Mas a decisão política de alocar verbas para investir no tratamento de efluentes urbanos tem de ser ponderada levando em conta o valor do investimento em outros setores, como educação, saúde, comunicações, energia etc. As grandes economias de água podem ser feitas no setor agrícola, onde os volumes de água usados são vastos. Os agricultores tomam conta de toda a água verde. Ao lado com os engenheiros, eles tomam conta de toda a água azul usada na agricultura irrigada. Junto, isto representa 80% da água usada no mundo inteiro. Os agricultores detêm a chave para a segurança da água – especialmente no Brasil.


Tradução é de Luís Marcos Sander.





Fonte: MST / IHU Online.

Água engarrafada, o novo ícone do desperdício

por Andrea Vialli

ÁGUA

No Brasil a discussão ainda é embrionária. Mas em países da Europa e nos Estados Unidos a água engarrafada está na mira de críticos de seus processos de produção e de ambientalistas há pelo menos cinco anos. Recentemente as Nações Unidas se uniram a esse coro: a água engarrafada se tornou, assim como as sacolas plásticas do supermercado, um ícone do desperdício dos tempos atuais. E também da desigualdade social.

Isso porque enquanto cerca de 900 milhões de pessoas no mundo ainda não tem acesso à água de boa qualidade, segundo dados da ONU, uma parte mais abastada consome água engarrafada, mesmo tendo acesso à água tratada. E o consumo excessivo de água engarrafada em todo o mundo faz com que empresas superexplorem aquíferos, deixando um legado de falta d’água para gerações seguintes – enquanto o lucro com a venda de água permanece privatizado.

A maior parte da água engarrafada comercializada no mundo é feita por grandes multinacionais, como Nestlé, Danone, Coca-Cola, PepsiCo, entre outras. As empresas têm sido acusadas de criar uma falsa demanda pela água engarrafada, mesmo em lugares onde a qualidade da água fornecida pelas companhias de saneamento é considerada satisfatória (alô, grandes cidades brasileiras!). Há quem diga que a “obrigatoriedade” de se beber dois litros de água por dia foi outra falsa demanda criada pela indústria de bebidas.

Outro problema criado pelo aumento do consumo dessas águas é a poluição causada pelas embalagens. As empresas estimulam o consumo, sem se preocupar em dar um destino correto às garrafas plásticas, gerando ainda mais lixo, que como sabemos, vão parar no lugar errado. Só nos EUA são descartadas por ano 50 bilhões de embalagens plásticas de água. Menos de 10% são recicladas.

A ONU já lançou campanhas para que restaurantes passassem a oferecer a seus clientes a opção de água filtrada, sem custo para o cliente. Em recente viagem à Europa, pude constatar que muitos restaurantes aderiram, enquanto outros nunca deixaram de servir ‘tap water’ – água de torneira. No Brasil a tendência já chegou – em São Paulo, foi criado o projeto Água na Jarra, uma iniciativa da economista Letycia Janot e da advogada Maria Fernanda Franco, que ainda não foi lançada oficialmente mas que terá apoio da prefeitura da capital e do governo paulista. Alguns restaurantes já aderiram: quem quiser saber mais pode consultar o site aqui.

Por último, o vídeo The Story of Bottled Water (”A História da Água Engarrafada”, em tradução livre), produzido por Annie Leonard (a mesmo do “A História das Coisas”, um sucesso na internet) e lançado no Dia Mundial da Água expõe as razões para se reduzir o consumo das garrafinhas de água. Vale a pena tomar conhecimento e refletir sobre hábitos que acabam se tornando banais mas que têm seus impactos sobre o planeta.

terça-feira, 16 de março de 2010

MARINA, BOA SURPRESA

Editorial da Folha de S. Paulo
16/mar/2010

O COORDENADOR da pré-candidatura de Marina Silva (PV) à Presidência, Alfredo Sirkis, lançou mão de uma fórmula astuciosa para indicar o lugar da senadora no espectro ideológico: ela não se encontraria nem à esquerda, nem à direita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva -mas à frente.

A ideia de uma opção eleitoral "pós-Lula", que resiste à desgastada e por vezes enganosa oposição entre petistas e tucanos, é uma estratégia pertinente.

Ajusta-se, antes de tudo, à marca da candidatura, que prescreve novas relações entre economia e ambiente - algo difícil de ser enquadrado nos surrados rótulos esquerda e direita. A pauta ambiental, aliás, desperta com frequência rejeições das duas alas, embora tenha-se tornado eleitoralmente vantajoso posar de defensor da natureza.

Essa ambiguidade é nítida na súbita "conversão" ao discurso contra o efeito estufa da ministra Dilma Rousseff -a "mãe" do desenvolvimentismo estatal. De maneira análoga, na oposição é comum a transigência com agressões ao ambiente, embora o governador José Serra também tenha anunciado metas de redução de emissões em São Paulo.

Mas se a presença de Marina cobra dos adversários mais atenção com a temática ecológica, sua candidatura, em sentido contrário, vê-se instada a apresentar propostas consistentes em outras áreas. É o que tem feito -e até aqui de modo mais claro do que os rivais. A entrevista com o possível vice da chapa, o empresário Guilherme Leal, que a Folha traz hoje, é prova disso.

Sabe-se que a candidata dará ênfase à educação; que defenderá uma concepção moderna de Estado, mais leve e eficiente; que será favorável à racionalização tributária; que preservará a autonomia do Banco Central; e que manterá o Bolsa Família.

Para quem imaginava uma postulação confinada a clichês verdes, Marina Silva vai-se revelando uma boa surpresa.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Chegou o Enlouquecimento Global


De todos os festivais de absurdos que regularmente assolam a política americana, sem dúvida o mais disparatado é o argumento de que o fato de Washington estar sofrendo um inverno especialmente rigoroso prova que as mudanças climáticas não passam de lorota e, por isso, não precisamos nos preocupar com toda essa conversa de afeminados, como energia renovável, painéis solares e taxas sobre emissões de carbono. Cara, o que se precisa é meter a broca e abrir mais poços


Thomas L. Friedman
NY Times - 17/02/2010

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Quando vemos legisladores como o senador Jim DeMint, da Carolina do Sul, anunciando pelo Twitter que “vai continuar nevando até o Al Gore pedir ‘água’”, ou lemos que os netos do senador James Inhofe, de Oklahoma, estão construindo ao lado do Congresso americano um iglu com uma grande placa dizendo “A Nova Casa de Al Gore”, acho que é o caso de perguntar se ainda é possível uma discussão consequente sobre a questão do clima e da energia.

A comunidade científica não está isenta de culpa. Os climatologistas sabiam muito bem que iriam enfrentar forças poderosas – desde as empresas petrolíferas e mineradoras de carvão que financiam os estudos dos que duvidam das mudanças climáticas, passando por conservadores que odeiam tudo o que implica mais regulamentações governamentais, até a Câmara do Comércio, disposta a resistir a qualquer imposto sobre a energia. Por esse motivo, os especialistas no clima não podem se permitir nenhuma vulnerabilidade, como citar pesquisas não verificadas por seus pares ou deixar de responder a questões legítimas – como ocorreu com a Unidade de Pesquisa Climática da Universidade de East Anglia e com o IPCC - Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas.

Embora exista uma montanha de pesquisas, feitas por múltiplas instituições, sobre a realidade das mudanças no clima, é cada vez mais evidente o desconforto do público. Afinal, quem está com a razão? A meu ver, a comunidade de climatologistas deveria reunir seus principais especialistas – vinculados a instituições como a NASA, os laboratórios nacionais americanos, o MIT - Massachusetts Institute of Technology, a Universidade Stanford, o California Institute of Technology e o Hadley Centre do Met Office britânico – e produzir um documento simples de 50 páginas. Ele teria como título “O Que Sabemos” e apresentaria um resumo de tudo o que já se sabe sobre as mudanças climáticas em uma linguagem compreensível por um estudante do primeiro grau – e com incontestáveis notas de rodapé aprovadas pela comunidade científica.

Ao mesmo tempo, também deveriam incluir um sumário de todos os exageros desvairados e equívocos propalados pelos céticos das mudanças climáticas – assim como uma relação dos responsáveis pelo financiamento desses indivíduos. Chegou a hora de os climatologistas abandonarem a posição defensiva. O físico Joseph Romm, um dos principais autores que tratam das questões climáticas, está divulgando no website climateprogress.org a sua própria lista dos melhores artigos científicos sobre todos os aspectos das mudanças climáticas, para esclarecimento daqueles hoje interessados em um resumo conciso das questões.

Gostaria também de enfatizar alguns pontos:

1) Vamos evitar a expressão “aquecimento global”. Seria muito melhor dizer “enlouquecimento global”, pois na verdade é isto o que ocorre quando sobem as temperaturas globais e muda o clima. O clima fica enlouquecido. Espera-se que as regiões quentes fiquem mais quentes, as úmidas mais úmidas, as secas mais secas e aumente a quantidade de tempestades mais violentas.
O fato de ter nevado como jamais nevou em Washington – ao mesmo tempo que chovia nos Jogos Olímpicos de Inverno no Canadá, e a Austrália sofre com uma seca recordista que já dura treze anos seguidos – só vem confirmar o que se prevê em todos os estudos importantes sobre a mudança climática: o clima vai ficar enlouquecido; algumas áreas vão receber mais chuva do que nunca; e outras vão ficar mais secas do que nunca;

2) Historicamente, sabemos que o clima passou por lentos ciclos de aquecimento e resfriamento, desde as Eras Glaciais até períodos de temperaturas mais altas, em parte influenciados por mudanças na órbita da Terra e, portanto, pela quantidade de radiação solar recebida pelas diferentes regiões do planeta. O foco do debate atual está em saber se os seres humanos – pelo fato de estarem emitindo tanto carbono e adensando a camada de gases do efeito estufa em torno do planeta de modo que a sua atmosfera tende a ficar mais quente – de fato estão intensificando rapidamente os ciclos naturais de variação de temperatura até um perigoso ponto de ruptura;

3) Aqueles que defendem a adoção de medidas estão dizendo o seguinte: “Como o aquecimento provocado pelos seres humanos é irreversível e potencialmente catastrófico, vale a pena fazermos um seguro – por meio de investimentos em fontes renováveis de energia, em eficiência energética e em transportes de massa – pois esse seguro vai na realidade nos tornar mais ricos e mais protegidos”. Vamos importar menos petróleo, inventar e exportar mais produtos baseados em tecnologias limpas, enviar menos dólares para o exterior em troca de petróleo e, mais importante, reduzir o fluxo de dólares que vem sustentando os piores petro-ditadores do mundo, os quais indiretamente financiam os terroristas e as escolas em que estes se formam;

4) Mesmo que a mudança climática seja menos catastrófica do que temem alguns, em um mundo no qual se prevê um crescimento demográfico de 6,7 bilhões para 9,2 bilhões de pessoas até 2050, com cada vez mais gente empenhada em viver como os americanos, é inevitável que haja uma explosão na demanda por energia renovável e por água limpa. Obviamente este é um setor que está prestes a se tornar crucial em termos globais.

A China evidentemente sabe disso, e por este motivo está investindo vigorosamente em tecnologias limpas, eficiência energética e trens de alta velocidade. Os chineses vislumbram as tendências futuras e estão apostando nelas. Na verdade, desconfio que, bem agora, já estão rindo de nós em silêncio. E o Irã, a Rússia, a Venezuela e todo o bando da OPEP estão brindando entre eles. Nada serve melhor aos seus interesses do que ver os americanos confusos a respeito das mudanças no clima e, portanto, menos empenhados em adotar tecnologias limpas, garantindo-se assim que continuem dependentes do petróleo. Sim, senhor, esta é uma bela aurora para a Arábia Saudita.

domingo, 7 de março de 2010

UMA TERRA DE NINGUÉM?

Jornal *O Estado de S.Paulo* - Domingo, 7 de março de 2010

Para cosmólogo, a pior catástrofe não são os terremotos, mas a onda de desleixo que avassala o planeta

*MARTIN REES*
em entrevista para Christian Carvalho Cruz


Terremotos, inundações, nevascas, tsunamis e outros desastres naturais matando tantas pessoas pelo mundo seriam sinais do início do fim dos tempos?

Não há evidência sólida de que esses eventos sejam mais frequentes agora do que no passado. Mas é claro que as consequências são mais severas, porque há mais pessoas e por causa da maneira como nós vivemos nas cidades.

Gelo diminuindo no Ártico, iceberg que se desprende da Antártida. O sr. crê em aquecimento global?

Acho que há indícios bastante fortes de que o mundo está se aquecendo por causa das atividades humanas. Mais importante: nós sabemos que a concentração de dióxido de carbono no ar é maior hoje do que foi por centenas de milhares de anos e, se continuarmos a depender da energia de combustíveis fósseis, no final deste século essa concentração terá duas ou até três vezes o nível observado no período pré-industrial. A física simples sugere, então, que há um risco alto e real de mudanças climáticas graves e irreversíveis.

A capacidade do ser humano de se adaptar a condições de vida adversas impede que ele reaja e faça algo para evitar o próprio fim?

Sim, nós podemos nos adaptar. Mas será que, em vez disso, não deveríamos tentar impedir que o mundo se altere a ponto de o meio ambiente ser irreversivelmente degradado e a biodiversidade, destruída? O mundo desenvolvido precisa ser mais eficiente no uso da sua energia. Uma enorme quantidade de calor é desperdiçada por ineficiência das edificações e (especialmente nos Estados Unidos) por conta do excessivo transporte rodoviário, extravagante na utilização de combustível. Temos de embarcar nas novas tecnologias do século 21 e garantir que o resto do mundo evite os erros cometidos pelos Estados Unidos e pela Europa.

Ainda temos tempo para evitar o fim ou devemos nos resignar?

A aplicação prudente da ciência e a distribuição justa dos benefícios da globalização entre o mundo desenvolvido e o mundo em desenvolvimento reduziriam o risco de danos à nossa civilização. A crise financeira nos fez lembrar do perigo de acontecimentos imprevisíveis - eles têm baixa probabilidade de acontecer, mas, quando acontecem, as consequências podem ser desastrosas. A ação internacional foi eficaz na prevenção de um colapso financeiro completo. Mas o foco sobre os bancos destacou as injustiças sociais decorrentes das enormes desigualdades em termos de riqueza. A crescente desigualdade, especialmente entre a elite financeira e o resto, é socialmente corrosiva. O prestígio dos banqueiros deve ser reduzido ao dos corretores de imóveis ou dos vendedores de automóveis.

Por que o sr. diz que temos 50% de chance de sobreviver ao século 21?

Eu não digo exatamente isso. Eu acredito que iremos sobreviver, mas há 50% de chance de nossa civilização sofrer um sério revés até lá. É difícil prever em que grau estará a evolução tecnológica 25 anos adiante. Lembre-se que décadas atrás a internet, o iPhone e a navegação por satélite (GPS) pareceriam bruxaria. Precisamos garantir que as inovações tecnológicas que virão sejam usadas para o bem, como essas que citei têm sido. E temos que aceitar que os riscos e os desafios éticos da biologia sintética sejam tratados por um acordo internacional. Acima de tudo há o desafio político para evitar conflitos em um mundo no qual será cada vez mais difícil obter equilíbrio entre o autoritarismo e a anarquia.

Por que o sr. acredita nisso?

Porque pequenos grupos criminosos ou dissidentes (ou mesmo indivíduos) estarão mais habilitados pela tecnologia moderna, podendo causar perturbações muito maiores. Vai ser mais difícil preservar as liberdades tradicionais.

O sr. também diz que, se sobrevivermos, um futuro glorioso nos espera. Que futuro é esse?

Como astrônomo, eu sei que o Sol não está nem sequer na metade de sua existência. Levou 4 bilhões de anos para que nós evoluíssemos desde o primeiro sinal de vida. Mas, tendo em vista o que resta de tempo ao Sol, ainda há pelo menos 5 bilhões de anos pela frente para uma evolução "pós-humana", sobre ou fora da Terra. Os seres humanos não são o ponto culminante da evolução, assim como não o era o primeiro peixe que rastejou para a terra seca.

O que é evolução pós-humana?

Não há mais tempo pela frente do que o tempo que foi necessário para evoluirmos até aqui, a partir do lodo primitivo. Assim, a vida pós-humana poderia ser diversa e maravilhosa - e tão diferente de nós como nós somos de um inseto.

Quais os três maiores perigos que enfrentaremos neste século?

Primeiro: que os seres humanos, coletivamente, devastem a biosfera, destruam a biodiversidade e mudem o clima de maneira nociva. Segundo: que possa haver uma guerra nuclear entre novas superpotências. Terceiro: que alguma tecnologia nova possa apresentar risco se for usada de modo equivocado ou por terroristas.

Afora as pessoas muito religiosas, gostamos de acreditar que a ciência sempre será a nossa salvação, sempre encontrará maneiras de nos manter aqui, num razoável bem-estar. Quando leio seus textos fico com a sensação de que a ciência, na verdade, possa se tornar o nosso maior algoz. O sr. é um cientista que teme o que a ciência pode fazer?

Eu tenho grandes esperanças, e também grandes medos. Acredito que a resposta para os problemas do mundo não seja parar a ciência, mas prosseguir com ela e conduzi-la melhor. As tecnologias que alimentam o crescimento econômico hoje - miniaturização, tecnologia da informação e medicina - são benéficas no modo como estão poupando energia e matérias-primas e beneficiam tanto os ricos quanto os pobres.

A ciência deve ser controlada? Quem estabeleceria os limites?

Os limites são fixados pela prudência e pela ética. As decisões sobre esses limites não devem ser feitas só por cientistas, mas pelo grande público em geral. É por isso que é importante que todos tenham algum interesse pela ciência. Do contrário não há debate político sério sobre os problemas (e há cada vez mais deles) nos quais a ciência desempenha um papel, como meio ambiente, energia, saúde, segurança.

A humanidade precisava da ovelha Dolly?

Nós não queremos a reprodução humana por clonagem, mas podemos obter reais benefícios médicos e agrícolas a partir da biotecnologia moderna. Na ciência sempre há riscos quando fazemos algo pela primeira vez. Mas, obviamente, devemos aceitar alguns desses riscos. Do contrário não avançamos.

O sr. mantém a aposta de que um evento bioterrorista ou de bioerro fará 1 milhão de vítimas até 2020?

Eu tenho esperança de perder essa aposta. Mas o risco é real.

Os ambientalistas repetem que a Terra não terá recursos suficientes para manter uma população mundial de 8 bilhões de pessoas em 2050. O sr. concorda?

A "capacidade de carga" do mundo depende do nosso estilo de vida. Ela nunca será sustentável se 8 bilhões de pessoas viverem como os americanos. Mas podemos viver de forma civilizada, com base nas novas tecnologias. Certamente seria melhor se, após 2050, a população mundial começasse a diminuir em vez aumentar. Há uma preocupação especial com o crescimento rápido na África, onde será difícil escapar da "armadilha da pobreza" a menos que as taxas de fecundidade caiam para os níveis de outras partes do mundo.

O que o fim da Terra e da raça humana significará para o Universo?

Depende se a vida inteligente é algo raro ou comum. Se é uma exclusividade da Terra, nossa destruição seria uma catástrofe cósmica. Se ela está generalizada no Universo, seria uma catástrofe para a humanidade, mas uma trivialidade em perspectiva cósmica.

Nós devemos pensar em como manter a vida sem uma Terra para viver? Que opções teríamos?

Espero que algumas pessoas que vivem hoje possam caminhar em Marte. Mas acho que isso será alcançado por meio de um programa de alto risco e custo baixo (em vez do estilo atual da Nasa, mais voltado para a questões de segurança e, por isso, caro demais). As primeiras pessoas a irem a Marte poderão ter um bilhete só de ida e nunca mais voltar. Em qualquer lugar no espaço o ambiente é mais inclemente do que na Antártida ou nos picos dos Andes. Só os aventureiros vão querer ir.

sábado, 6 de março de 2010

O sonho de Marina

A senadora Marina Silva tem um sonho. Quer transformar a questão ambiental num tema central da discussão política, mas sem virar uma candidata de uma nota só. Mais que transversalidade, palavra que Marina ensinou a Lula, mas que o governo adotou só na retórica, a intenção é dar centralidade no programa de governo à questão socioambiental, saindo do que considera uma discussão do passado para preparar o país do futuro.

Sua equipe está convencida de que elaborar um programa de governo que reflita os tempos atuais com uma visão de futuro é mais difícil do que fazer um programa tradicional, como os partidos políticos costumam fazer, em que a questão ambiental geralmente é um dos últimos itens.

A candidata do
Partido Verde está preparando um programa que não será dividido em tópicos separados, mas composto de temas integrados por uma visão que tente antecipar os desafios do futuro.

Ela pretende se diferenciar dos dois candidatos favoritos à sucessão presidencial justamente pela ação voltada para um desenvolvimento que não objetive apenas o lado econômico, o crescimento do PIB como medida do sucesso de um governo, embora não subestime a importância desses indicadores.

Ela vai manter,
como Lula manteve, as bases da política econômica, com o equilíbrio fiscal e controle da inflação, mas também os programas sociais que melhoraram a distribuição de renda no país.

Nesse sentido, ela é pós-FH e pós-Lula. Mas é sobretudo pró-desenvolvimento que englobe outros aspectos, um desenvolvimento que melhore o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) não apenas como consequência do crescimento econômico, mas como fruto de uma ação governamental que privilegie a qualidade do ensino, a melhoria da situação na saúde, as pesquisas tecnológicas que coloquem o país em outro patamar, muito além da mera disputa entre tendências políticas antagônicas.

A senadora Marina Silva sente falta de um período em que a política era feita de desassombros, quando o país vislumbrava o futuro como um sonho coletivo, contra um presente que é muito pragmático e limitado.

Ela acha que
a política que está sendo feita no país obedece muito a certos ditames que visam à manutenção do poder político, não a avanços institucionais, a melhorias na qualidade do bem-estar do cidadão.

Sabe que será
difícil oferecer ao eleitorado um sonho que ele pensa já estar sendo realizado pelo que o governo Lula tem oferecido, e que a sensação de bem-estar existente reduz as possibilidades de tentativa de superação desses limites.

Mas acha que
é possível convencer o eleitorado de que há outros objetivos a serem alcançados além de participar da sociedade de consumo.

A própria qualidade
desse consumo tem que ser revista, para que a sensação de bem-estar seja mais ampla e atinja mais cidadãos.

Um bom exemplo
seria a venda de automóveis, um sonho de consumo de todas as classes. Trabalhar para que as cidades a longo prazo tenham um sistema de transportes eficiente e de energia limpa seria uma maneira de oferecer à maioria dos cidadãos uma opção de deslocamento saudável, e aos donos de automóveis vias menos congestionadas.

A exploração do petróleo do pré-sal seria outro exemplo da diferença entre um projeto de futuro de país mais saudável em vários sentidos, e um imediatista, que é o que está sendo desenhado, com o jogo político disputando a suposta riqueza de uma energia poluente que hoje já está em vias de ser ultrapassada.

O empresário Guilherme
Leal, copresidente do Conselho de Administração da Natura Cosméticos e candidato a vice-presidente na chapa do PV, compara o petróleo do pré-sal à herança de uma avó: o dinheiro guardado pode se transformar em pó, não valer mais nada quando se puder usá-lo.

O petróleo como fonte de energia poluente, caminha para a obsolescência no mundo do futuro, e sua exploração teria que ser feita com vistas à preparação da economia do futuro, financiando pesquisas que colocassem o país em condições de competitividade num novo mundo que está se desenhando.

E não como se fosse um tesouro inesgotável que será a salvação de todos no presente.

Mas a senadora Marina Silva tem um sonho mais abrangente, que engloba a democracia como valor universal.

Valores como a liberdade de expressão são caros a ela.

Pensar o futuro do país é pensar o fortalecimento da democracia brasileira, em um continente que passa por experiências democráticas que estão resultando em regimes com tendências autoritárias.

Ela tem louvado a decisão do presidente Lula de não ter aceitado tentar mudar a Constituição para poder disputar um terceiro mandato consecutivo, e costuma dar seu testemunho pessoal de que o presidente sempre reagiu mal às sugestões nesse sentido, e desencorajou quem chegava próximo com a tentação da continuidade.

Mas, ao mesmo tempo em que tem feito esse reconhecimento, ela, bem no seu estilo tranquilo, tem perturbado seus interlocutores com um raciocínio no mínimo interessante: o empenho do presidente Lula na eleição de uma candidata escolhida a dedo, que não saiu da disputa partidária, não guardaria alguma semelhança com aqueles mesmos processos? Não haveria o risco de que a intenção do presidente seja transformar o governo Dilma em apenas um intervalo entre dois governos Lulas, o que poria em xeque a alternância de poder, um dos pilares da democracia? Quem tem estado com Marina fica com a certeza de que, na visão dela, para que a democracia se fortaleça no país é fundamental que a divergência de opiniões seja respeitada, que a imensa popularidade do presidente não transforme em verdade absoluta o que diz ou pensa, que a discordância seja aceita, e que os governos se submetam à pluralidade da sociedade, governando para todos, e não apenas para os seus.

MERVAL PEREIRA

ARTIGO PUBLICADO EM O GLOBO