Antonio Donato Nobre
A popularização da verdade através do saber é o caminho mais
seguro para despertar consciências aptas a agir. Porém, quando se propõe a
popularizar o conhecimento sobre o gigantismo e incrível complexidade da Terra
a abordagem acadêmica caminha sobre o gume afiado de uma faca. Ao simplificar
para a compreensão, surge o temor do assunto ser tomado por simplório; ao elaborar para se aproximar da dimensão
real, surge a dificuldade na popularização. Todo o profuso e contencioso debate
atual sobre mudanças climáticas está contaminado em maior ou menor grau por
esse dilema. As fundamentadas elaborações acadêmicas dos cientistas convencem
aos próprios cientistas da dimensão real e urgente das mudanças climáticas. Mas
não se pode esperar que cada governante ou cada pessoa torne-se cientista para
alcançar e abranger o entendimento corrente na academia. Nas simplificações
feitas para a difusão da visão cientifica, muitas sem sal nem tempero, perde-se parte importante da força do argumento
acadêmico. Com isso abre-se um campo
fértil de incompreensão popular, incompreensão frequentemente explorada como
substrato para a disseminação oportunista, difamatória e até criminal de
versões contraditórias à ciência.
Independente destas dificuldades de comunicação, e apesar
das suas limitações e controvérsias, há mais de um século a ciência vem
exercendo importante papel de alerta sobre as mudanças climáticas. Em 1896 o
químico Sueco Arrhenius, no auge da revolução industrial, fez o primeiro
cálculo registrado em artigo cientifico de que ao dobrar-se o CO2 atmosférico
o planeta esquentaria de 5o a 6o C. Contudo a quantidade
de carvão queimado, que era usado para acionar as maquinas a vapor, não
ameaçava, e o próprio Arrhenius, interessado no risco oposto de novas eras
glaciais, não via o improvável aquecimento com maus olhos. Depois disso ganhou
escala o petróleo no acionamento de motores de combustão interna. Curioso que
já aí a humanidade tenha feito uma escolha desfavorável. Na virada do século
XX, no inicio da produção do automóvel em larga escala, haviam modelos
elétricos competindo com os de combustão. Motores a combustão eram sujos,
barulhentos, desconfortáveis e cheiravam mal; mas suas vantagens em autonomia e
rápido reabastecimento lhes deram rapidamente primazia. Houvessem os elétricos
predominado naquela época hoje teríamos veículos silenciosos e não poluentes,
e, com mais de 100 anos de desenvolvimento, certamente teriam extraordinária
autonomia. Houvesse o precoce cálculo de Arrhenius sobre a ligação entre
aumento de CO2 na atmosfera e aquecimento sido levado em
consideração a historia seria outra. Não foi.
Apesar dos cálculos de Arrhenius irem na direção correta
(aumento da concentração de CO2 -> aumento de temperatura),
durante a maior parte do século XX a ciência não conseguiu livrar-se de
contraditórias explicações para a relação do clima com os gases estufa
produzidos em quantidades crescentes pela humanidade. E justamente no ultimo
século entraram em expansão exponencial a população humana, seus flatulentos
animais, suas poluentes traquitanas técnicas e a contaminação e devastação dos
ecossistemas por toda parte. A perturbação no ar-condicionado da grande nave
inevitavelmente se faria sentir. A partir dos anos 50 o aumento progressivo e
constante do CO2 na atmosfera foi confirmado por observações cada
vez mais acuradas. E poucas décadas mais tarde o consequente aumento de
temperatura foi e continua sendo observado. Mas ha muito mais que isso. O
passado remoto, até milhões de anos - das concentrações de CO2 na
atmosfera e sua relação com a temperatura-, foi revelado por diversos estudos a
partir de pistas fosseis no gelo e nas rochas. Já nas ultimas décadas do século
XX tornou-se finalmente evidente para a esmagadora maioria da comunidade
cientifica que o clima estava aquecendo além do que ocorrera no ultimo milhão
de anos, como decorrência de ações humanas.
A afirmação recente de James Powell[1] ilustra e sumariza como a comunidade científica vê seu estado de
compreensão:
“Os cientistas não discordam sobre o aquecimento
global causado pelo homem. É o
paradigma dominante da ciência do clima, da mesma forma que as placas tectônicas é o paradigma dominante da geologia. Sabemos que os continentes se movem. Sabemos que a Terra está
se aquecendo e que as emissões humanas
de gases do efeito estufa são a
principal causa.”
Em 1972, pressionada pela escalada dos problemas ambientais
mundo afora, em especial o da poluição do ar, a Organização das Nações Unidas
realizou a primeira Conferencia sobre meio Ambiente em Estocolmo. A delegação
Brasileira apresentou lá uma incrível mensagem, reveladora da inconsciência
predominante: -“A poluição é bem vinda no
Brasil”. Em 1988, ano com a maior taxa de desmatamento e do assassinato do
famoso seringueiro ambientalista Chico Mendes na Amazônia, a ONU criava o IPCC
conjuntamente com a Organização Meteorológica Mundial, que produziria seu
primeiro relatório de avaliação sobre o clima em 1990. Em 1992 o Brasil, com a
sua imagem tisnada por cenas medonhas de devastação das florestas tropicais,
sediou no Rio de Janeiro a marcante segunda conferencia sobre meio ambiente da
ONU. No mesmo ano um grupo congregando mais de 1.500 cientistas saídos do topo
da lista de maiores da ciência, inclusive a maioria dos prêmios Nobel vivos,
publicou um apelo intitulado Alerta dos Cientistas do Mundo para a Humanidade:
"Os seres humanos e o mundo
natural estão em rota de colisão. Atividades humanas infligem danos severos e
frequentemente irreversíveis ao ambiente e a seus recursos vitais. Se não
reavaliadas, muitas das nossas práticas correntes colocam em sério risco o
futuro que queremos para a sociedade humana, e assim podem alterar o mundo vivo
de tal forma que este será incapaz de dar suporte para a vida da forma que
conhecemos. Mudanças fundamentais são urgentes se quisermos evitar a colisão
que nosso presente curso irá trazer... Não temos mais que uma ou algumas
décadas antes que a oportunidade de desviar as ameaças que enfrentamos agora
venha a se perder e as perspectivas para a humanidade venham a ficar
imensuravelmente diminuídas. Se uma vasta miséria humana precisa ser evitada e
se o nosso lar global neste planeta não pode ser irremediavelmente mutilado,
exige-se uma grande mudança em nossa atitude com relação à Terra e à sua vida.”
É especialmente significativo que tal alerta tenha vindo de uma comunidade normalmente afeita à moderação, cética e quase sempre desunida. A incomum eloquência e seus tons vivos devem dar uma medida do grau de convencimento sobre a gravidade da situação. Em 1994 a ONU criou a convenção quadro sobre as mudanças climáticas (UNFCC) que era a primeira tentativa de estender as recomendações cientificas para o âmbito da ação internacional coordenada dos governos nacionais. Em 1997 a UNFCC, reunida no Japão, produziu o famoso mas pouco eficaz protocolo de Kyoto. Em 2001 o IPCC produziu mais um Relatório de Avaliação, e outro em 2007. Infelizmente, para a humanidade, todas estas ações e alertas, e outros progressivamente mais graves feitos desde então não foram levados a sério como deveriam. Nestes 22 anos desde o Alerta dos Cientistas do Mundo, a ciência das mudanças climáticas melhorou em escala exponencial seu conhecimento, e com ele a qualidade dos alertas. Melhorou também sua comunicação com a sociedade, a ponto de render-lhe um premio Nobel em 2007. Não obstante, é perturbador que com todas as evidencias a situação de inação hoje não difira muito de duas décadas atrás, quando a ciência iniciava os alertas mais sistemáticos.
É especialmente significativo que tal alerta tenha vindo de uma comunidade normalmente afeita à moderação, cética e quase sempre desunida. A incomum eloquência e seus tons vivos devem dar uma medida do grau de convencimento sobre a gravidade da situação. Em 1994 a ONU criou a convenção quadro sobre as mudanças climáticas (UNFCC) que era a primeira tentativa de estender as recomendações cientificas para o âmbito da ação internacional coordenada dos governos nacionais. Em 1997 a UNFCC, reunida no Japão, produziu o famoso mas pouco eficaz protocolo de Kyoto. Em 2001 o IPCC produziu mais um Relatório de Avaliação, e outro em 2007. Infelizmente, para a humanidade, todas estas ações e alertas, e outros progressivamente mais graves feitos desde então não foram levados a sério como deveriam. Nestes 22 anos desde o Alerta dos Cientistas do Mundo, a ciência das mudanças climáticas melhorou em escala exponencial seu conhecimento, e com ele a qualidade dos alertas. Melhorou também sua comunicação com a sociedade, a ponto de render-lhe um premio Nobel em 2007. Não obstante, é perturbador que com todas as evidencias a situação de inação hoje não difira muito de duas décadas atrás, quando a ciência iniciava os alertas mais sistemáticos.
Lester Brown, em seu livro Plano B, cujo subtítulo passou de
“resgatando um planeta em stress e uma civilização em apuros” na versão 2.0
(2006) para “mobilizando para salvar a civilização” na versão 4.0
(2009), afirma que:
“...com o business as usual[2]
(Plano A), as tendências ambientais que estão minando o nosso futuro vão
continuar ... o tempo é o nosso recurso mais escasso. Estamos atravessando limites naturais que não podemos ver e violando
prazos, fixados pela Natureza, que não reconhecemos.”
Provavelmente as incertezas das projeções climáticas formem
o fundamento deste alerta sobre nossa extensiva ignorância do funcionamento,
das capacidades e dos limites da grande nave que nos abriga. Hoje porém, com as
mudanças climáticas em pleno curso, os prazos fixados pela Natureza estão
expirando a medida em que se tornam visíveis os limites naturais ao os
atravessarmos. Porque, ainda assim, a humanidade não escute alarmes tão
evidentes, nem compreenda a dimensão de gravidade em que se encontra?
[1] Vídeo: How do scientists know that global
warming is true? Because the evidence is overwhelming (Como os cientistas sabem que o aquecimento
global é verdade? Porque a
evidência é esmagadora)
[2] Nota de Tradução: “continuar
como está para ver como é que fica”