segunda-feira, 2 de junho de 2014

Mudanças Climáticas: O Alarme da Ciência


Antonio Donato Nobre


A popularização da verdade através do saber é o caminho mais seguro para despertar consciências aptas a agir. Porém, quando se propõe a popularizar o conhecimento sobre o gigantismo e incrível complexidade da Terra a abordagem acadêmica caminha sobre o gume afiado de uma faca. Ao simplificar para a compreensão, surge o temor do assunto ser tomado por simplório;  ao elaborar para se aproximar da dimensão real, surge a dificuldade na popularização. Todo o profuso e contencioso debate atual sobre mudanças climáticas está contaminado em maior ou menor grau por esse dilema. As fundamentadas elaborações acadêmicas dos cientistas convencem aos próprios cientistas da dimensão real e urgente das mudanças climáticas. Mas não se pode esperar que cada governante ou cada pessoa torne-se cientista para alcançar e abranger o entendimento corrente na academia. Nas simplificações feitas para a difusão da visão cientifica, muitas sem sal nem tempero,  perde-se parte importante da força do argumento acadêmico.  Com isso abre-se um campo fértil de incompreensão popular, incompreensão frequentemente explorada como substrato para a disseminação oportunista, difamatória e até criminal de versões contraditórias à ciência.

Independente destas dificuldades de comunicação, e apesar das suas limitações e controvérsias, há mais de um século a ciência vem exercendo importante papel de alerta sobre as mudanças climáticas. Em 1896 o químico Sueco Arrhenius, no auge da revolução industrial, fez o primeiro cálculo registrado em artigo cientifico de que ao dobrar-se o CO2 atmosférico o planeta esquentaria de 5o a 6o C. Contudo a quantidade de carvão queimado, que era usado para acionar as maquinas a vapor, não ameaçava, e o próprio Arrhenius, interessado no risco oposto de novas eras glaciais, não via o improvável aquecimento com maus olhos. Depois disso ganhou escala o petróleo no acionamento de motores de combustão interna. Curioso que já aí a humanidade tenha feito uma escolha desfavorável. Na virada do século XX, no inicio da produção do automóvel em larga escala, haviam modelos elétricos competindo com os de combustão. Motores a combustão eram sujos, barulhentos, desconfortáveis e cheiravam mal; mas suas vantagens em autonomia e rápido reabastecimento lhes deram rapidamente primazia. Houvessem os elétricos predominado naquela época hoje teríamos veículos silenciosos e não poluentes, e, com mais de 100 anos de desenvolvimento, certamente teriam extraordinária autonomia. Houvesse o precoce cálculo de Arrhenius sobre a ligação entre aumento de CO2 na atmosfera e aquecimento sido levado em consideração a historia seria outra. Não foi.

Apesar dos cálculos de Arrhenius irem na direção correta (aumento da concentração de CO2 -> aumento de temperatura), durante a maior parte do século XX a ciência não conseguiu livrar-se de contraditórias explicações para a relação do clima com os gases estufa produzidos em quantidades crescentes pela humanidade. E justamente no ultimo século entraram em expansão exponencial a população humana, seus flatulentos animais, suas poluentes traquitanas técnicas e a contaminação e devastação dos ecossistemas por toda parte. A perturbação no ar-condicionado da grande nave inevitavelmente se faria sentir. A partir dos anos 50 o aumento progressivo e constante do CO2 na atmosfera foi confirmado por observações cada vez mais acuradas. E poucas décadas mais tarde o consequente aumento de temperatura foi e continua sendo observado. Mas ha muito mais que isso. O passado remoto, até milhões de anos - das concentrações de CO2 na atmosfera e sua relação com a temperatura-, foi revelado por diversos estudos a partir de pistas fosseis no gelo e nas rochas. Já nas ultimas décadas do século XX tornou-se finalmente evidente para a esmagadora maioria da comunidade cientifica que o clima estava aquecendo além do que ocorrera no ultimo milhão de anos, como decorrência de ações humanas.  A afirmação recente de James Powell[1] ilustra e sumariza como a comunidade científica vê seu estado de compreensão:

“Os cientistas não discordam sobre o aquecimento global causado pelo homem. É o paradigma dominante da ciência do clima, da mesma forma que as placas tectônicas é o paradigma dominante da geologia. Sabemos que os continentes se movem. Sabemos que a Terra está se aquecendo e que as emissões humanas de gases do efeito estufa são a principal causa.”

Em 1972, pressionada pela escalada dos problemas ambientais mundo afora, em especial o da poluição do ar, a Organização das Nações Unidas realizou a primeira Conferencia sobre meio Ambiente em Estocolmo. A delegação Brasileira apresentou lá uma incrível mensagem, reveladora da inconsciência predominante: -“A poluição é bem vinda no Brasil”. Em 1988, ano com a maior taxa de desmatamento e do assassinato do famoso seringueiro ambientalista Chico Mendes na Amazônia, a ONU criava o IPCC conjuntamente com a Organização Meteorológica Mundial, que produziria seu primeiro relatório de avaliação sobre o clima em 1990. Em 1992 o Brasil, com a sua imagem tisnada por cenas medonhas de devastação das florestas tropicais, sediou no Rio de Janeiro a marcante segunda conferencia sobre meio ambiente da ONU. No mesmo ano um grupo congregando mais de 1.500 cientistas saídos do topo da lista de maiores da ciência, inclusive a maioria dos prêmios Nobel vivos, publicou um apelo intitulado Alerta dos Cientistas do Mundo para a Humanidade:

"Os seres humanos e o mundo natural estão em rota de colisão. Atividades humanas infligem danos severos e frequentemente irreversíveis ao ambiente e a seus recursos vitais. Se não reavaliadas, muitas das nossas práticas correntes colocam em sério risco o futuro que queremos para a sociedade humana, e assim podem alterar o mundo vivo de tal forma que este será incapaz de dar suporte para a vida da forma que conhecemos. Mudanças fundamentais são urgentes se quisermos evitar a colisão que nosso presente curso irá trazer... Não temos mais que uma ou algumas décadas antes que a oportunidade de desviar as ameaças que enfrentamos agora venha a se perder e as perspectivas para a humanidade venham a ficar imensuravelmente diminuídas. Se uma vasta miséria humana precisa ser evitada e se o nosso lar global neste planeta não pode ser irremediavelmente mutilado, exige-se uma grande mudança em nossa atitude com relação à Terra e à sua vida.”

É especialmente significativo que tal alerta tenha vindo de uma comunidade normalmente afeita à moderação, cética e quase sempre desunida. A incomum eloquência e seus tons vivos devem dar uma medida do grau de convencimento sobre a gravidade da situação. Em 1994 a ONU criou a convenção quadro sobre as mudanças climáticas (UNFCC) que era a primeira tentativa de estender as recomendações cientificas para o âmbito da ação internacional coordenada dos governos nacionais. Em 1997 a UNFCC, reunida no Japão, produziu o famoso mas pouco eficaz protocolo de Kyoto. Em 2001 o IPCC produziu mais um Relatório de Avaliação, e outro em 2007. Infelizmente, para a humanidade, todas estas ações e alertas, e outros progressivamente mais graves feitos desde então não foram levados a sério como deveriam. Nestes 22 anos desde o Alerta dos Cientistas do Mundo, a ciência das mudanças climáticas melhorou em escala exponencial seu conhecimento, e com ele a qualidade dos alertas. Melhorou também sua comunicação com a sociedade, a ponto de render-lhe um premio Nobel em 2007.  Não obstante, é perturbador que com todas as evidencias a situação de inação hoje não difira muito de duas décadas atrás, quando a ciência iniciava os alertas mais sistemáticos.

Lester Brown, em seu livro Plano B, cujo subtítulo passou de “resgatando um planeta em stress e uma civilização em apuros” na versão 2.0 (2006) para “mobilizando para salvar a civilização” na versão 4.0 (2009), afirma que:

“...com o business as usual[2] (Plano A), as tendências ambientais que estão minando o nosso futuro vão continuar ... o tempo é o nosso recurso mais escasso. Estamos atravessando limites naturais que não podemos ver e violando prazos, fixados pela Natureza, que não reconhecemos.” 

Provavelmente as incertezas das projeções climáticas formem o fundamento deste alerta sobre nossa extensiva ignorância do funcionamento, das capacidades e dos limites da grande nave que nos abriga. Hoje porém, com as mudanças climáticas em pleno curso, os prazos fixados pela Natureza estão expirando a medida em que se tornam visíveis os limites naturais ao os atravessarmos. Porque, ainda assim, a humanidade não escute alarmes tão evidentes, nem compreenda a dimensão de gravidade em que se encontra?


[1] Vídeo: How do scientists know that global warming is true? Because the evidence is overwhelming (Como os cientistas sabem que o aquecimento global é verdade? Porque a evidência é esmagadora)
[2] Nota de Tradução: “continuar como está para ver como é que fica”