O Código Florestal brasileiro, com quase meio século de existência e emendado por vários decretos e leis posteriores, precisa ser revisado para se adequar ao Brasil do século 21 e ampliar sua eficácia como principal instrumento de salvaguarda da integridade ambiental do País, consolidando essa salvaguarda no variado espectro de demandas presentes e futuras de ocupação e utilização de todos os ecossistemas brasileiros.
Não é essa a revisão, porém, que hoje está em curso no Congresso Nacional.
O novo código está sendo concluído com o frenesi de carro alegórico que precisa entrar no sambódromo. Corre-se sob pressão de uma crise fantasiosa de produção de alimentos, a qual estaria na iminência de ser estrangulada pela impossibilidade de se expandir a área cultivável nas áreas protegidas pelo atual código. De onde surgiu tal crise? Tudo indica que o vencimento, dentro de poucos meses, do prazo para enquadramento de propriedades rurais na legislação vigente - prazo sabido desde muito e repetidamente postergado - fez o agrolobby mobilizar seus parlamentares para alterar a legislação a toque de caixa.
Como se engendrou a proposta de Código Florestal que está em pauta? Segundo a comissão do Congresso liderada pelo relator Aldo Rebelo, foram consultados centenas de representantes de todos os interesses e áreas de conhecimento. Foram, alegadamente, também ouvidos "cientistas" e "ambientalistas" - como se não existisse uma ciência ambiental séria no Brasil.
Os poucos cientistas que chegaram a ser ouvidos ou lidos foram cuidadosamente pré-selecionados pelo que teriam a dizer; além do mais, a proposta incorporou somente o que o relator houve por bem (ou mal) entender. Salvo exceções simbólicas, a ciência brasileira no todo, os cientistas mais experientes, mais capacitados, as instituições mais representativas, não foram engajados efetivamente nessa elaboração, canalizada desde o inicio para intenções tendenciosas e muito distantes do interesse público e do bem comum.
Desde quando versões preliminares vieram a público, sociedades científicas e grupos de pesquisadores realizaram reuniões e produziram documentos avaliando o atual projeto. A Abeco (Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação), com o Programa Biota-Fapesp, avaliou as consequências das alterações propostas para a biodiversidade brasileira. Um estudo mais extenso foi produzido pela Academia Brasileira de Ciências com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, as principais sociedades nacionais que congregam cientistas de todas as áreas.
Os documentos reúnem análises bem fundamentadas que evidenciam um amplo leque de consequências extremamente preocupantes das modificações que estão por ser introduzidas e, inevitavelmente, tornarão o código menos eficaz em assegurar a integridade ambiental brasileira.
Vão além. Estudos detalhados mostram que, no Brasil, há ampla margem para reordenar pastagens com maior aptidão agrícola para o cultivo e incorporar tecnologias para aumentar a eficiência da pecuária. Com isso, é viável incrementar a produção brasileira sem avançar sobre as paisagens naturais remanescentes nas propriedades rurais. Ironia que no Brasil, talvez o último grande país no mundo que ainda detém a possibilidade de conciliar um vigoroso desenvolvimento agrícola com a manutenção efetiva de sua integridade ambiental, essa opção possa ser barrada por obra de um segmento míope e inconsequente do agronegócio.
Nada mais arcaico que uma visão agrodesenvolvimentista que persiste em enxergar as áreas de proteção permanente e as reservas legais do CFB tão somente como terrenos roubados à produção. Uma visão incapaz de reconhecer que, antes até de contribuir para a conservação da biodiversidade, essas áreas subtendem sua produção, preservam a qualidade ambiental de sua propriedade e a saúde de seus habitantes; em suma, asseguram serviços ambientais indispensáveis à qualidade de vida e a um desenvolvimento verdadeiramente sustentável.
Outra ironia: o pequeno proprietário rural, o alegado beneficiário maior das drásticas reduções de APPs e reservas legais embutidas na atual proposta, é quem mais terá a perder - privado que será da proteção contra erosão e degradação de água e solo, da polinização nativa de suas culturas e tantos outros serviços ambientais prestados pelos remanescentes de ecossistemas naturais que serão eliminados ou deixarão de ser recompostos. É esse proprietário que estará mais exposto aos efeitos da degradação ambiental acelerada, sem recursos e capital para se defender.
O Brasil precisa, sim, de um novo CFB; mas um código que alicerce firmemente uma política ambiental brasileira. Uma política unificada, respaldada e implementada não apenas pelo Ministério do Meio Ambiente, mas por todos os segmentos do governo. Um código, e uma política, assentados sobre o melhor conhecimento disponível, que reflitam escolhas lúcidas e sensatas, norteadas pelos maiores interesses da nação.
Esse novo código só poderá resultar de um processo maduro de elaboração conjunta que envolva as melhores lideranças e competências técnicas, científicas e políticas de que o Brasil dispõe. Que, mesmo quando discordem, não percam de vista o objetivo maior de assentar as atividades humanas numa matriz ambiental saudável, funcional e bem cuidada. Que não manipulem palavras para tornar inócua a legislação que têm o dever de aperfeiçoar.
As sociedades científicas propuseram dois anos para elaborar um projeto de Código Florestal. Não é demais. A alegação de que quem queria se manifestar já teve sua chance e que acabou o tempo é pueril e talvez reflita um temor de participar de discussões substantivas e se defrontar com argumentos técnico-científicos reais. É difícil, mas não impossível, que ate 2014 o Brasil ainda consiga produzir uma boa Copa. Parece igualmente difícil, mas é muito mais importante, dar-se um tempo igual para produzir o novo Código Florestal para o Brasil.
THOMAS LEWINSOHN, DOUTOR EM CIÊNCIAS E PROFESSOR TITULAR DE ECOLOGIA DA UNICAMP, É PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA ECOLÓGICA E CONSERVAÇÃO