Nota do Blog: o Grupo de Trabalho da SBPC e ABC continuou a trabalhar na proposta legislativa de alteração do Código Florestal, agora para atender demanda especifica dos Senadores. O documento resultante da analise do projeto de lei pode ser encontrado no site da SBPC (aqui). Abaixo reproduzido o sumario executivo do documento.
SUMÁRIO EXECUTIVO
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) concordam com a necessidade de reformulação do Código Florestal vigente (Lei 4.771/1965) para adaptá-lo às mudanças no uso e ocupação do solo do território brasileiro. No entanto, a atualização do Código Florestal precisa ser feita à luz da ciência e tecnologia hoje disponíveis. O Brasil tem a oportunidade de dar um exemplo ao mundo de uma nova forma de convivência harmoniosa da conservação ambiental com a produção agrícola.
O Senado Federal tem o importante papel de corrigir os equívocos verificados na votação da matéria na Câmara dos Deputados (“substitutivo” ao PL 1.876/1999 e demais PLs àquele apensados e, atualmente denominado Projeto de Lei da Câmara nº 30/2011).
Para auxiliar os Senhores Senadores e Senhoras Senadoras na apreciação da matéria, a SBPC e a ABC vêm ressaltar alguns dos pontos que precisam ser revistos no PLC 30/2011. Cada um desses pontos é analisado em maior detalhe e com a bibliografia pertinente no documento completo, anexo a este sumário executivo. Este documento vem se somar ao livro “O Código Florestal e a Ciência. Contribuições para o Diálogo” publicado pela SBPC e a ABC, em abril de 2011.
1. NÃO EXISTE O DILEMA ENTRE CONSERVAR/PRESERVAR O AMBIENTE E PRODUZIR ALIMENTOS
• O Brasil tem enorme vocação agrícola e deve continuar aumentando a produção de alimentos para o consumo interno e para exportações, mas precisa fazer isso de forma ambientalmente sustentável, permitindo diferenciar os produtos agrícolas brasileiros e atender à demanda atual de mercado. O Brasil já dispõe de área agrícola suficiente para isso, desde que devidamente tecnificada, e ainda dispõe de área natural suficiente para a conservação/preservação de nosso patrimônio biológico.
• A grande limitação para a expansão da agricultura brasileira é a falta de adequação de sua política agrícola, com tecnificação dos pequenos produtores, políticas de preços agrícolas, incluindo insumos, política de estoques reguladores, infraestrutura de escoamento e armazenamento dos produtos agrícolas etc., e não as restrições ambientais colocadas pelo Código Florestal brasileiro. Bastaria um aumento marginal da produtividade da pecuária brasileira, que é notoriamente ineficiente e ocupa 2/3 das áreas agrícolas disponíveis hoje no Brasil, para disponibilizar em torno de 60 milhões de hectares para a agricultura, o que mais do que dobraria a área agrícola atual.
2. ÁREAS DE PROTEÇÃO PERMANENTE (APP) DE BEIRA DE CURSOS D’ÁGUA
• A conservação das vegetações ripárias é condição sine qua non para se manter os serviços ambientais, principalmente, aqueles relacionados com a quantidade e qualidade dos recursos hídricos, e garantir ganhos econômicos. Como destaque dos serviços ambientais característicos das áreas ripárias ocupadas com florestas nativas se podem citar: a filtragem da água e amortecimento de enchentes; a prevenção da erosão e do assoreamento; a manutenção da pesca e da navegação, a conservação da biodiversidade remanescente, o papel de interligação das formações naturais na paisagem (corredores ecológicos) dentre outros. Por isso deve-se considerar que:
• Todas as Áreas de Proteção Permanente (APP) de beira de cursos d’água devem ter sua vegetação preservada e naquelas em que essa vegetação foi degradada elas devem ser integralmente restauradas;
• Deve ser mantida a definição de APP de cursos d’água do Código Florestal atual (“...desde o seu nível mais alto em faixa marginal...”(Art. 2°, a) - redação dada pela Lei nº 7.803 de 18.7.1989);
• A situação existente entre o menor e o maior leito sazonal (as várzeas, os campos úmidos, as florestas paludícolas e outras) deve receber na lei, o mesmo status de proteção das APPs;
• Os usos ribeirinhos das APPs na Amazônia devem receber tratamento diferenciado no Código Florestal, de forma a respeitar a cultura agrícola local e preservar a agricultura de vazante e a produção de várzea, já que se caracterizam como de baixo impacto ambiental;
• Os usos de comunidades tradicionais em APPs de áreas úmidas devem ter reconhecimento específico no Código Florestal como também em outras instâncias federais, dada sua relevância e especificidade;
• A definição dos limites das APPs nas áreas úmidas deve ser calculada a partir do nível mais alto da cheia conforme definição da Convenção de Ramsar (Convenção sobre Zonas Úmidas de Importância Internacional);
• A definição de APP em áreas urbanas deve ser regulada pelo Plano Diretor da cidade.
3. ÁREAS RURAIS CONSOLIDADAS EM APPs
• É um equívoco se considerar que APPs desmatadas até a data de 22 de julho de 2008, para uso alternativo do solo, sejam definidas como atividades consolidadas e por isso possam ser mantidas e regularizadas pelo Plano de Regularização Ambiental (PRA). A maioria dessas APPs foi desmatada em desacordo com a legislação ambiental vigente na época: não há justificativa plausível para adotar a data da publicação da versão mais recente do regulamento da Lei de Crimes Ambientais;
• O termo área rural consolidada no PLC 30/2011 representa, na prática, o uso consolidado das áreas de preservação permanente, o que dispensaria a aplicação da legislação ambiental, garantindo a continuidade de uso agrícola dessas áreas e ignorando os serviços ambientais das APPs nessas áreas de uso consolidadas, serviços esses que foram tão destacadamente valorizados em outros artigos do próprio PLC 30/2011. Além de impedir a continuidade do uso agrícola das APPs, a legislação deve explicitar a necessidade de ações de restauração integral dessas áreas, para o cumprimento desses serviços;
• O pousio, que no PLC 30/2011 pode ser considerado como área consolidada, deve ser redefinido, estabelecendo um limite de área e um período máximo, devidamente ajustado para cada bioma. O pousio em APPs, conforme conceituado no PLC 30/2011, deve ser aplicado apenas para a regulamentação das práticas agrícolas de comunidades tradicionais, respeitando as suas peculiaridades;
• A Constituição Federal Brasileira expressa claramente que não há direito adquirido na área ambiental, pois o meio ambiente pertence à coletividade e, desta forma, os interesses da sociedade se sobrepõem ao direito particular, o que certamente levaria à inconstitucionalidade na regulamentação dessa norma, por ter definido 22 de julho de 2008, como referência para a consolidação de atividades agrícolas em áreas protegidas pela legislação ambiental brasileira;
• A definição de área rural consolidada deve ser retirada do texto, visto não poder haver consolidação de áreas sobre áreas legalmente protegidas, pois não há direito adquirido na área ambiental, principalmente, considerando que essa definição inclui “atividade agrossilvopastoril”. Com isso fica evitada a continuidade das atividades agrícolas em APPs e possibilitada a adoção de ações de restauração;
• A produção de arroz de várzea, pecuária extensiva no pantanal, agricultura de várzea na Amazonas, produção de café, maracujá e uva nas encostas devem ter um tratamento diferenciado e especial na legislação ambiental brasileira, em função dessas culturas serem específicas desses ambientes, ocuparem pequena extensão territorial e pela possibilidade das mesmas serem adequadas tecnicamente para um menor impacto ambiental.
4. MANGUEZAIS E APICUNS COMO ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE
• Em função da importância ecológica dos manguezais e apicuns e de todo o gradiente entre eles e, considerando que a conservação/preservação de apenas um deles não vai garantir a conservação/preservação do outro, nem a manutenção da integridade e da funcionalidade dos manguezais, propõe-se a inclusão dos mangues e apicuns como Áreas de Preservação Permanente no texto do PLC 30/2011. As áreas de manguezais que, por algum motivo, tenham sido degradadas historicamente, tendo sua função ecológica comprometida, devem passar por um processo de recuperação ambiental, baseado em várias iniciativas já exitosas nesse sentido.
5. COMPENSAÇÃO DE RESERVA LEGAL
• A compensação não deveria ser prevista no âmbito do BIOMA indistintamente, pois devido a sua heterogeneidade física, biológica e ecológica, poderá levar à compensação de áreas que não têm equivalência nem em termos de composição e estrutura, nem de função. Estudos mostram que, em termos funcionais, os serviços ecossistêmicos prestados pela vegetação natural são muitas vezes restritos ao seu entorno imediato;
• A compensação da Reserva Legal deve ser em áreas mais próximas possíveis, dentro da mesma unidade fitoecológica (mesmo ecossistema), de preferência na mesma microbacia ou bacia, para que haja a desejada equivalência ecológica, de composição, de estrutura e de função;
• A justificativa de que não existem remanescentes naturais na microbacia ou mesmo na bacia hidrográfica para essa compensação e por isso permitir a compensação no BIOMA não é verdadeira, pois essa compensação pode ser feita na legislação atual, em áreas já disponibilizadas historicamente para a agricultura na microbacia ou mesmo da bacia, mas que são áreas de baixa aptidão agrícola e por isso estão atualmente, abandonadas ou ocupadas com atividades agrícolas marginalizadas, na maioria pastagem degradadas sem sustentabilidade econômica, desde que essas áreas sejam devidamente restauradas. Essa compensação seria um excelente instrumento de distribuição de renda no setor agrícola, já que uma área agrícola já consolidada, de alta aptidão, geralmente de propriedade de empresas agrícolas ou grandes produtores, continuaria no processo de produção e seria compensada, por sistema de pagamento de servidão florestal, por essas áreas marginalizadas no sistema de produção, geralmente de propriedade de pequenos agricultores;
• Não deveria ser aberta a possibilidade de compensação indistintamente no âmbito de todo o BIOMA, mas caso isso seja mantido, que seja acrescentado no texto, que essa compensação deve ser feita em áreas com a mesma equivalência ecológica, de composição, de estrutura e de função, e estabelecendo um limite de distância geográfica, o que garantiria que essa compensação fosse feita dentro do mesmo ecossistema da área degradada, exercendo assim o papel da Reserva Legal de proteção dos serviços ecossistêmicos regionais;
• A compensação fora do BIOMA, por tudo que já foi dito, não deve ser sequer considerada nessa discussão, não só por motivos ambientais, que a tornam inaceitável, mas também por razões econômicas, já que praticamente anulará a efetividade desse mercado de compensação e, portanto, de distribuição de renda.
6. CÔMPUTO DE APP E RL DEVE SER MANTIDO SEPARADO
• Não se justifica cientificamente a inclusão das Áreas de Preservação Permanente (APPs) no cômputo das Reservas Legais (RLs) já que APPs e RLs apresentam estruturas e funções distintas e comunidades biológicas complementares;
• A somatória de APP e RL em áreas agrícolas consolidadas, fora da Amazônia Legal, permite a manutenção de cobertura de vegetação nativa em torno de um de um limiar de 30% da área, que vem se mostrando como um patamar mínimo de cobertura natural para se evitar a extinção massiva de espécies na paisagem.
7. USO DE ESPÉCIE EXÓTICA EM RL APENAS NAS FASES INICIAIS DE RESTAURAÇÃO
• A permissão do uso de espécies exóticas em até 50% da RL é extremamente prejudicial para as principais funções da RL: conservação da biodiversidade nativa e uso sustentável de recursos naturais, que são as motivações originais para a instituição da RL, abrindo a possibilidade de um diferencial a favor da agricultura brasileira, como agricultura com sustentabilidade ambiental. O uso de espécies exóticas na RL vai anular esse diferencial;
• Vale destacar que o uso temporário de espécies exóticas, permitido apenas nas fases iniciais de restauração de uma área de RL, combinado com o uso de espécies nativas regionais, com o objetivo de aliar restauração com obtenção de um ganho econômico, pode ser uma alternativa interessante de viabilização econômica da restauração dessas áreas com espécies nativas, principalmente para o pequeno proprietário.
8. AGRICULTURA FAMILIAR (AF) NÃO É EQUIVALENTE A SIMPLESMENTE QUATRO MÓDULOS FISCAIS
• O tratamento diferenciado no Código Florestal deve ser atribuído à Agricultura Familiar que deve receber contribuição direta do conhecimento científico para a redução dos impactos ambientais da atividade agrícola, e também prioridade na transferência de tecnologia de produção e no recebimento dos benefícios viabilizados pelo pagamento dos serviços ambientais e/ou ecossistêmicos, tanto para as florestas remanescentes, como para as restauradas.
• A Agricultura Familiar (AF) é definida na Lei 11.326/2006, art.3, com quatro critérios que devem ser simultaneamente observados e dizem respeito a tamanho, mão de obra, renda e gestão. Esses critérios não podem ser reduzidos na lei apenas ao tamanho da propriedade (4 Módulos Fiscais).
9. CUSTO DE RESTAURAÇÃO É BEM MENOR DO QUE O APREGOADO EM DEFESA DO PLC 30/2011
• O custo de restauração de áreas degradadas varia conforme as diferentes situações de degradação, que podem demandar desde o simples abandono da área (restauração passiva, sem custo de implantação), até o plantio de mudas em área total, de custo elevado.
• Felizmente, no Brasil, em função da história recente da expansão agrícola em várias regiões (Amazônia e Brasil Central e as áreas de transição), a grande maioria das situações de APPs e mesmo de RLs poderão ser restauradas tendo como primeira ação o isolamento e a retirada do fator de degradação dessas áreas (restauração passiva), que pode ser acompanhada ou não da condução da regeneração natural, dependendo da intensidade de expressão dessa regeneração. Isso permitirá uma ocupação inicial (primeiros 2-3 anos) da área degradada com espécies nativas colonizadoras, formando uma capoeira, que poderá nos anos seguintes ser objeto de enriquecimento com espécies nativas da floresta madura, como por exemplo, espécies de outras formas de vida que não as arbóreas, espécies em risco de extinção local ou mesmo de espécies de interesse econômico, dependendo das características da paisagem regional e dos objetivos dessa restauração, o que é definido tecnicamente como manejo adaptativo. O enriquecimento desses fragmentos pode ser custeado por programas públicos visando à restauração e conservação da biodiversidade. O plantio total vai ficar restrito às regiões muito intensamente degradadas na história agrícola brasileira, onde praticamente todos os bons fragmentos remanescentes foram eliminados da paisagem regional, que não devem representar mais que 25% da restauração de APPs e RLs no Brasil;
• Portanto, a questão de custo da restauração não deve ser usada como impeditivo da proposição de ações de restauração das APPs e RLs e sim como enorme possibilidade de retorno econômico dessas áreas restauradas, por exemplo, com o uso sustentável das áreas de reserva legal, com o pagamento por serviços ambientais das APPs, com a agregação de valor do produto agrícola por meio da certificação ambiental, com o pagamento por créditos de carbono, com a importância da cadeia produtiva da restauração na geração de trabalho e renda para populações mais marginalizadas, etc. Para uma aproximação da melhor metodologia de restauração e do valor real do custo dessa restauração para fins de regularização ambiental deve-se analisar caso a caso, considerando as características da paisagem regional e a intensidade de uso da área a ser restaurada, temas esses que o Brasil tem grande conhecimento científico disponível.
10. ALGUNS SERVIÇOS AMBIENTAIS ESSENCIAIS DA VEGETAÇÃO RIPÁRIA POR SI SÓ JUSTIFICAM A IMPORTÂNCIA DE SUA PRESERVAÇÃO E RESTAURAÇÃO
• A faixa ripária ocupada por vegetação nativa promove vários serviços ambientais fundamentais para a própria agricultura e para a qualidade de vida da sociedade em geral. Esses serviços são fundamentais no processo de tecnificação da agricultura brasileira, colaborando na polinização da maioria das culturas agrícolas e evitando danos e perdas que contribuem para o insucesso financeiro da atividade de produção agrícola. Devido ao histórico de ocupação feito em nosso país é difícil entender que preservando certas áreas os ganhos são maiores que a substituição dessas áreas por culturas agrícolas. Abaixo são citados, com o devido suporte da literatura científica disponível, alguns serviços ambientais característicos das áreas ripárias:
• Infiltração de água e amortecimento de enchentes;
• Retenção de partículas de solo, erosão e assoreamento;
• Retenção de nutrientes provenientes de áreas agrícolas;
• Retenção de agroquímicos (inseticidas e herbicidas) provenientes de áreas agrícolas;
• A vegetação ripária como grande conservadora da biodiversidade remanescente;
• A vegetação ripária como elemento de ligação (corredor ecológico) na paisagem;
• As áreas ripárias como fonte de alimento e proteção para organismos aquáticos.