Razão áurea
 
 No dia 13 de maio, comemoramos 124 anos da Lei Áurea, que abolia a 
escravidão no Brasil. Mas ainda temos trabalho escravo e seguimos 
acorrentados numa visão de mundo que não saiu do século 19. Há até 
iniciativas políticas para retroceder em direitos conquistados pelos 
negros, descendentes dos escravos e herdeiros de uma dívida histórica da nação.
 
 Duas batalhas se dão: uma no Supremo Tribunal Federal e outra no 
Congresso Nacional. O partido DEM questiona o decreto presidencial que 
concede aos quilombolas o direito às terras ocupadas historicamente. Ao 
mesmo tempo, uma proposta de emenda à Constituição pode dar ao Congresso
 poder sobre demarcações de terras indígenas, de quilombolas e de 
conservação ambiental. Houve, ainda, o questionamento jurídico das cotas
 raciais nas universidades, julgadas legais pelo STF.
 
 
Surpreendentemente, muitos congressistas, especialmente os da Frente 
Parlamentar da Agricultura (os mesmos que aprovaram a pior versão do 
Código Florestal), são contrários ao texto que tramita no Congresso 
visando condenar e punir a prática de escravidão em empresas rurais e 
urbanas.
 
 A sensação é que muitos permanecem com a mentalidade 
dos senhores de engenho do período colonial, com os velhos argumentos de
 caráter econômico.
 
 Felizmente, a discussão dos temas gerou 
efeito inverso e deu aos brasileiros a oportunidade de refletir essa 
questão histórica com ideias fundamentadas e modernas.
 
 
Convidado para debater as cotas, o historiador Luiz Felipe de Alencastro
 demonstrou que o impacto da escravidão no Brasil deformou a sociedade, 
causando efeitos negativos não só na vida dos africanos, mas na formação
 de princí-pios éticos que perdurariam por longo tempo e afetariam 
várias gerações.
 
 A mentalidade escravocrata suplantava as leis.
 Tratados entre Inglaterra e Portugal, em 1818, e com o Brasil, em 1826,
 e outra lei brasileira, de 1831, proibiam o comércio de africanos e 
declaravam livres os cativos introduzidos no país após a proibição. 
Porém, até 1888, num conluio amplo e espúrio, a escravidão permaneceu. 
Ainda hoje permanece, como mostram as ações de fiscalização do 
Ministério do Trabalho.
 
 Ao votar sobre as cotas, os ministros 
do STF reconheceram que para combater a desigualdade, além do critério 
social, é preciso agregar o étnico, por razões históricas e por justiça.
 No julgamento, o STF erigiu um memorial à libertação, gesto corajoso e 
ainda necessário para libertar aqueles que não veem que a violência 
simbólica de suas ideias é a alma e o eco da violência física que 
sofriam os negros nas senzalas.
 
 Quanto ao Congresso, permanece a
 dúvida sobre o século em que estamos... esperemos que a maioria 
transite dos velhos tempos da senzala para o terceiro milênio.
 
 MARINA SILVA escreve às sextas-feiras nesta coluna.