As alterações propostas no Código Florestal brasileiro ignoram o conhecimento científico atual sobre a importância dos ecossistemas naturais e da biodiversidade. Além disso, contradizem diretrizes de programas de governo amplamente debatidos e aprovados e compromissos assumidos pelo Brasil em organismos e tratados internacionais. Comprometem também o futuro do país ao se oporem à tendência mundial em direção a um modelo sustentável de desenvolvimento.
opinião, Ciência Hoje • v o l . 4 6 • n º 2 7 4
Ima Célia Guimarães Vieira
Museu Paraense Emilio Goeldi
Bertha Koiffmann Becker
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Meio século após a elaboração do Código Florestal, é necessário, sem dúvida, rever as regras de uso da cobertura vegetal do território brasileiro, adequando-as às exigências de produtividade e competitividade do século 21. Tal adequação, porém, só será possível mediante políticas públicas coerentes e inovadoras, sintonizadas com o novo contexto e com o projeto de desenvolvimento que se deseja para o país. Considerando que pontos críticos da proposta de revisão que está em debate no Congresso Nacional já foram debatidos minuciosamente pela sociedade, o que se deseja neste texto é contribuir para a questão em duas dimensões:
1. as exigências contemporâneas de competitividade para o uso da terra, desconhecidas na proposta de revisão;
2. as fortes contradições da proposta que, articulada ao discurso dos imperativos do desenvolvimento, choca-se com outras importantes decisões governamentais que visam exatamente ao desenvolvimento.
Faz tempo que querem modificar o Código Florestal brasileiro. Essa lei não tem sido suficiente para evitar que, a cada ano, áreas de florestas sejam derrubadas e queimadas. A ‘necessidade’ de novas áreas de cultivo faz os produtores avançarem sobre a floresta, vista como improdutiva e fora do sistema de produção da propriedade. Essa situação decorre, em grande parte, da política generalizada de ocupação e uso da terra em todos os biomas, e particularmente na Amazônia, onde se descaracteriza de forma brutal o uso florestal da propriedade.
São muitas as desculpas para mudar a lei, depois de não cumpri-la. Uma é a de que é preciso ter mais área para a agricultura – uma preocupação com a ‘segurança alimentar’. Estudo (de 2009) do ecólogo Evaristo E. de Miranda e equipe, da Embrapa Monitoramento por Satélite, afirma que a legislação ambiental e indigenista brasileira ‘engessa’ mais de 73% do território nacional, destinados a Unidades de Conservação, Terras Indígenas, Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas Legais (RLs). No entanto, o cientista social e ecólogo José Augusto Drummond ressaltou, em trabalho de 2009, que o restante (27%) é suficiente para a expansão da agricultura.
Esse autor enfatiza que a agropecuária pode se expandir com base no aumento de produtividade e no aproveitamento/recuperação de solos ‘usados’, e que as RLs, que chegam a 31,54% do território nacional, juntamente com as APPs, seriam o preço a ser pago pela agropecuária – o que está de acordo com o movimento mundial que visa a enquadrar ambientalmente as atividades produtivas. Mais recentemente (2010), o agrônomo Gerd Sparoveck e outros demonstraram que o Brasil tem 61 milhões de hectares (ha) de alta e média produtividade agrícola que já estão alterados e podem ser usados na produção de alimentos. Segundo o pesquisador, dos 278 milhões de ha ocupados pela agropecuária no país, pelo menos 83 milhões estão em situação de não conformidade com o Código Florestal e teriam que ser recuperados.
Observando todos esses dados, é possível afirmar que, no Brasil, não é necessário cortar mais árvores para produzir alimentos e que há um grande passivo de florestas ilegalmente cortadas que precisam ser restauradas. Nesse contexto, o que nos surpreende é: por que uma lei de quase 50 anos não tem sido respeitada e cumprida? A discussão, após tanto tempo de destruição dos ecossistemas naturais brasileiros, deveria estar centrada em ‘onde’ e ‘como’ recuperar as Reservas Legais e Áreas de Proteção Permanente que não foram respeitadas.
As mudanças climáticas e o aquecimento global, amplamente debatidos por toda a sociedade, tornam ainda mais necessário manter RLs e APPs. À medida que avança o conhecimento sobre a importância da biodiversidade e dos serviços ambientais prestados por ecossistemas naturais, mais estamos certos de que quaisquer mudanças, agora, sem base científica, serão catastróficas para todos os biomas.
É importante ressaltar a incongruência entre as alterações propostas ao Código Florestal e os compromissos voluntários do Brasil na Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Estes envolvem claramente ações para prevenir e controlar o desmatamento nos biomas Amazônia e cerrado e um conjunto de metas voltadas à agricultura e que, se bem implantadas, garantiriam intensificar a produção, de modo sustentável, em áreas já alteradas nos diferentes biomas brasileiros. As metas incluem recuperação de áreas de pastagem degradadas, plantio direto, integração lavoura-pecuária-floresta e fixação biológica de nitrogênio.
A revisão do Código Florestal precisa, em vez de favorecer práticas obsoletas, incentivar a inovação contínua no uso do nosso patrimônio natural
Os seis biomas brasileiros têm cerca de 6,6 milhões de km2 de cobertura vegetal, e a perda desta, até 2008, já soma cerca de 3 milhões de km2 (45% do total), segundo dados do Ministério do Meio Ambiente (www.mma.gov.br/portalbio). Por que, então, perpetuar a expansão do desmatamento nos biomas ainda conservados e destruir os remanescentes de cobertura vegetal desses biomas? As RLs devem, também, ser uma contra Os seis biomas brasileiros têm cerca de 6,6 milhões de km2 de cobertura vegetal, e a perda desta, até 2008, já soma cerca de 3 milhões de km2 (45% do total), segundo dados do Ministério do Meio Ambiente (www.mma.gov.br/portalbio). Por que, então, perpetuar a expansão do desmatamento nos biomas ainda conservados e destruir os remanescentes de cobertura vegetal desses biomas? As RLs devem, também, ser uma contrapartida aos lucros da exploração da terra – a compensação pelo desmatamento e pela perda de biodiversidade. Se já dispomos de terras suficientes para o crescimento da produção agrícola, como comprovam Drummond e Sparoveck, não há razões econômicas, nem éticas, que justifiquem a perpetuação de um modelo de desenvolvimento que elimina os recursos naturais dos diferentes biomas.
As APPs significam uma decisão racional que visa a proteger áreas mais frágeis, como topos de morros, terrenos mais inclinados, matas ciliares dos rios e encostas e, sobretudo, as nascentes de água. Conservar a maior parte da cobertura vegetal nativa da Amazônia, manter a vegetação original restante dos demais biomas e recuperar o que foi destruído ilegalmente devem ser os caminhos a serem trilhados para combater a fragmentação de hábitats, proteger a diversidade dos ecossistemas e manter um percentual mínimo de vegetação nativa por bacia hidrográfica, como demonstrado em diversos trabalhos científicos.
O Brasil já é grande produtor de alimentos, mas, à medida que nos tornamos globalizados e a sociedade civil bem informada, as exigências são maiores – os produtos têm que ser comprovadamente saudáveis do ponto de vista ambiental, sem desmatamento associado (seja soja, carne ou até biodiesel). Até que ponto ‘flexibilizar’ a lei nos trará progresso agrícola e mais respeito às florestas que ainda restam?
Área da floresta amazônica, no Mato Grosso, desmatada para produção de soja em 2008
A proposta de alteração do Código Florestal, que tem como relator o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), já passou por votação em Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Dos pontos críticos das modificações defendidas pelo relator, preocupam-nos demasiadamente:
1) A dispensa de Reserva Legal para propriedades com até quatro módulos fiscais (o tamanho do módulo, que varia entre 10 e 100 ha na Amazônia, é definido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária para cada município) e a dispensa de recomposição da vegetação de áreas desmatadas ilegalmente. Vale lembrar que um imóvel pode ser dividido em módulos menores pelo mesmo dono quando ele quiser. No Pará, empresas interessadas em plantar dendê já estão apoiando agricultores familiares que tenham até 10 ha, que pela lei não precisam manter RLs, e muitos proprietários estão dividindo suas terras em módulos menores para atender a essa ‘demanda’.
2) A redução para 15 m nos limites de área de preservação permanente (APP) à margem dos rios, córregos, nascentes e outros cursos d’água de até 10 m de largura. Isso seria catastrófico, pois pequenos corredores de vegetação tornam inviável a manutenção de populações de alguns grupos de animais (mamíferos de grande porte, por exemplo).
3) O plantio em áreas de várzeas (hoje proibido por lei).
4) A consolidação de áreas hoje utilizadas para a atividade agropecuária, mesmo tendo sido desmatadas de maneira ilegal.
Sob o pretexto de garantir a ‘segurança alimentar’, a Comissão da Câmara aprovou uma anistia para todos os estragos feitos no passado e ignorou os avanços da ciência e dos programas estratégicos em andamento. APPs deveriam ser tratadas como patrimônios tombados e RLs como áreas que garantem a função social da propriedade! Do ponto de vista científico, o ecólogo Jean-Paul Metzger comprova (2010) que o estado das pesquisas atuais oferece forte sustentação para critérios e parâmetros definidos pelo Código Florestal de 1965 e, em alguns casos, haveria necessidade de expansão das APPs, e não sua redução.
Assim, alguns serviços ambientais já caracterizados nas APPs e RLs que não se restringem somente ao carbono, mas a aspectos hídricos, balanço de nutrientes, polinização e outros, que contribuem para a produção agrícola nas áreas próximas, deveriam ser considerados em qualquer discussão sobre mudança no Código Florestal refereferentes a essas áreas de proteção. Os múltiplos serviços ambientais, produzidos pela natureza ou por atividades humanas, já são um componente do futuro e atribuem novo e maior valor à cobertura vegetal, segundo uma das autoras (Becker, 2009). Eliminar RLs e APPs equivale a eliminar um uso da terra que representa um potencial de futuro, tanto para pequenos quanto para grandes produtores.
A construção de um novo paradigma, em que a terra, pública ou privada, deve cumprir uma função social consolidou-se apenas na Constituição de 1988. Desde o início do processo de colonização, a terra e o direito à propriedade foram tratados sob a ótica da especulação. Com o rápido avanço de problemas ambientais e a consciência de que o equilíbrio ambiental independe de questões administrativas ou temporais, o poder público brasileiro passou a intensificar a função de gestão territorial e ambiental, em todos os níveis.
Diante desse contexto, foram elaborados vários planos ou programas nacionais, e vale citar alguns (todos disponíveis na internet): Política Nacional de Biodiversidade, Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, Política Nacional sobre Mudança do Clima, Plano Nacional de Recursos Hídricos, Programa Terra Legal, Plano de Regularização Fundiária de Imóveis da União e Macrozoneamento Ecológico-econômico da Amazônia Legal.
Sem dúvida, faria mais sentido rever o Código Florestal a partir do conhecimento e das diretrizes previstas nos planos e compromissos assumidos com toda a sociedade, e não com uma pequena parcela dela. Hoje é necessário e urgente definir instrumentos econômicos de estímulo à conservação e criar fontes de financiamento para apoiar pequenos e médios produtores rurais para a averbação da Reserva Legal. Também é preciso definir mecanismos de financiamento da conservação em áreas privadas (como o mercado de carbono e o pagamento pelos serviços ambientais dos ecossistemas nativos) e reorientar os sistemas produtivos na Amazônia rumo a uma economia sustentável (em forma de gestão territorial integrada, valorizando o capital social presente em diferentes realidades). Além disso, são necessárias políticas públicas de longo prazo, que possam sustentar-se independentemente de articulações eleitorais e da subordinação de dispositivos político-institucionais aos desígnios momentâneos dos responsáveis pela tomada de decisões.
É preciso garantir que a revisão do Código Florestal seja feita com sabedoria e cautela para que a nova lei seja efetivamente cumprida e respeitada por todos – segurança alimentar e segurança ambiental são dois lados da mesma moeda
O desafio consiste na integração dos instrumentos de regulação, das políticas públicas e das novas oportunidades e mecanismos de incentivo à proteção ambiental, à produção sustentável e à restauração florestal, em uma abrangente estratégia para o estabelecimento de territórios sustentáveis nas regiões, em especial na Amazônia.
Seria isso a fazer agora, em vez de mudar o Código Florestal sem base científica alguma e sem sequer verificar diretrizes e metas previstas em programas nacionais e compromissos internacionais. Se o que a Comissão Especial aprovou for confirmado pelo plenário da Câmara dos Deputados, será um retrocesso geral. Políticas e programas oficiais não poderão ser realizados ou terão que ser modificados, muitos compromissos internacionais (redução de emissões de gás carbônico e conservação da biodiversidade, por exemplo) estarão fadados ao fracasso, resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e decisões amplamente discutidas para articular e implantar programas públicos ficarão desmoralizadas.
Há fortes contradições – no tempo e no espaço – geradas por políticas públicas em nome do desenvolvimento do país, mas que poderão dificultá-lo em futuro próximo. A contradição no tempo é patente na incongruência, como demonstrado aqui: liberar o uso da terra, como proposto, certamente ampliará o desmatamento, que já é grande, tornando difícil, senão impossível, manter o compromisso assumido por lei de reduzir entre 36% e 38%, até 2020, as emissões nacionais dos chamados gases de efeito estufa. No espaço, a contradição de políticas diz respeito, sobretudo, ao não reconhecimento da diversidade do território, em várias escalas, e da necessidade de adequar a lei à complexidade territorial.
No plano das políticas públicas, vale destacar o Macrozoneamento Ecológico-econômico da Amazônia Legal, recém-concluído e que envolve mais da metade do território nacional. Esse trabalho não pode ser desconsiderado no Código Florestal. O zoneamento indica: 1. que não deve ser permitido desflorestamento algum na floresta mais densa ainda bastante preservada; 2. que devem ser incentivados o uso dos serviços ambientais e o extrativismo; e 3. que na floresta mais aberta e no cerrado (já destruídos, respectivamente, em 50% e 40%) a recomposição da vegetação deve ser efetuada em ampla escala. Assim, não é possível pensar em dispensar as RLs nesses imensos espaços, mas, sim, planejar e incentivar o uso diversificado da terra.
Em um ambiente mundial crescentemente competitivo, o Brasil precisa ampliar suas forças distintas e a natureza de seu território é um dos trunfos. Seu sistema de inovação está em grande parte alicerçado em seus recursos naturais. Do petróleo e das hidrelétricas à agricultura, aos biocombustíveis e ao papel da floresta amazônica no clima, a maior parte das inovações no Brasil está associada a seus ativos naturais, como mostraram a cientista social Kirsten Bound (2008) e uma das autoras deste artigo (Becker, 2010).
A revisão do Código Florestal deve ter esse fato crucial em mente e precisa, em vez de favorecer práticas obsoletas, investir e incentivar a inovação contínua no uso de nosso patrimônio natural. A Amazônia é o grande potencial para esse laboratório a ser desenvolvido. Se necessário, para defender a Amazônia da destruição, melhor seria estatizar o coração da floresta que está bem preservada e utilizá-la apenas mediante concessões coordenadas pelo Estado.
É preciso garantir que a revisão do Código Florestal seja feita com sabedoria e cautela para que a nova lei seja efetivamente cumprida e respeitada por todos – segurança alimentar e segurança ambiental são dois lados da mesma moeda.