Célio Bermann foi assessor do Ministério de Minas e Energia durante os dois primeiros anos do governo Lula e se afastou em desacordo com o que considera desvirtuamento da política do governo para o setor. Crítico assíduo do planejamento energético brasileiro, Bermann não só rejeita a construção de usinas hidrelétricas como a de Belo Monte, mas propõe uma nova direção de desenvolvimento econômico para o país.
Qual é a importância econômica da Usina de Belo Monte para o Brasil?
A importância da usina deve ser medida pela sua capacidade de  produção de energia, pelo tempo que a energia produzida estará  disponível para o consumo da sociedade e pelos problemas de ordem social  e ambiental que essa usina representa, inclusive sob o ponto de vista  de custos. A importância econômica da Usina de Belo Monte para o Brasil é  negativa, porque ela vai custar muito. O governo fala em 19 bilhões de  reais de investimento, mas as empresas envolvidas na obra, na fabricação  dos equipamentos, dizem que a obra não sai por menos de 30 bilhões. Os  problemas sociais e ambientais, muitos deles, não têm custo financeiro.   Mas imagine a perda do valor cultural do rio Xingu, que é sagrado para  as populações indígenas. E esse tipo de raciocínio não está incorporado  na decisão de construir um empreendimento. A obra é superdimensionada,  porque a quantidade de água para tocar a usina na capacidade proposta,  de 11 mil MW (Itaipu produz 14 mil MW, para se ter uma idéia do tamanho  da usina), estará disponível apenas três meses ao ano. Na época de  estiagem, por exemplo, em setembro e outubro, a usina não vai produzir  mais do que 1 mil MW. Então porque investir numa obra com essa dimensão  se o retorno econômico/financeiro é baixo? Não é a toa que o capital  privado desistiu de participar da construção.E porque então construí-la? Qual é o interesse do governo se não haverá esse retorno?
Eu vejo a obra de Belo Monte como um projeto de longo prazo. É  preciso levar em consideração que mais da metade do chamado potencial  hidrelétrico, para construir hidrelétricas no Brasil, está localizado na  região amazônica, onde há problemas de ordens social e ambiental. O  fato de ter esse potencial para a construção de hidrelétricas faz com o  governo aponte para essa direção irreversível: a de construir essas  usinas, custe o que custar. Porque isso? O que chama atenção, como  sempre, é a perspectiva do apagão, de se ter falta de energia. Ninguém  quer ficar sem energia elétrica. Então essa forma de propagandear, de  alardear que vai ter apagão, faz com que se aceite usinas com essas  características. Não é particularmente o governo Lula, porque essa obra  está sendo pensada há 30 anos.O problema é que o governo Lula vai ficar na história como aquele governo que decretou o fim das populações indígenas e da cultura na região do Xingu. Para responder o por quê dessa obstinação do governo, é porque se conseguirem validar a construção da usina de Belo Monte, todas as outras usinas vão se validar também, principalmente no critério de impactos socio-ambientais. A Balbina (1) é conhecida como a pior concepção de hidrelétrica do mundo, porque ela está na planície amazônica, ocupa um reservatório enorme de mais de 2500 km2, para gerar 250 MW, sendo que a potência firme dela é de apenas 120 MW. Numa situação dessa, o critério lógico é abandonar o projeto. Isso não foi feito, na década de oitenta. De lá pra cá, aumentou o número de planos de hidrelétricas. Belo Monte representa simbolicamente a possibilidade de transformar todo o território amazônico em um grande conjunto de jazidas de megawatts. Embora frágil, com populações tradicionais que precisam ser respeitadas, populações indígenas que precisam ser consideradas, a perspectiva que Belo Monte aponta é de priorizar a geração de energia a partir das águas do rio Amazonas. E o resto? Bem, o resto é o resto.
O Brasil tem um papel de protagonismo internacional em  geração de energia limpa. No caso das hidrelétricas, temos enormes  reservas de água que podem ser vantajosas para o país. Não se deve  aproveitar essas vantagens?
O maior erro desta política energética que está sendo implementada é o  fato dela se apoiar em inverdades. Uma delas é de que a energia  hidrelétrica é limpa e barata. Ela não é. Estudos mostraram que Balbina,  Tucuruí e Samuel, as três maiores hidrelétricas construídas na região  amazônica até agora, emitem gases de efeito estufa mais ou na mesma  proporção que usinas a carvão mineral. Isso pode parecer uma surpresa,  mas nos primeiros dez anos de operação de uma usina da Amazônia, a  matéria orgânica, a mata, ela apodrece porque a água a deixa encoberta  permanentemente.  E o processo de apodrecimento é muito forte, acidifica  a água e emite metano, que é um gás 21 vezes mais forte que o gás  carbônico, principal gás do efeito estufa. Isso é conhecido pela ciência  mas não é considerado porque não é de interesse de quem concebe essas  usinas. O que interessa é a grande quantidade de dinheiro que vai ser  repassado para as empresas construtoras de barragens, turbinas e  geradores. O restante, o problema ambiental, as populações que serão  expulsas, a cultura indígena que está sendo desconsiderada, isso não  entra na conta.Ainda não entendi porque construir essa usina se a energia é  suja, cara e provoca todos esses impactos socioambientais. O Brasil  precisa dessa energia ou não?
Se o Brasil persistir nessa direção de desenvolvimento econômico,  sim. Mas é isso o que precisa ser mudado. No Brasil, 30% da energia  gerada é gasta por empresas que consomem muito: fábricas de aço e de  alumínio, principalmente. Todas as empresas presentes na Amazônia, e que  usam a energia de Tucuruí, são produtoras de alumínio, que é exportado.  Então é essa lógica que está por trás disso. Fala-se em crescimento  econômico mas a fabricação industrial é direcionada para essa produção e  para a exportação.Seguindo essa lógica, fatalmente o Brasil precisará de energia. O problema que precisa ser aberto para a população brasileira é se a gente quer um crescimento econômico com esse perfil. Ou se com a mesma energia disponível, não podemos produzir produtos que contenham mais tecnologia, mais mão de obra, que tenham maior valor agregado e aí sim, exportá-los. É o que o Japão faz. Na década de 80, todas as indústrias de alumínio foram fechadas. O Japão passou a importar o alumínio, transformá-lo em chips, para então vendê-los com um valor 20 vezes maior do que ele pagou pelo alumínio utilizado. É possível crescer economicamente gastando menos energia, se diversificarmos a nossa matriz energética para que ela não priorize a hidroeletricidade, como ela vem sendo priorizada hoje.
É falsa a idéia de que ela é mais barata do que as outras. Colocado na ponta do lápis, esse custo de 30 bilhões da usina de Belo Monte será financiado pelo BNDES, com o nosso dinheiro, porque as empresas privadas não quiseram entrar. O banco público vai bancar 80% dos investimentos e pagar empresas privadas para construir a usina. E a energia elétrica, muito provavelmente, vai servir para ampliar esse perfil industrial eletro-intensivo. Vai vir alguma coisa para o consumidor residencial brasileiro, mas poderíamos conseguir essa energia diversificando as fontes, não tendo essa idéia de privilegiar grandes blocos de consumo, como esse tipo de indústria faz. A gente tem, na economia brasileira, demonstrações de que existem setores que atendem ao requisito de menor consumo de energia, maior tecnologia e maior incorporação de mão de obra. Então porque não insistir nessa direção?
E quais são esses setores?
Por exemplo, a fabricação de aviões. Dentro da pauta de exportação  brasileira, é o que mais se sobressai, em termos de receita que advém da  venda desses equipamentos. Não dá para persistir na idéia de um país da  dimensão do Brasil, com as necessidades sociais que tem, como  exportador de soja, de café, de açúcar, de etanol…Exportar aço,  celulose, alumínio, é restringir a capacidade que o conhecimento  brasileiro tem, a capacidade de trabalho que o país tem de consumir  energia de uma forma mais inteligente, de uma forma que degrade menos a  força de trabalho de sua gente e o meio ambiente.Você acha que a sociedade brasileira está a par do que está acontecendo na Amazônia?
É fundamental que a discussão das usinas hidrelétricas da Amazônia  seja disseminada para que as idéias que hoje justificam essas obras  possam passar pelo crivo da sociedade, e não apenas de especialistas, e  aí eu me incluo, que mostram seu ponto de vista cientifico do por quê  condenar o empreendimento dessas obras. O projeto brasileiro é de  construir 28 usinas na região amazônica. Hoje tem quinze, mas de porte  são Tucuruí, Balbina e Samuel. Desse conjunto que se pretende, mostra  que 80% da capacidade de geração de energia elétrica prevista até 2020  vai vir de 28 usinas hidrelétricas da Amazônia.E a questão permanece: a que custos sociais e ambientais? Vale a pena? A gente não vai conseguir substituir a necessidade de energia de uma indústria de alumínio com o vento, ou com energia solar. Mas ela consegue suprir de uma forma diversificada parte da necessidade de consumo da população, de atividades de indústria de ponta, ou de comércio e serviços. Não devemos permanecer nessa dependência de grandes usinas hidrelétricas que custam caro, estão numa distância muito grande do consumo e representam do ponto de vista socio- ambiental, pesados óbices para um país como o Brasil aumentar a renda, a geração de emprego e melhorar a qualidade de vida da população.
A renda no Brasil é absurdamente concentrada e os esforços recentes nessa direção ainda são pouco significativos frente à dimensão que hoje se estabelece. Metade da população ganha a mesma renda que 5% dos brasileiros. Isso mostra porque temos problemas de segurança, baixa escolaridade, baixa capacitação de mão de obra para se qualificar e se inserir no mercado de trabalho. É um conjunto de problemas que se verifica e que poderiam ser resolvidos a partir dessa redifinição do que se quer de um país e como a energia pode contribuir numa qualidade de vida mais elevada. O problema é que estamos muito longe dessa direção.
Quais são as alternativas de geração de energia?
Para pequena escala serviria energia solar, dos ventos, dos resíduos  agrícolas. A política energética atual tem incorporado essas  alternativas de uma forma muito tímida, deveria ser multiplicada na sua  escala. Alegam que essas energias alternativas são caras mas se a gente  considera a hidroeletricidade com todos os problemas que eu apontei e  com todos seus custos, elas passam a ser viáveis, e passam a  potencialmente poder compor a cesta energética brasileira. Existe uma  falsa questão na hidroeletricidade quando ela é comparada aos  combustíveis fósseis e não tem uma vírgula sobre isso no projeto de Belo  Monte.Eu estranhei o espaço que a usina de Belo Monte tem tido na  mídia, nunca vi a imprensa defender tanto o meio ambiente. Você acha que  existe uma questão política por trás dessa discussão?
Eu já estive muito próximo do governo Lula. Participei dos primeiros  dois anos do governo como assessor de do Ministério de Minas e Energia. E  me afastei por ver a direção que o governo Lula tomava e a sua forma de  assegurar governabilidade, se aliando ao PMDB, particularmente à figura  do senador Sarney. Isso implicou um redirecionamento político,  inclusive nesse comportamento em relação às usinas hidrelétricas. Todo o  staff hoje das empresas públicas elétricas é de homens do Sarney. Então  a forma da oposição combater politicamente a obra de Belo Monte é em  função do que é evidente, dos custos, dos problemas socio-ambientais,  para com isso alimentar a crítica, mas que é de fundamento político, à  obra. Eu nao vi ainda a oposição dizer que não construiria Belo Monte.  Não vi o candidato de oposição se referir à usina de forma incisiva.  Então eu vejo que o comportamento da mídia em relação à Belo Monte, que  poderia resultar no envolvimento da sociedade com relação à usina e  criar condições para que o governo revesse a decisão, foi usado muito na  atitude de jogar pedra no telhado de vidro, quando eu suponho que seria  o mesmo telhado se tivéssemos outro governo.Um país subdesenvolvido pode ter um desenvolvimento  sustentavel? Quer dizer, um país com tantas necessidades sociais quanto o  Brasil pode pensar nesses termos a longo prazo?
Deveria. Mas na construção de hidrelétricas, não se pensa no meio  ambiente a longo prazo. Enquanto houver minérios na Amazônia, vamos  aproveitar. Uma usina hidrelétrica dura até 100 anos. Nos EUA, quando as  hidrelétricas já não funcionam mais, estão tentando recuperar a vida do  rio, porque a vida do rio morre com a usina hidrelétrica. A água que  corria agora fica parada, aumenta sua acidez, diminui o oxigênio, no  lago começam a formar macrófitas (algas). São evidências de que a coisa  não está indo no bom caminho se a gente pensa a longo prazo. A sociedade  não está informada, não participa do processo decisório. Quem participa  são essas pessoas que eu mencionei, com suas teias de interesse já  definidas. O deputado que hoje está na frente de uma empresa de geração  de energia elétrica pública, ele garante com esse tipo de articulação,  caixas de campanha para a próxima eleição. Eles embolsam o dinheiro  indiretamente, o que torna impossível de registrar, documentar e ser uma  peça importante num processo judicial de apuração de responsabilidades.O Delfim Netto escreveu coluna na revista CartaCapital  argumentando em defesa da construção da usina de Belo Monte. Segundo  ele, os não índios na região se beneficiariam com a criação de emprego e  a movimentação da economia. Termina a coluna citando uma frase que um  jornalista publicou no Estadão : “As questões ambientais ou indígenas  são vistas pelos locais como argumentos de quem tem sobrevivência  garantida. Não é o caso de boa parte dos 60 mil habitantes de Altamira”.
A afirmação do Dep. Delfim Neto apenas confunde. A sobrevivência das  populações tradicionais está e sempre esteve em permanente ameaça. A  população urbana de Altamira tem vários problemas que não são  enfrentados pelo município ou pelo estado. A ausência de políticas  públicas acaba conduzindo a população carente a acreditar que a usina  seria a redenção para a região. Como já havia sido, décadas atrás, a  construção da Transamazônica.Nota:
(1) A Usina Hidrelétrica de Balbina, no Amazonas, começou a ser construída em 1973 no rio Uatamã e passou a funcionar em 1988.
A entrevista é de Manuela Azenha, publicada no sítio Viomundo
Fonte: www.ihu.unisinos.br
Replicado do portal Rebia
 
