segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Porque devemos abandonar o Protocolo de Kyoto e almejar muito mais

Opinião, Sergio Abranches, Ecopolitica
09 outubro, 2009


A resposta é simples: não queremos um futuro de decadência. Queremos um grande salto para nós e para a humanidade. Tão significativo quanto o Iluminismo. O caminho para uma sociedade onde todo o potencial presente nas mudanças científicas, tecnológicas e societais de hoje possa florescer plenamente e levar a um novo estágio da evolução humana.

Sérgio Abranches

O Protocolo de Kyoto fracassou em quase todas as suas dimensões. Ele durou por tempo impressionante. Entretanto sua única virtude notável foi servir de catalisador para o desenvolvimento e a experimentação de mercados regionais e globais de carbono, como argumenta Mike Hume. Mas esses mercados não foram sequer capazes de estancar o crescimento das emissões. Suas falhas pesaram muito mais que seus poucos benefícios. Ele se tornou um escudo para que grandes emissores emergentes elidissem suas responsabilidades. Ele contempla uma visão medíocre do futuro, é o tratado para empurrar o problema com a barriga, não para promover o progresso.

Kyoto levou muito tempo para entrar em vigor. Quando passou a valer, foi ineficaz e ineficiente. O Protocolo foi basicamente uma invenção política, sem firme base científica ou econômica. Como escreve Oliver Tickell, ele “emergiu de um turbilhão de negociações e toma-lá-dá-cá dominado por interesses do status quo nacionais, políticos e comerciais”.

Ao tempo das negociações, o consenso científico sobre aquecimento global e mudança climática não era tão avassalador como é agora. Vozes dissidentes ainda eram levadas a sério. Agora não mais. Evidências concretas de aceleração do aquecimento global e da mudança climática aumentaram exponencialmente desde então. Kyoto não representa o estado atual do Mundo em relação aos riscos e oportunidades da mudança climática.

Não vou discutir em detalhe os fracassos de Kyoto. Recomendo “Why We Disagree About Climate Change”, de Mike Hume ; “Kyoto 2”, de Oliver Tickell ; “The Global Deal”, de Nicholas Stern; “The Politics of Climate Change”, de Anthony Giddens ; “Climate change negotiations reconsidered”, de Scott Barrett.

É suficiente dizer que o Protocolo de Kyoto não tem meta alguma para os grandes países emergentes, e metas medíocres para os países desenvolvidos. China, India e Brasil têm interpretado sua cláusula “responsabilidades comuns mas diferenciadas”, como “nenhuma obrigação”. Um novo acordo deveria estabelecer mais claramente que os grandes emissores, desenvolvidos e emergentes, têm responsabilidades compartilhadas, que levam a obrigações compulsórias e quantitativas, embora diferenciadas. Os países desenvolvidos têm realmente uma dívida de carbono, mas ela não pode ser paga com autorizações para que as nações em desenvolvimento repitam sua trajetória de alto carbono. Ela deve ser paga com a criação de mecanismos financeiros e técnicos que permitam a esses países buscarem um caminho de baixo carbono.

Kyoto não estabeleceu um mecanismo financeiro eficaz para promover a adaptação à mudança climática. O novo acordo tem que fixar a adaptação como alta prioridade e criar os meios financeiros institucionalizados para efetivamente ajudar os países mais pobres a se adaptarem à mudança climática, enquanto desenvolvem novas atividades econômicas de baixo carbono, que gerem emprego e renda e combatam a pobreza extrema.

O Protocolo foi ineficiente e ineficaz em relação a suas principais metas. É flexível demais. Seu mecanismo para obter a obediência às metas, muito fraco. Não conseguiu mudar o comportamento de suas partes signatárias. Admitiu a desobediência e induziu a complacência generalizada. Não por acaso, não alcançará sequer sua meta medíocre de queda de perto de 5% das emissões de gases estufa até 2012. Perto dos necessários 90% de queda até 2030, é um objetivo pífio. Como Nicholas Stern aponta, “de 1930 a 1950, a concentração dos gases de Kyoto aumentou em perto de 0,5 ppm per annum, de 1950 a 1970, em torno de 1 ppm per annum, e dali até 1990, a taxa de crescimento dobrou novamente. Na década passada [aquela que Kyoto deveria regular] ficou próxima de 2,5 ppm ao ano.”

Um dos pilares do Protocolo de Kyoto foi o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Foi uma boa idéia que ajudou a criar o catalisador para o desenvolvimento dos mercados globais de carbono, como nota Hume. Contudo, como diz Stern, na sua forma atual não é capaz de gerar ou absorver of fluxos financeiros e técnicos necessários sob um acordo global. O mecanismo é muito complexo e muito burocrático. Ele se baseia na discricionariedade absoluta de agentes regulatórios e burocráticos. No Brasil, por exemplo, permitiu que um único burocrata fosse capaz de bloquear todo o processo de licenciamento. Ele é vulnerável a comportamentos idiossincráticos, levando a resultados muito diferentes por país, incomparáveis entre si para fins de avaliação. O que se precisa é de um novo quadro conceitual e metodológico, não-discricionário, para reduzir os custos de transação, ganhar escala e acelerar o processo decisório.

Ele não deve ser o pivô central da dimensão financeira do acordo, mas parte de um sistema de mecanismos que tenham como objetivo último promover uma revolução tecnológica, como propõe Scott Barrett. O novo acordo global não deve ser desenhado tendo como objetivos finais as metas de emissões. Elas são um objetivo crítico, mas sua sustentabilidade depende de uma nova economia política, uma nova revolução industrial. Essa nova economia política requer uma verdadeira e completa revolução tecnológica. Para criar momentum para esse salto tecnológico, precisaremos de instrumentos competentes de mercados e enquadramentos regulatórios.

Para alcançar esse máximo objetivo, que nos guiará rumo a uma sociedade de baixo carbono, nós precisamos, claro de mecanismos de mercado e da disciplina institucional de um acordo multilateral, um novo acordo global verde. Mas nós devemos concentrar muito de nossas atenções no estado e nos requisitos de governança para essa transição. O “estado terá um papel fundamental em todos os países na criação das condições gerais para o sucesso desses esforços,” diz Giddens com razão.

O básico para um novo acordo global já é bem conhecido: as emissões de gases estufa (GEF) dos países desenvolvidos devem atingir seu pico em torno de 2015, para cair subsequentemente continuada e rapidamente. As emissões de GEF das potências emergentes (especialmente China, India e Brasil) devem ter seu pico em 2020, para então convergir para as trajetórias dos países desenvolvidos. As emissões globais devem cair, para, pelo menos, 50% dos níveis de 1990 até 2050, e as emissões globais per devem chegar a, pelo menos, 1 tonelada até 2050. A meta é efetivamente estabilizar as concentrações de gases estufa. Scott Barrett lembra corretamente que “há discordância sobre qual deverá ser o ponto de estabilização”. Hoje, está claro que, antes de pensarmos em estabilização, precisamos garantir que essas concentrações cheguem a 350 ppm.

Estabilização, diz Barrett, “requer que a atmosfera e os oceanos estejam em equilíbrio químico. Ao longo do tempo, a absorção pelos oceanos declinará com a queda das emissões. Em equilíbrio, se as concentrações forem [apenas] estabilizadas, as emissões terão que cair para zero.”

Kyoto deixou as florestas do mundo fora de seus mecanismos principais. O novo acordo terá que encontrar uma forma de incluí-las. E, além disso, criar o meios que incentivem metas de desmatamento zero e o máximo possível de reflorestamento.

Temos que criar as condições para escrever esses objetivos em um acordo considerado compulsório por todos. Os governos deveriam aderir e construir os mecanismos domésticos de governança necessários para que sejam realizados. Os governos entre os indiscutíveis grandes emissores que continuam, hoje, a se recusar a assumir suas obrigações estão traindo os interesses concretos de seus povos. Não se trata de estarem descumprindo alguma obrigação moral para com a humanidade.

O acordo deve ser ambicioso. Devemos mirar alto e olhar longe. Os que propõem que as negociações devem almejar o possível estão desejando o impossível: uma solução incremental, de procrastinação, para uma ameaça cataclísmica.

Olhar apenas até os limites do possível é se acomodar. É a fórmula da derrota. Temos nos acomodado, criado soluções parciais, tolerado, e fracassamos nos objetivos da mitigação e da adaptação. Estamos construindo um apocalipse, um fim do mundo, quase inconscientemente, por meio de nossa complacência e falta de visão.

O que nós precisamos é de ambição, ousadia, radicalismo climático, no lugar de manobras políticas e negaças diplomáticas. Precisamos ter um sonho, um sonho global. A sociedade de baixo carbono é possível. Está ao nosso alcance. Não estamos falando de decrescimento. Decrescimento é a ameaça por trás de nossa visão apocalíptica. Estamos falando de um novo padrão de desenvolvimento. Uma grande virada, como a passagem da Idade Média para o Iluminismo, como a transição do feudalismo ao capitalismo, pela via da Revolução Industrial. Já fizemos isso antes. Nós podemos mitigar a mudança climática, melhorar nosso bem-estar e combater a pobreza mundial. Por que deveríamos aceitar uma história futura mais pobre que nossa história passada?

A visão apocalíptica leva à paralisia ou ao delírio, é uma profecia que se realiza em si mesma. As Utopias nutrem revoluções. Nós podemos ser técnicos, práticos e efetivos, e ainda ter um sonho, perseguir uma Utopia para nós e para as próximas gerações.


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