segunda-feira, 22 de junho de 2009

Rodovia BR-319: Decisão Crítica sobre a Abertura do Coração da Amazônia ao Desmatamento


O EIA-RIMA da Rodovia BR-319

Philip M. Fearnside, Paulo Maurício Lima de Alencastro Graça
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia-INPA

O EIA-RIMA para a rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) trata de uma das decisões mais importantes diante o governo brasileiro hoje: se deveriam abrir as partes central e norte da Amazônia à migração oriunda do notório “arco de desmatamento", que
atualmente se restringe ao sul da Amazônia. A proposta reabertura da rodovia BR-319, uma estrada abandonada há mais de 20 anos, facilitaria em muito o movimento de atores do arco de desmatamento, inclusive grileiros (apropriadores ilegais de grandes áreas de
terra pública) e de sem terras (grupos organizados de camponeses pequenos que não possuem terras) (Fearnside & Graça, 2006; Fearnside, 2008). A região de Manaus, por exemplo, tem sido poupada de conflitos agrários resultantes da busca por terra, tais como a invasão de fazendas por sem terras, e o ciclo resultante de desmatamento onde os posseiros desmatam para estabelecer as suas reivindicações e os grandes proprietários de terras desmatam para evitar que as terras sejam invadidas ou então confiscadas pelo governo para fins de reforma agrária. A situação inusitada na Amazônia central somente é possível por causa da dificuldade de chegar até esta área na ausência de uma conexão por estrada. O EIA-RIMA especificamente rejeita um aumento da migração como impacto da BR-319, declarando que "A existência de uma migração reprimida é um fenômeno questionável, já que, desde os tempos da colonização da Amazônia, o uso da
via fluvial tem sido intenso, sendo o principal meio de acesso às diversas cidades da região" (UFAM, 2009a, Vol. 1, pág. 189). Infelizmente, a migração tem sido uma ocorrência repetida quando outras áreas foram abertas por estradas, como foi o caso da BR-364 em Rondônia (por exemplo, Fearnside, 1986).

O EIA-RIMA contém a confissão extraordinária de que a BR-319 tem "baixa importância para o Pólo Industrial de Manaus" (UFAM, 2009a, Vol. 1, pág. 216). Seguramente, isto deve ser uma das declarações mais extraordinárias nos 23 anos de história do EIA-RIMA no Brasil. A importância alegada da BR-319 para o Pólo Industrial de Manaus sempre foi a principal justificativa para a existência da rodovia. Infelizmente, a afirmação da inexistência de interesse é completamente verdadeira, e isto foi declarado publicamente pelo representante da Federação das Indústrias do Amazonas (FIAM) no evento realizado na Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) em 19 de março de 2008. Evento que teve por objetivo debater a proposta, que estava sendo apoiada pelo governo do Estado do Amazonas naquele momento, para substituir o projeto da rodovia BR-319 por uma ferrovia. Ampla informação existe
mostrando que a cabotagem em navios oceânicos de Manaus para Santos é um meio muito mais barato para transportar a produção das fábricas em Manaus para São Paulo do que transporte por qualquer rota rodoviária (Fearnside & Graça, 2006, 2009; Peixoto, 2006; Teixeira, 2007). Por exemplo, Teixeira (2007), investigando as opções de transporte de carga geral nas conexões com a região amazônica, concluiu que o transporte marítimo por cabotagem reduz os custos do transporte na ligação Manaus-São Paulo em 37%, quando comparado com os atuais meios de transporte. Por sua vez, a mesma autora, quando considera a construção da rodovia (BR-319) ligando ao resto da malha rodoviária brasileira, os custos aumentam em 19% em relação à rota atual, que utiliza a hidrovia até Belém.

O EIA-RIMA calcula o benefício da rodovia como a receita bruta do frete e do tráfego de passageiros que os autores esperam passar pela rota. Esta receita, é claro, não constitui nenhum tipo de benefício, mas sim um custo a ser pago por aqueles que usam a rodovia. Por esta lógica, quanto mais ineficiente e mais caro o transporte, maior o "benefício" que poderia ser contabilizado (L. Fleck, declaração pública, 15 de abril de 2009)! O benefício deveria ser calculado como a diferença entre o custo de transporte entre Manaus e São Paulo pela rodovia e o custo de transporte pela alternativa mais barata. Neste caso, a alternativa mais barata para a maioria do frete seria transporte em contêineres por cabotagem, e o "benefício" seria negativo porque a alternativa é mais barata que a rodovia. Observa-se que a viagem que precisa ser comparada para a maior parte do cálculo está entre Manaus e São Paulo, não entre Manaus e Porto Velho (UFAM, 2009a, Vol.1, item Análise Financeira do Projeto, pág. 191). Porto Velho serve apenas como um entreposto para os caminhoneiros em trânsito para São Paulo, e não como o destino final do transporte.

A quantidade de tráfego que os autores do EIA-RIMA esperam está baseada em suposições extraordinariamente otimistas. Eles esperam 375.000 passageiros de ônibus por ano a partir de 2012, data esperada de inauguração da rodovia (UFAM, 2009a, Vol. 1, pág. 193), o que é aproximadamente igual à população inteira da cidade de Porto Velho, que era de 368.345 habitantes em 2007 (UFAM, 2009a, Vol. 4, pág. 25). Vale à pena lembrar que atualmente o número de imigrantes chegando a Manaus é 1,8 vezes maior que o número de emigrantes saindo da cidade (UFAM, 2009a, Vol. 4, p. 208), e que a proporção de viagens no sentido Porto Velho-Manaus deve guardar uma proporção similar em comparação às viagens Manaus-Porto Velho depois de abrir a estrada. Esta migração líquida de desempregados para Manaus não representaria um benefício para Manaus de hipótese alguma, mas sim um custo enorme em termos de gastos municipais com serviços e em termos de outros impactos sociais.

Os autores do EIA declaram: “a rodovia BR-319 é encarada como uma promissora rota de exportação de commodities do agronegócio (soja e álcool)” (UFAM, 2009a, Vol. 1, p. 184). Porém, é improvável que este tipo de frete seja transportado por estrada, uma vez que estes produtos são muito mais baratos transportados a granel, em barcaças, do que fracionar o frete em contêineres ou caminhões. Poupar alguns poucos dias em transporte não justifica o custo substancialmente mais alto de transportar este tipo de frete por caminhão. A literatura de transporte trata a “carga geral” (carga fracionada) de uma maneira completamente diferente do transporte a granel (p. exemplo, cereais, carvão, minerais, etc.), devido aos custos muito discrepantes associados ao transporte, carregamento e administração destas duas classes distintas de frete. O EIA simplesmente usa uma equivalência de 60 t de grãos como igual a um contêiner (UFAM, 2009a, Vol. 1, pág. 192). As quantidades de produtos agrícolas que o EIA-RIMA espera que sejam transportadas para Manaus estão baseado na suposição de que 20% do potencial agrícola de Rondônia e de uma grande área em Mato Grosso serão transportados para Manaus pela rodovia. Nenhuma relação com a demanda em Manaus é demonstrada. A produção na área da qual os produtos agrícolas são obtidos totalizou 28 milhões de toneladas em 2006 (UFAM, 2009a, Vol. 1, pág. 192). Isto é composto de 49,2% soja, 16,0% madeira, 15,9% milho, 15,9% lenha, 2,5% culturas permanentes, 0,3% álcool e 0,2% açúcar (UFAM, 2009a, Vol. 1, pág. 185).

Um dos aspectos mais notáveis do EIA-RIMA é a seletividade com que são comparados os impactos e os benefícios. A abrangência máxima dos impactos está limitada à "área de influência indireta" ao longo da rota da rodovia, abarcando a faixa entre os rios Madeira e Purus (UFAM, 2009b, págs. 12-13), enquanto os benefícios são reivindicados para uma área muito maior, inclusive a cidade de Manaus, áreas agrícolas em Mato Grosso, e até mesmo outros países conectados à rede rodoviária pela infraestrutura planejada sob a IIRSA (Iniciativa para Infra-Estrutura da América do Sul) (UFAM, 2009a, Vol. 1, pág. 158). A "área de influência" para passageiros inclui uma população de 6,4 milhões que engloba Manaus, Rondônia e grande parte de Mato Grosso (UFAM, 2009a, Vol. 1, pág. 193). Impactos ao norte do rio Amazonas, incluindo os na cidade de Manaus, no Distrito Agropecuário da SUFRAMA ao norte de Manaus que
provavelmente será invadido por sem terras, e no Estado de Roraima e outras áreas para
as quais acesso rodoviário de Manaus já existe, não são mencionados. Também não são consideradas as estradas prováveis a serem construídas para ligar a BR-319 à área de floresta intacta ao oeste do Rio Purus (Figura 1).

O EIA especificamente exclui a consideração dessas estradas planejadas, observando “É interessante notar que a rodovia AM-366 faz parte de um planejamento de expansão rodoviária antigo. Segundo o planejado, esta rodovia seguiria em direção oeste, atravessando o rio Purus em direção à sede do município de Tefé, bifurcando-se na altura do rio Coari em direção a cidade de Coari e, a partir de Tefé, indo até o rio Juruá. Antes disso, apresentaria ainda uma ligação com a sede do município de Beruri. Segundo o planejado, esta rodovia seguirá, embora este planejamento faça parte do mapa oficial do planejamento do Ministério dos Transportes. A exceção da rodovia BR-319, nenhuma dessas estradas está no planejamento do Governo Federal” (UFAM, 2009b, Vol. 1, p. 58). No entanto, estas estradas adicionais, que se ramificam a partir da BR-319, fazem parte dos planos oficiais do Departamento Nacional de Infraestrutura de
Transportes (DNIT) e continuam sendo exibidas no site da internet do DNIT até hoje (Brasil, DNIT, 2002).

O fator chave na conclusão dos autores do EIA-RIMA sobre a viabilidade ambiental da obra é a sua crença em um cenário de “forte governança ambiental.” Eles concluem “quando se coteja com o cenário de governança ambiental forte, todos os indicadores (VPL [valor liquido presente], TIR [taxa interna de retorno] e IBC [indice custo/benefício]) se mostram altamente favoráveis ao projeto. Nesse cenário, os custos ambientais são mitigados a um nível desejável que torna o projeto socialmente desejável” UFAM, 2009a,Vol. 1, págs. 202-203). O exemplo dado desta “forte governança ambiental” é: “Não necessariamente o fato de ter rodovias em áreas de
concentração de recursos naturais implica em degradação do patrimônio natural. Um exemplo de turismo sustentável é aquele realizado no Parque Nacional de Yellowstone” (UFAM, 2009a, Vol. 1, pág. 204). Isto é seguido pelo mapa do parque de Yellowstone, indicando as estradas existentes dentro do parque, onde, é claro, ninguém desmata nada (Figura 2). Por coincidência, um de nós (PMF) é um ex-funcionário do Serviço de Parques Nacionais, dos EUA, e trabalhou como naturalista em um parque não muito distante de Yellowstone. A noção de que um cenário similar ao parque de Yellowstone se instalará na área aberta pela BR-319 é totalmente fora da realidade na área atualmente, onde há um cenário típico do “arco do desmatamento” ao seu redor, caracterizado pela disputa por terras e todos os seus desdobramentos (grileiros, posseiros, madeireiros ilegais). Parece mais realista que após o tempo que levaria para o cenário atual evoluir para o de Yellowstone, já não teria praticamente mais floresta na área! Presumir que um
cenário tão fora da realidade atual se instala com a rapidez necessária para evitar graves
impactos ambientais é extremamente perigoso como presunção para embasar decisões como a da abertura da estrada.

A falta de uma justificativa econômica se torna até irônica com a argumentação de que “Cada vez mais a sociedade brasileira questiona a elevada carga tributária, que atualmente está em torno de 37% do PIB. Portanto, é importante a aplicação eficiente dos recursos públicos na forma de projetos que atendam ao interesse da sociedade” (UFAM, 2009a, Vol. 1, pág. 177). Evidentemente, concordamos com a importância de não desperdiçar o dinheiro do contribuinte, o que deve ser um forte argumento contra a realização desta obra. Os autores do EIA-RIMA até sugeriram repassar parte do ônus mal contabilizado desta obra para os usuários, por meio da cobrança de um novo tipo de imposto na forma de um “pedágio ambiental” (UFAM, 2009a, Vol. 1, págs. 211-212).

A análise de custos ambientais realizada pelo EIA, considerou quatro cenários (um sem governança e os demais com governança fraca, moderada e forte) para a mensuração dos custos ambientais da pavimentação da rodovia BR319. Nesta análise os autores concluíram que devido aos altos custos ambientais a reconstrução da rodovia só teria viabilidade econômica no caso de um cenário de governança ambiental (UFAM, 2009a, Vol.1, pág. 203). No entanto, os custos ambientais para a realização de uma governança ambiental, tais como a implementação de Unidades de Conservação, postos de fiscalização, contratação de pessoal, não foram considerados na análise de custos. De acordo com dados preliminares de um estudo realizado pela Conservação Estratégica (CSF-Brasil), em abril de 2009, a implantação de 29 parques e reservas ao longo da
rodovia gerará um custo estimado de R$ 578 milhões, que não será coberto pela economia nos transportes. O custo para a implementação dessas áreas de proteção ambiental atualmente pelo governo é estimado em apenas 39 milhões de reais (Brasil, Ministério dos Transportes, 2009, pág. 5). Apesar da “blindagem verde” proposta para a BR 319, é possível que grandes áreas de florestas remotas bem conservadas sejam atingidas pelo desmatamento caso as estradas laterais planejadas pelo DNIT venham a ser realizadas. Por exemplo, já existe a um trecho aberto da extensão BR-174, que liga a BR-319 a Manicoré, atualmente intransitável, que ultrapassa essa “blindagem verde”. Pior, a estrada planejada cruzando o rio Purus em Tapauá abriria uma vasta área para desmatamento atrás da estreita fila proposta ao lado da rodovia BR-319.

Nenhum estudo de viabilidade existe para a BR-319. Um estudo de viabilidade consiste em uma estimativa detalhada dos custos e benefícios financeiros de um projeto proposto. Obviamente, este é um elemento fundamental no processo de tomada de decisão para qualquer projeto de infraestrutura. No caso da rodovia BR-319, o Ministério dos Transportes argumentou que nenhum estudo de viabilidade é preciso, pois considera que este projeto é apenas uma "recuperação" de uma estrada existente. O mesmo argumento era usado pelo Ministério dos Transportes ao reivindicar que nenhum EIARIMA seria necessário, mas isto não foi aceito pelos tribunais e agora foi elaborado um EIA-RIMA. A pergunta de por que um estudo de viabilidade também não foi realizado permanece. Por exemplo, a rodovia BR-163 (Santarém-Cuiabá), que também é um projeto de “reconstrução” de rodovia, tem os dois tipos de relatório: o EIA-RIMA e o estudo de viabilidade. Qualquer tomada de decisão racional sobre projetos de infra-estrutura como a rodovia BR-319 deve pesar todos os custos e benefícios para todas as alternativas,
inclusive a opção sem o projeto, antes que uma decisão fosse tomada. A finalidade de avaliações ambientais é de prover informações para tomar uma decisão racional. Neste caso, a consideração dos custos e benefícios é altamente seletiva, omitindo as comparações econômicas principais que precisam ser feitas relativo ao transporte entre Manaus e São Paulo (não somente entre Manaus e Porto Velho), e omitindo os impactos ambientais principais que seriam o resultado da migração para áreas fora da área ao longo da extensão de rodovia planejada para reconstrução. A apresentação das informações no EIA-RIMA deve ser de uma forma objetiva para permitir uma decisão livre sobre a obra pela sociedade e pelas autoridades competentes. Os autores do RIMA não demonstram nenhuma preocupação em manter uma posição neutra sobre a obra, concluindo que: “Ao final, reiteramos a relevância desta obra como instrumento de integração dos estados do Amazonas e Roraima ao restante do país e a importância de que ela seja executada com
base em alicerces econômicos, sociais e ecológicos fortes e equilibrados” (UFAM,