A pororoca de protestos nas ruas suscita várias tentativas de interpretação. Mas a visão do novo fenômeno está condicionada à posição de cada um: há os que olham da janela, das frestas, dos palácios ou das mesmas ruas onde caminham os manifestantes. Há os que se regozijam com os ventos da mudança e esforçam-se por descortinar novos horizontes. Há os que fecham as janelas e tentam ocultar a beleza do momento nas sombras da intolerância e do autoritarismo, construindo uma narrativa que mantenha tudo no lugar, do jeito que sempre foi.
Muitos ressaltam que uma parte crescente da população paga impostos e que, portanto, revolta-se com a corrupção, o desperdício e a baixa qualidade de serviços oferecidos pelo Estado em saúde, educação, transporte e segurança.
Ainda assim, é preciso ir mais fundo e perguntar: o que gerou a insatisfação que explode nas ruas? Como chegamos a tal estado de frustração? Por que os representantes se apartaram dos representados? Por que a corrupção é tão persistente? Por que sacrificamos os recursos naturais de milhões de anos pelo lucro de algumas décadas? Por que predomina a indiferença com o futuro e as próximas gerações?
Por mais densas que sejam, essas questões foram, ao mesmo tempo, formuladas e respondidas neste memorável junho de 2013. O "éthos" do movimento é uma irrupção de valores, o grito de uma ética libertária e profunda. E não foram apenas "os jovens", mas todas as gerações, pais e avós juntos aos filhos e netos, dizendo: o Brasil é nosso e nós o queremos melhor. A rejeição não era "aos políticos", mas aos vícios que o sistema por eles criado e gerenciado consagrou. A exigência é básica: respeito.
Esse clamor constrange a todos, pois os problemas da política, devo insistir, não são técnicos, mas éticos. Não falta metodologia para tornar o Brasil uma potência educacional, não falta ciência para vivermos com boa saúde, não falta tecnologia para a mobilidade urbana. Faltam vontade política e senso de responsabilidade, eis o motivo do constrangimento.
Infelizmente, alguns nem se constrangem. A frase do vice-presidente da República é reveladora do que as ruas denunciam: "O Congresso estará obrigado a seguir o que o plebiscito deliberou? Não. Ele faz o que quiser, ele é o senhor absoluto, não poderá perder o protagonismo político".
Na democracia, o poder emana do povo e por ele é exercido. Dele é o protagonismo, cuja perda foi denunciada e resgatada em grandes manifestações. O Estado é instrumento. O poder político é o de representar, não o de substituir o povo. O trabalho não é apenas para ele, mas com ele.
Esse é o valor que sustenta uma democracia. O resto são anéis, que alguns amam mais que aos próprios dedos.
Marina Silva, ex-senadora, foi ministra do Meio Ambiente no governo Lula e candidata ao Planalto em 2010. Escreve às sextas na versão impressa da Página A2.