Assim como o povo brasileiro, o povo da pequena Islândia um dia descobriu que estava em crise de representação. A crise econômica lhes havia mostrado a relação profundamente incestuosa entre classe política, imprensa e interesses econômicos do sistema financeiro.
Essa situação não seria superada por meio da troca dos partidos no comando, pois crises de representação exigem um movimento de outra natureza. Elas só podem ser realmente superadas quando saímos da própria esfera da representação, ou seja, quando fazemos apelo a uma força política bruta e instituinte fora do universo da representação.
Com essa consciência em mente, o povo islandês decidiu que era hora de ter outra Constituição. Mas, em vez de chamar juristas e políticos para preparar um esboço inicial do texto constitucional, eles fizeram algo mais ousado: mandaram, ao acaso, 950 cartas convocando 950 cidadãos a se reunirem em um estádio a fim de preparar as bases do que seria discutido na Assembleia Constituinte.
Essa incrível confiança no acaso, essa crença de que o acaso é o nome que desperta a potência da invenção democrática não foi a porta aberta para todos os delírios possíveis. Sua Constituição é uma das mais fantásticas peças da democracia contemporânea.
Há um tipo de pessoa incapaz de ter o único sentimento que realmente funda a democracia: confiança no povo. Para tais pessoas, toda vez que o povo é chamado à cena da instauração política, isso só pode significar convite ao caos e à desordem. O povo só pode aparecer dentro de um filme cujo cenário já está desenhado de antemão, seja para sorrir no dia da "festa eleitoral", seja para plebiscitar perguntas que a classe política previamente decidiu.
Nesse sentido, a única ideia sensata depois de semanas de ações paliativas para aplacar as manifestações populares foi a proposta de uma constituinte da reforma política capaz de colocar em questão todo o sistema atualmente em funcionamento. A ideia era tão sensata que foi abandonada em menos de 24 horas.
No seu lugar, ficou um plebiscito canhestro, em que a população será chamada a responder perguntas que ela não colocou. Ou alguém imagina que o povo brasileiro foi às ruas para decidir se as eleições teriam lista fechada ou aberta, voto distrital ou estadual? Há algo de piada de mau gosto nesse tipo de manobra.
Se alguém realmente ouvisse a população em nossos governos, a solução islandesa seria aplicada e as propostas de reforma política sairiam de fóruns de participação direta pela sábia mão do acaso. Isso, entretanto, seria pedir demais para quem, no fundo, tem medo das massas.
Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de
filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às terças na
Página A2 da versão impressa.