Coletânea de artigos selecionados por sua veracidade e importância para as questões ambientais no Brasil e no Mundo.
segunda-feira, 29 de julho de 2013
sábado, 27 de julho de 2013
A Tecnologia da Floresta é Insubstituível
Por Thays Prado
Produção: Rafaela Musto
No Ano Internacional das Florestas, o primeiro entrevistado do programa Ekos do Brasil é Antônio Donato Nobre, cientista da Terra e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Segundo ele, a única maneira possível de recuperarmos o equilíbrio do planeta é replantando florestas nativas. Afinal, elas possuem um grau de sofisticação tecnológica que o ser humano jamais será capaz de reproduzir.
Aprenda com o cientista sobre a importância das florestas.
Qual é a definição de florestas?
Floresta é um tapete multicolorido, vivo, extremamente rico, um tapete que tem 400 milhões de anos. Elas são uma colônia gigantesca de organismos que saíram do oceano e vieram para a terra. E dentro da folha existem condições semelhantes às da água do mar. Então, a floresta é um mar suspenso muito elaborado, muito adaptado. E essa colônia de organismos que tem a capacidade de fazer fotossíntese é responsável pelo oxigênio que a gente respira, pela estabilidade climática do planeta e pelo conforto que apreciamos na Terra e que é desconhecido fora da Terra. Se conversarmos com um astrônomo ou astrofísico, ele vai dizer que as condições de estabilidade climática, mesmo com os grandes acidentes naturais que presenciamos – tsunamis, tormentas, secas etc. –, isso é nada quando comparado ao que existe fora da Terra.
Qual é exatamente o papel das florestas para manter o equilíbrio terrestre?
O gás carbônico funciona como alimento para a planta. Quando ela o consome, faz madeira, folhas, frutos, raízes. Ao consumir o CO2, a concentração desse gás na atmosfera diminui. Com isso, o planeta esfria e a planta cresce menos, ou consome menos CO2 e o planeta esquenta. Então, ela funciona exatamente como um termostato.
Você costuma afirmar que a Amazônia não é simplesmente o pulmão do mundo. Qual é exatamente a função da Amazônia para o Brasil e para o planeta?
Os papéis são tantos que a gente ia gastar muito tempo falando dos papéis que a gente sabe, e olha que a gente sabe muito pouco ainda, estamos aprendendo. Quando começamos a entrar nos meandros da riqueza da floresta, é inevitável pensar: “Nossa, como é que nós, um dia, desmatamos?”. Porque isso é uma brutalidade. Hoje, olhamos para trás e falamos: “Como é que um dia a gente colocou seres humanos no porão de um navio, trouxe da África para a América e escravizou essas pessoas?”. Nós fazemos isso hoje, com todo o aparato legal que nós temos, nós cometemos uma atrocidade contra uma riqueza tecnológica incompreensível.
O senhor afirma que a energia captada pela floresta, para fazer evaporar, todos os dias, 20 bilhões de toneladas de água, é equivalente a 50 mil Itaipus. Isso significa que a tecnologia da natureza é insubstituível?
A floresta é o maior parque tecnológico que a Terra já conheceu, porque cada organismo lá é uma maravilha de miniaturização e manipulação de átomos e moléculas. Toda a pesquisa nanotecnológica, que recebe bilhões, se comparada a um simples micróbio ou à pontinha de uma folha, é patética, é ridícula. E com a nossa tecnologia, precisamos de uma estrutura monstruosa, sistema a vácuo, pinça a laser… Aquilo custa milhões, a gente consegue mover alguns átomos e é isso. A natureza, em temperatura ambiente, faz tudo isso numa complexidade extraordinária e ainda se reproduz.
As plantas na Amazônia tem antifúngicos poderosíssimos. Se uma pessoa tem um fungo de pele, você pega um extrato daquela planta, passa e acabou o fungo. Por quê? Porque as plantas da Amazônia têm que lidar com fungos o tempo todo, há milhões de anos. Elas inventaram soluções superinteligentes para lidar com isso. E isso é tecnologia que pode ser aproveitada pela indústria.
Então, se nos unirmos aos povos da floresta, fizermos uma universidade dentro da floresta, criarmos institutos e começarmos a estudar isso, aprender com quem sabe, com quem tem a noção intuitiva daquela sabedoria, daqui a pouco, teremos uma indústria pujante ligada à biodiversidade. E ninguém mais vai pensar em tirar aquela floresta para plantar soja. E não é que não precise plantar soja, mas vamos plantá-la nos lugares onde podemos plantar soja, e tem lugar de montão.
O senhor afirma que recuperar as florestas é a única maneira de restabelecer o equilíbrio climático. Fale sobre isso. O que podemos fazer efetivamente?
Podemos tentar recuperar as florestas que destruímos, e a natureza nos favorece nisso. É preciso reverter os desertos, as áreas que foram degradadas, enquanto é tempo, porque quando chega numa situação de Saara, não é possível reverter.
Nós temos essa capacidade de replantar florestas. No projeto Y Ikatu Xingu, os indígenas coletavam sementes das árvores nativas da floresta e os agricultores adaptaram uma plantadeira de soja para plantá-las. E eles recuperaram muitos hectares de uma floresta de galeria, porque reconheceram que foi um erro terem-na destruído.
Além disso, daqui a pouco, isso vai ser remunerado. Reconstruir os habitats vai gerar o que se chama de serviços ambientais. Nós estamos em um momento muito favorável e o mundo inteiro está demandando isso. Daqui a pouco, todas as empresas terão que colocar, em seus produtos, qual é o footprint (pegada) de floresta.
Reconstruir a floresta é a forma mais fácil de contrapormos um desequilíbrio de magnitudes nunca antes vistas. Eu não saberia dizer se isso vai resolver o problema, mas é a melhor opção que nós temos.
No Ano Internacional das Florestas, qual é a sua sugestão para revalorizarmos as florestas, que são tão importantes para o planeta como um todo?
Precisamos ligar a vida urbana com a vida rural, precisamos sentir empatia e simpatia pelos agricultores, de forma que eles percebam que a pessoa que vive no asfalto tem sensibilidade com a realidade que ocorre no campo. E todos juntos, entrarmos num grande projeto de reflorestamento nacional. Isso não vai tirar área para a agricultura. E, se a gente aplicar tecnologia, a agricultura vai aumentar sua produção, nos lugares que são adequados para isso.
Podemos usar a ciência e a tecnologia a serviço do esclarecimento e da otimização. Chamemos assim: paisagens produtivas. Não precisamos ter ou agricultura ou reserva florestal, com os ambientalistas protegendo a reserva de um lado e os agricultores querendo produzir de outro. Porque a reserva florestal é fundamental para a produção. A reserva produz água potável, produz oxigênio, limpa o ar, produz uma série de serviços que interessam à agricultura, interessam ao urbano, interessam a todo mundo. Então, vamos falar de paisagens produtivas, onde o ambientalista e o agricultor se dão as mãos vão trabalhar juntos. Nós estamos no mesmo barco, e o barco está afundando, precisamos encontrar soluções.
Produção: Rafaela Musto
No Ano Internacional das Florestas, o primeiro entrevistado do programa Ekos do Brasil é Antônio Donato Nobre, cientista da Terra e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Segundo ele, a única maneira possível de recuperarmos o equilíbrio do planeta é replantando florestas nativas. Afinal, elas possuem um grau de sofisticação tecnológica que o ser humano jamais será capaz de reproduzir.
Aprenda com o cientista sobre a importância das florestas.
Qual é a definição de florestas?
Floresta é um tapete multicolorido, vivo, extremamente rico, um tapete que tem 400 milhões de anos. Elas são uma colônia gigantesca de organismos que saíram do oceano e vieram para a terra. E dentro da folha existem condições semelhantes às da água do mar. Então, a floresta é um mar suspenso muito elaborado, muito adaptado. E essa colônia de organismos que tem a capacidade de fazer fotossíntese é responsável pelo oxigênio que a gente respira, pela estabilidade climática do planeta e pelo conforto que apreciamos na Terra e que é desconhecido fora da Terra. Se conversarmos com um astrônomo ou astrofísico, ele vai dizer que as condições de estabilidade climática, mesmo com os grandes acidentes naturais que presenciamos – tsunamis, tormentas, secas etc. –, isso é nada quando comparado ao que existe fora da Terra.
Qual é exatamente o papel das florestas para manter o equilíbrio terrestre?
O gás carbônico funciona como alimento para a planta. Quando ela o consome, faz madeira, folhas, frutos, raízes. Ao consumir o CO2, a concentração desse gás na atmosfera diminui. Com isso, o planeta esfria e a planta cresce menos, ou consome menos CO2 e o planeta esquenta. Então, ela funciona exatamente como um termostato.
Você costuma afirmar que a Amazônia não é simplesmente o pulmão do mundo. Qual é exatamente a função da Amazônia para o Brasil e para o planeta?
Os papéis são tantos que a gente ia gastar muito tempo falando dos papéis que a gente sabe, e olha que a gente sabe muito pouco ainda, estamos aprendendo. Quando começamos a entrar nos meandros da riqueza da floresta, é inevitável pensar: “Nossa, como é que nós, um dia, desmatamos?”. Porque isso é uma brutalidade. Hoje, olhamos para trás e falamos: “Como é que um dia a gente colocou seres humanos no porão de um navio, trouxe da África para a América e escravizou essas pessoas?”. Nós fazemos isso hoje, com todo o aparato legal que nós temos, nós cometemos uma atrocidade contra uma riqueza tecnológica incompreensível.
O senhor afirma que a energia captada pela floresta, para fazer evaporar, todos os dias, 20 bilhões de toneladas de água, é equivalente a 50 mil Itaipus. Isso significa que a tecnologia da natureza é insubstituível?
A floresta é o maior parque tecnológico que a Terra já conheceu, porque cada organismo lá é uma maravilha de miniaturização e manipulação de átomos e moléculas. Toda a pesquisa nanotecnológica, que recebe bilhões, se comparada a um simples micróbio ou à pontinha de uma folha, é patética, é ridícula. E com a nossa tecnologia, precisamos de uma estrutura monstruosa, sistema a vácuo, pinça a laser… Aquilo custa milhões, a gente consegue mover alguns átomos e é isso. A natureza, em temperatura ambiente, faz tudo isso numa complexidade extraordinária e ainda se reproduz.
As plantas na Amazônia tem antifúngicos poderosíssimos. Se uma pessoa tem um fungo de pele, você pega um extrato daquela planta, passa e acabou o fungo. Por quê? Porque as plantas da Amazônia têm que lidar com fungos o tempo todo, há milhões de anos. Elas inventaram soluções superinteligentes para lidar com isso. E isso é tecnologia que pode ser aproveitada pela indústria.
Então, se nos unirmos aos povos da floresta, fizermos uma universidade dentro da floresta, criarmos institutos e começarmos a estudar isso, aprender com quem sabe, com quem tem a noção intuitiva daquela sabedoria, daqui a pouco, teremos uma indústria pujante ligada à biodiversidade. E ninguém mais vai pensar em tirar aquela floresta para plantar soja. E não é que não precise plantar soja, mas vamos plantá-la nos lugares onde podemos plantar soja, e tem lugar de montão.
O senhor afirma que recuperar as florestas é a única maneira de restabelecer o equilíbrio climático. Fale sobre isso. O que podemos fazer efetivamente?
Podemos tentar recuperar as florestas que destruímos, e a natureza nos favorece nisso. É preciso reverter os desertos, as áreas que foram degradadas, enquanto é tempo, porque quando chega numa situação de Saara, não é possível reverter.
Nós temos essa capacidade de replantar florestas. No projeto Y Ikatu Xingu, os indígenas coletavam sementes das árvores nativas da floresta e os agricultores adaptaram uma plantadeira de soja para plantá-las. E eles recuperaram muitos hectares de uma floresta de galeria, porque reconheceram que foi um erro terem-na destruído.
Além disso, daqui a pouco, isso vai ser remunerado. Reconstruir os habitats vai gerar o que se chama de serviços ambientais. Nós estamos em um momento muito favorável e o mundo inteiro está demandando isso. Daqui a pouco, todas as empresas terão que colocar, em seus produtos, qual é o footprint (pegada) de floresta.
Reconstruir a floresta é a forma mais fácil de contrapormos um desequilíbrio de magnitudes nunca antes vistas. Eu não saberia dizer se isso vai resolver o problema, mas é a melhor opção que nós temos.
No Ano Internacional das Florestas, qual é a sua sugestão para revalorizarmos as florestas, que são tão importantes para o planeta como um todo?
Precisamos ligar a vida urbana com a vida rural, precisamos sentir empatia e simpatia pelos agricultores, de forma que eles percebam que a pessoa que vive no asfalto tem sensibilidade com a realidade que ocorre no campo. E todos juntos, entrarmos num grande projeto de reflorestamento nacional. Isso não vai tirar área para a agricultura. E, se a gente aplicar tecnologia, a agricultura vai aumentar sua produção, nos lugares que são adequados para isso.
Podemos usar a ciência e a tecnologia a serviço do esclarecimento e da otimização. Chamemos assim: paisagens produtivas. Não precisamos ter ou agricultura ou reserva florestal, com os ambientalistas protegendo a reserva de um lado e os agricultores querendo produzir de outro. Porque a reserva florestal é fundamental para a produção. A reserva produz água potável, produz oxigênio, limpa o ar, produz uma série de serviços que interessam à agricultura, interessam ao urbano, interessam a todo mundo. Então, vamos falar de paisagens produtivas, onde o ambientalista e o agricultor se dão as mãos vão trabalhar juntos. Nós estamos no mesmo barco, e o barco está afundando, precisamos encontrar soluções.
sexta-feira, 26 de julho de 2013
Energia do erro
26/07/2013
-
03h30
China e EUA, os dois maiores emissores de gases do efeito estufa,
divulgaram nas últimas semanas amplo plano de ação para reduzir suas
emissões, incluindo aumento da eficiência energética, desenvolvimento de
redes elétricas inteligentes e forte incentivo às fontes alternativas e
renováveis.
Quase ao mesmo tempo, o Banco Europeu de Investimento decidiu não mais financiar usinas movidas a carvão. Os gigantes da poluição mundial começam a fazer inflexão na trajetória, para se alinhar na luta contra o aquecimento global e as mudanças climáticas.
No Brasil, o avanço é o do retrocesso. O governo prepara-se para um leilão de energia daqui a um mês e inclui as termelétricas a carvão, agora não mais na condição de reservas acionadas em caso de emergência, mas como parte do que chama de energia de base no "planejamento estratégico".
As emissões de carbono diminuíram no Brasil nos últimos anos graças, exclusivamente, ao plano de combate ao desmatamento, que iniciamos há quase dez anos, e já dá sinais de esgotamento devido à má gestão, à falta de atenção às demandas da sociedade e dos movimentos socioambientais e aos retrocessos na mudança do Código Florestal.
Em todos os outros setores, a emissão de gases-estufa aumentou. No setor elétrico, atingiu 28 milhões de toneladas no primeiro semestre deste ano, um aumento de 132% em relação ao mesmo período de 2012, que já era maior que a do ano anterior.
No ano que vem, o Brasil sediará uma conferência internacional sobre adaptação às mudanças climáticas e poderá repetir o fiasco da Rio+20, com palavreado evasivo para esconder o retrocesso na prática.
Talvez os psicanalistas expliquem a resistência do governo a todas as alternativas para aproveitar com inteligência os abundantes recursos naturais e redirecionar o desenvolvimento do país para um padrão de baixo carbono, adaptado às novas condições globais.
Uma explicação puramente econômica não resiste à análise. O modelo atual acumula crises, agora com ameaças de retorno da inflação e do desemprego. A opção pelas termelétricas não ajuda nesse contexto, pois é mais cara que a eólica e não aponta para um posicionamento do país em relação às tendências tecnológicas.
Colocado em posição de liderança pela riqueza ambiental e pela diversidade criativa de seu povo, o Brasil recua e se coloca a reboque dos países que mais emitem gases-estufa, entregando-lhes a responsabilidade de encontrar soluções para uma crise que é de todos.
A produção de energia está submetida, hoje, a esse equívoco estratégico. Estamos comprometendo nosso futuro com opções energéticas do passado, em vez de abraçar as oportunidades e potenciais que temos pela frente.
materia na Folha de Sao Paulo
Marina Silva, ex-senadora, foi ministra do Meio Ambiente no governo Lula e candidata ao Planalto em 2010. Escreve às sextas na versão impressa da Página A2.
Quase ao mesmo tempo, o Banco Europeu de Investimento decidiu não mais financiar usinas movidas a carvão. Os gigantes da poluição mundial começam a fazer inflexão na trajetória, para se alinhar na luta contra o aquecimento global e as mudanças climáticas.
No Brasil, o avanço é o do retrocesso. O governo prepara-se para um leilão de energia daqui a um mês e inclui as termelétricas a carvão, agora não mais na condição de reservas acionadas em caso de emergência, mas como parte do que chama de energia de base no "planejamento estratégico".
As emissões de carbono diminuíram no Brasil nos últimos anos graças, exclusivamente, ao plano de combate ao desmatamento, que iniciamos há quase dez anos, e já dá sinais de esgotamento devido à má gestão, à falta de atenção às demandas da sociedade e dos movimentos socioambientais e aos retrocessos na mudança do Código Florestal.
Em todos os outros setores, a emissão de gases-estufa aumentou. No setor elétrico, atingiu 28 milhões de toneladas no primeiro semestre deste ano, um aumento de 132% em relação ao mesmo período de 2012, que já era maior que a do ano anterior.
No ano que vem, o Brasil sediará uma conferência internacional sobre adaptação às mudanças climáticas e poderá repetir o fiasco da Rio+20, com palavreado evasivo para esconder o retrocesso na prática.
Talvez os psicanalistas expliquem a resistência do governo a todas as alternativas para aproveitar com inteligência os abundantes recursos naturais e redirecionar o desenvolvimento do país para um padrão de baixo carbono, adaptado às novas condições globais.
Uma explicação puramente econômica não resiste à análise. O modelo atual acumula crises, agora com ameaças de retorno da inflação e do desemprego. A opção pelas termelétricas não ajuda nesse contexto, pois é mais cara que a eólica e não aponta para um posicionamento do país em relação às tendências tecnológicas.
Colocado em posição de liderança pela riqueza ambiental e pela diversidade criativa de seu povo, o Brasil recua e se coloca a reboque dos países que mais emitem gases-estufa, entregando-lhes a responsabilidade de encontrar soluções para uma crise que é de todos.
A produção de energia está submetida, hoje, a esse equívoco estratégico. Estamos comprometendo nosso futuro com opções energéticas do passado, em vez de abraçar as oportunidades e potenciais que temos pela frente.
materia na Folha de Sao Paulo
Marina Silva, ex-senadora, foi ministra do Meio Ambiente no governo Lula e candidata ao Planalto em 2010. Escreve às sextas na versão impressa da Página A2.
terça-feira, 16 de julho de 2013
Onde tudo começou
16/07/2013
-
03h30
Se procurarmos um ensaio geral para as manifestações de junho,
deveríamos voltar os olhos para a Amazônia. Lá se encontra o
megacanteiro de obras da usina de Jirau: uma das peças principais da
política energética brasileira.
Em 15 de março de 2011, o Brasil viu uma das mais violentas manifestações do subproletariado contra suas condições degradantes de trabalho. Sem se sentirem representados por sindicatos e outros atores políticos tradicionais, os trabalhadores de Jirau, que descobriram como as condições de trabalho no novo Brasil continuam insuportáveis, atearam fogo em alojamentos e ônibus. Eles atearam fogo também na afirmação de que o subproletário brasileiro preza a ausência de radicalismo e a segurança.
Foi assim que começou o governo Dilma, ou seja, com um sinal de alerta gritante para a frustração da sociedade com os limites do desenvolvimento social brasileiro.
Depois de Jirau, veio uma sequência quase ininterrupta de greves: de policiais, bombeiros, professores, coveiros. Todos reclamando dos baixos salários, incapazes de dar conta dos gastos em um país onde somos obrigados a pagar por educação e saúde, onde não se pode contar com transporte público e onde o preço dos imóveis explodiu devido à especulação imobiliária. Um país onde o banco estatal de desenvolvimento (o BNDES) foi capaz de aplicar uma política de incentivo à formação de grandes "players" internacionais que acabou por oligopolizar ainda mais a economia.
Sendo assim, não é nem um pouco estranho que um dos eixos das manifestações de junho tenha sido a incapacidade de o Estado brasileiro parar o processo de corrosão dos salários e criar serviços públicos universais e de qualidade. Pois, se há algo que une tanto o subproletário quanto a classe média, é a consciência de que o processo de ascensão social produzido pelo lulismo esgotou. Ele só poderia continuar por meio da criação de um Estado capaz de oferecer serviços públicos que eliminassem os gastos das famílias com educação, transporte e saúde.
Para tanto, contudo, não há milagre. Como dizem os liberais, não há almoço de graça. O problema brasileiro é que, quanto mais rico você é, menos paga seu almoço. Para impedir que rentistas, herdeiros, empresários que recebem mapas da mina das mãos do pai privatista e outras figuras do bestiário nacional continuassem almoçando sem pagar, o governo deveria ter partido para uma reforma fiscal que obrigasse os ricos a fazer o que não fazem em nenhum país latino-americano: pagar impostos.
Mas, para isso, seria preciso outra ideia do que significa "garantir a governabilidade". Ela é necessária agora, quando não dá mais para esconder Jirau no meio da floresta.
materia na folha
Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às terças na Página A2 da versão impressa.
Em 15 de março de 2011, o Brasil viu uma das mais violentas manifestações do subproletariado contra suas condições degradantes de trabalho. Sem se sentirem representados por sindicatos e outros atores políticos tradicionais, os trabalhadores de Jirau, que descobriram como as condições de trabalho no novo Brasil continuam insuportáveis, atearam fogo em alojamentos e ônibus. Eles atearam fogo também na afirmação de que o subproletário brasileiro preza a ausência de radicalismo e a segurança.
Foi assim que começou o governo Dilma, ou seja, com um sinal de alerta gritante para a frustração da sociedade com os limites do desenvolvimento social brasileiro.
Depois de Jirau, veio uma sequência quase ininterrupta de greves: de policiais, bombeiros, professores, coveiros. Todos reclamando dos baixos salários, incapazes de dar conta dos gastos em um país onde somos obrigados a pagar por educação e saúde, onde não se pode contar com transporte público e onde o preço dos imóveis explodiu devido à especulação imobiliária. Um país onde o banco estatal de desenvolvimento (o BNDES) foi capaz de aplicar uma política de incentivo à formação de grandes "players" internacionais que acabou por oligopolizar ainda mais a economia.
Sendo assim, não é nem um pouco estranho que um dos eixos das manifestações de junho tenha sido a incapacidade de o Estado brasileiro parar o processo de corrosão dos salários e criar serviços públicos universais e de qualidade. Pois, se há algo que une tanto o subproletário quanto a classe média, é a consciência de que o processo de ascensão social produzido pelo lulismo esgotou. Ele só poderia continuar por meio da criação de um Estado capaz de oferecer serviços públicos que eliminassem os gastos das famílias com educação, transporte e saúde.
Para tanto, contudo, não há milagre. Como dizem os liberais, não há almoço de graça. O problema brasileiro é que, quanto mais rico você é, menos paga seu almoço. Para impedir que rentistas, herdeiros, empresários que recebem mapas da mina das mãos do pai privatista e outras figuras do bestiário nacional continuassem almoçando sem pagar, o governo deveria ter partido para uma reforma fiscal que obrigasse os ricos a fazer o que não fazem em nenhum país latino-americano: pagar impostos.
Mas, para isso, seria preciso outra ideia do que significa "garantir a governabilidade". Ela é necessária agora, quando não dá mais para esconder Jirau no meio da floresta.
materia na folha
Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às terças na Página A2 da versão impressa.
domingo, 14 de julho de 2013
O mal-estar contemporâneo
Por André Lara Resende
Nenhuma liderança soube captar e expressar o mal-estar contemporâneo.
Este é provavelmente o seu elemento novo: a internet viabiliza a
mobilização antes que surjam as lideranças.
Na tentativa de
interpretar o protesto das ruas nas grandes cidades brasileiras, há uma
natural tentação de fazer um paralelo com os movimentos similares nos
países avançados, sobretudo da Europa, mas também nos EUA – Occupy Wall
Street – assim como com os da chamada Primavera Árabe. As condições
objetivas são, contudo, muito distintas. A Primavera Árabe é um fenômeno
de países totalitários, onde não há representação democrática. Não é o
caso do Brasil. Na Europa, sobretudo nos países mediterrâneos
periféricos mais atingidos pelos efeitos da crise financeira de 2008,
houve uma drástica piora das condições de vida. O desemprego,
especialmente entre os jovens, subiu para níveis dramáticos. Mais uma
vez, não é o caso do Brasil.
Nem os críticos mais radicais ousariam
argumentar que o Brasil de hoje não se enquadra nos moldes das
democracias representativas do século XX. Podem-se culpar os desacertos
da política econômica nos últimos seis anos. Embora devam ficar mais
evidentes daqui para a frente, os efeitos negativos da incompetência da
política econômica só muito recentemente se fizeram sentir. Fato é que,
desde a estabilização do processo inflacionário crônico, houve grandes
avanços nas condições econômicas de vida dos brasileiros. Nos últimos 20
anos, houve ganho substancial de renda entre os mais pobres. Ao
contrário do que ocorreu em outras partes do mundo, até mesmo nos países
avançados, a distribuição de renda melhorou. O desemprego está em seu
mínimo histórico.
É verdade que a inflação, especialmente a de
alimentos, que se faz sentir mais intensamente pelos assalariados, está
em alta. Por mais consciente que se seja em relação aos riscos,
políticos e econômicos, da inflação, é difícil atribuir à inflação o
papel de catalisadora do movimento das ruas nas últimas semanas. Só
agora a taxa de inflação superou o teto da banda – excessivamente
generosa, é verdade – da meta do Banco Central.
Os dois elementos
tradicionais da insatisfação popular – dificuldades econômicas e falta
de representação democrática – definitivamente não estão presentes no
Brasil de hoje. Inflação, desemprego, autoritarismo e falta de liberdade
de expressão não podem ser invocados para explicar a explosão popular. O
fenômeno é, portanto, novo. Procurar interpretá-lo de acordo com os
cânones do passado parece-me o caminho certo para não o compreender.
O movimento de maio de 1968 na França tem sido lembrado diante das
manifestações das últimas semanas. O paralelo se justifica, pois maio de
68 é o paradigma do movimento sem causas claras nem objetivos bem
definidos, uma combustão espontânea surpreendente, que ocorre em
condições políticas e econômicas relativamente favoráveis. Movimento
que, uma vez detonado, canaliza um sentimento de frustração difusa – um
“malaise”- com o estado das coisas, com tudo e todos, com a vida em
geral.
A novidade mais evidente em relação a maio de 68 na França é a
internet e as redes sociais. Embora não tivesse expressão clara na vida
pública francesa, a insatisfação difusa poderia ter sido diagnosticada,
ao menos entre os universitários parisienses. No Brasil de hoje, a
irritação difusa podia ser claramente percebida na internet e nas redes
sociais. O movimento pelo passe livre fez com que este mal-estar
transbordasse do virtual para a realidade das ruas. Tanto os
universitários franceses de 68, quanto os internautas do Brasil de hoje,
não representam exatamente o que se poderia chamar de as massas ou o
povão, mas funcionam igualmente como sensores e catalisadores de
frustrações comuns.
Quais as causas do mal-estar difuso no Brasil de
hoje, que transbordou da internet para a realidade e levou a população
às ruas?
Parecem ter dois eixos principais. O primeiro, e mais
evidente, é uma crise de representação. A sociedade não se reconhece nos
poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário – em todas
suas esferas. O segundo é que o projeto do Estado brasileiro não
corresponde mais aos anseios da população. O projeto do Estado, e não do
governo, é importante que se note, pois a questão transcende governos e
oposições. Este hiato entre o projeto do Estado e a sociedade explica
em grande parte a crise de representação.
O Estado brasileiro
mantém-se preso a um projeto cuja formulação é do início da segunda
metade do século passado. Um projeto que combina uma rede de proteção
social com a industrialização forçada. A rede de proteção social
inspirou-se nas reformas das economias capitalistas da Europa, entre as
duas Grandes Guerras, reforçadas após a crise dos anos 1930. Foi
introduzida no Brasil por Getúlio Vargas, para a organização do mercado
de trabalho, baseado no modelo da Itália de Mussolini. A
industrialização forçada através da substituição de importações,
introduzida por Juscelino Kubitschek nos anos 1950, e reforçada pelo
regime militar nos anos 1970, tem raízes mais autóctones. Suas origens
intelectuais são o desenvolvimentismo latino-americano dos anos 1950,
que defendia a ação direta do Estado, como empresário e planejador, para
acelerar a industrialização.
Não nos interessa aqui fazer a análise
crítica do projeto desenvolvimentista que, com altos e baixos, aos
trancos e barrancos, cumpriu seu papel e levou o país às portas da
modernidade neste início de século. Basta ressaltar que o
desenvolvimentismo, em seus dois pilares – a industrialização forçada e a
rede de proteção social – dependem da capacidade do Estado de extrair
recursos da sociedade. Recursos que devem ser utilizados para financiar o
investimento público e os benefícios da proteção social.
Diante da
baixa taxa de poupança do setor privado e da precariedade da estrutura
tributária do Estado, a inflação transferiu os recursos da sociedade
para o Estado, até que nos anos 1980 viesse a se tornar completamente
disfuncional. Com a inflação estabilizada, a partir do início dos anos
1990, o Estado se reorganizou para arrecadar por via fiscal também os
recursos que extraía através do imposto inflacionário. A carga fiscal
passou de menos de 15% da renda nacional, no início dos anos 1950, para
em torno de 25%, nas décadas de 1970 a 90, até saltar para os atuais
36%, depois da estabilização da inflação. O Brasil tem hoje uma carga
tributária comparável, ou mesmo superior, à das economias mais
avançadas.
O projeto do PT no governo revelou-se flagrantemente retrógrado. É essencialmente a volta do nacional- desenvolvimentismo.
Apesar de extrair da sociedade mais de um terço da renda nacional, o
Estado perdeu a capacidade de realizar seu projeto. Não o consegue
entregar porque, apesar de arrecadar 36% da renda nacional, investe
menos de 7% do que arrecada, ou seja, menos de 3% da renda nacional.
Para onde vão os outros 93% dos quase 40% da renda que extrai da
sociedade? Parte, para a rede de proteção e assistência social, que se
expandiu muito além do mercado de trabalho organizado, mas, sobretudo,
para sua própria operação. O Estado brasileiro tornou-se um sorvedouro
de recursos, cujo principal objetivo é financiar a si mesmo. Os sinais
dessa situação estão tão evidentes, que não é preciso conhecer e
analisar os números. O Executivo, com 39 ministérios ausentes e
inoperantes; o Legislativo, do qual só se tem más notícias e
frustrações; o Judiciário pomposo e exasperadoramente lento.
O
Estado foi também incapaz de perceber que seu projeto não corresponde
mais ao que deseja a sociedade. O modelo desenvolvimentista do século
passado tinha dois pilares. Primeiro, a convicção de que a
industrialização era o único caminho para escapar do subdesenvolvimento.
Países de economia primário-exportadora nunca poderiam almejar alcançar
o estágio de desenvolvimento das economias industrializadas. Segundo, a
convicção de que o capitalismo moderno exige a intervenção do Estado em
três dimensões: para estabilizar as crises cíclicas das economias de
mercado; para prover uma rede de proteção social; e, no caso dos países
subdesenvolvidos, para liderar o processo de industrialização acelerada.
As duas primeiras dimensões da ação do Estado são parte do consenso
formado depois da crise dos anos 1930. A terceira decorre do sucesso do
planejamento central soviético em transformar uma economia agrária,
semifeudal, numa potência industrial em poucas décadas. A proteção
tarifária do mercado interno, com o objetivo de proteger a indústria
nascente e promover a substituição de importações, completava o cardápio
com um toque de nacionalismo.
O nacional-desenvolvimentismo,
fermentado nos anos 1950, teve sua primeira formulação como plano de
ação do governo na proposta de Roberto Simonsen. Embora sempre combatido
pelos defensores mais radicais do liberalismo econômico, como Eugênio
Gudin, autor de famosa polêmica com Roberto Simonsen, e posteriormente
por Roberto Campos, foi adotado tanto pela esquerda, como pela direita.
Seu período de maior sucesso foi justamente o do “milagre econômico” do
regime militar.
Na década de 1980, a inflação se acelera e se torna
definitivamente disfuncional. As sucessivas e fracassadas tentativas de
estabilização passam a dominar o cenário econômico. Com a estabilização
do real, a partir da segunda metade da década de 1990, ainda com algum
constrangimento em reconhecer que o nacional-desenvolvimentismo já não
fazia sentido num mundo integrado pela globalização, o país parecia
estar em busca de novos rumos. A vitória do PT foi, sem dúvida, parte da
expressão desse anseio de mudança.
Nos dois primeiros anos do
governo Lula, a política econômica foi essencialmente pautada pela
necessidade de acalmar os mercados financeiros, sempre conservadores,
assustados com a perspectiva de uma virada radical à esquerda. A partir
daí, o PT passou a pôr em prática o seu projeto. Um projeto muito
diferente do que defendia enquanto oposição. O projeto do PT no governo,
frustrando as expectativas dos que esperavam mudanças, muito mais do
que o aparente continuísmo dos primeiros anos do governo Lula,
revelou-se flagrantemente retrógrado. É essencialmente a volta do
nacional-desenvolvimentismo, inspirado no período em este que foi mais
bem-sucedido: durante regime militar. A crise internacional de 2008
serviu para que o governo abandonasse o temor de desagrad ar aos
mercados financeiros e, sob pretexto de fazer política macroeconômica
anticíclica, promovesse definitivamente a volta do
nacional-desenvolvimentismo estatal.
O PT acrescentou dois elementos
novos em relação ao projeto nacional-desenvolvimentista do regime
militar: a ampliação da rede de proteção social, com o Bolsa Família, e o
loteamento do Estado. A ampliação da rede de proteção social se
justifica, tanto como uma inciativa capaz de romper o impasse da pobreza
absoluta, em que, apesar dos avanços da economia, grande parte da
população brasileira se via aprisionada, quanto como forma de manter um
mínimo de coerência com seu discurso histórico. Já a lógica por trás do
loteamento do Estado é puramente pragmática. Ao contrário do regime
militar, que não precisava de alianças difusas, o PT utilizou o
loteamento do Estado, em todas suas instâncias, como moeda de troca para
compor uma ampla base de sustent ação. Sem nenhum pudor ideológico,
juntou o sindicalismo de suas raízes com o fisiologismo do que já foi
chamado de Centrão, atualmente representado principalmente pelo PMDB, no
qual se encontra toda sorte de homens públicos, que, independentemente
de suas origens, perderam suas convicções ao longo da estrada e hoje são
essencialmente cínicos.
Há ainda um terceiro elemento do projeto de
poder do PT. Trata-se da eleição de uma parte do empresariado como
aliada estratégica. Tais aliados têm acesso privilegiado ao crédito
favorecido dos bancos públicos e, sobretudo, à boa vontade do governo,
para crescerem, absorverem empresas em dificuldades, consolidarem suas
posições oligopolísticas no mercado interno e se aventurarem
internacionalmente como “campeões nacionais”.
A combinação de um
projeto anacrônico com o loteamento do Estado entre o sindicalismo e o
fisiologismo político, ao contrário do pretendido, levou à
sobrevalorização cambial e à desindustrialização. Só foi possível
sustentar um crescimento econômico medíocre enquanto durou a alta dos
preços dos produtos primários, puxados pela demanda da China. A
ineficiência do Estado nas suas funções básicas – segurança,
infraestrutura, saúde e educação – agravou-se significativamente.
Ineficiência realçada pela redução da pobreza absoluta na população, que
aumentou a demanda por serviços de qualidade.
A insatisfação difusa
dos protestos pode vir a ser catalizadora de uma mudança profunda de
rumo, que abra o caminho para um novo desenvolvimento (na foto,
manifestantes sobem ao teto do Congresso)
Loteado e inadimplente em
suas funções essenciais, enquanto absorvia parcela cada vez maior da
renda nacional para sua própria operação, o Estado passou a ser visto
como um ilegítimo expropriador de recursos. Não apenas incapaz de
devolver à sociedade o mínimo que dele se espera, mas também um criador
de dificuldades. A combinação de uma excessiva regulamentação de todas
as esferas da vida, com a truculência e a arrogância de seus agentes,
consolidou o estranhamento da sociedade. Em todas as suas esferas, o
Estado deixou de ser percebido como um aliado, representativo e
prestador de serviço. Passou a ser visto como um insaciável
expropriador, cujo único objetivo é criar vantagens para os que dele
fazem parte, enquanto impõe dificuldades e cria obrigações para o
resto da população. O contraste da realidade com o ufanismo da
propaganda oficial só agravou o estranhamento e consolidou o divórcio
entre a população e os que deveriam ser seus representantes e
servidores.
A insatisfação com a democracia representativa não é um
fenômeno exclusivamente brasileiro. As razões dessa insatisfação ainda
não estão claras, mas é possível que o modelo de representação
democrática, constituído há dois séculos para sociedades menores e mais
homogêneas, tenha deixado de cumprir seu papel num mundo interligado de 7
bilhões de pessoas, e precise ser revisto. O debate público deslocou-se
das esferas tradicionais da política para a internet e as redes
sociais. Ameaçada pelo crescimento da internet e habituada ao seu papel
de agente da política tradicional, a mídia não percebeu que o debate
havia se deslocado.
No caso brasileiro, perplexa com sua aparente
falta de repercussão e pressionada financeiramente pela competição da
internet, uma parte da mídia desistiu do jornalismo de interesse público
e passou a fazer um jornalismo de puro entretenimento. Mesmo os que
resistiram, cederam, em maior ou menor escala, à lógica dos escândalos.
Foram incapazes de compreender a razão da sua falta de repercussão, pois
não se deram conta de que o público e o debate haviam se deslocado para
a internet. Surpreendida pelo movimento de protestos, num primeiro
momento, a mídia não foi capaz de avaliar a extensão da insatisfação.
Transformou-se ela própria em alvo da irritação popular. Em seguida,
aderiu sem convencer, sempre a reboque do debate e da mobilização
através da in ternet. A favor da mídia, diga-se que ninguém foi capaz de
captar a insatisfação latente antes da eclosão do movimento das ruas.
As pesquisas apontavam, até muito recentemente, grande apoio à
presidente da República, considerada praticamente imbatível, até mesmo
por seus eventuais adversários nas próximas eleições. Nenhuma liderança
soube captar e expressar o mal-estar contemporâneo. Este é provavelmente
o seu elemento novo: a internet viabiliza a mobilização antes que
surjam as lideranças. Tanto as possibilidades como os riscos são novos.
O projeto nacional-desenvolvimentista combina o consumismo das
economias capitalistas avançadas com o produtivismo soviético. Ambos
pressupõem que o crescimento material é o objetivo final da atividade
humana. Aí está a essência de seu caráter anacrônico. Os avanços da
informática permitiram a coleta de um volume extraordinário de
evidências sobre a psicologia e os componentes do bem-estar. A relação
entre renda e bem-estar só é claramente positiva até um nível
relativamente baixo de renda, capaz de atender às necessidades básicas
da vida. A partir daí, o aumento do bem-estar está associado ao que se
pode chamar de qualidade de vida, cujos elementos fundamentais são o
tempo com a família e os amigos, o sentido de comunidade e confiança nos
concidadãos, a saúde e a ausência de estresse emocional.
Os
estudos da moderna psicologia comprovam aquilo que de uma forma ou de
outra, mais ou menos conscientemente, intuímos todos: nossa
insaciabilidade de bens materiais advém do fato de que o bem-estar que
nos trazem é efêmero. Para manter a sensação de bem-estar, precisamos de
mais e novas aquisições. O consumismo material tem elementos parecidos
com o do uso de substâncias entorpecentes que causam dependência física e
psicológica.
No mundo todo, a população parece já ter intuído a
exaustão do modelo consumista do século XX, mas ainda não encontrou nas
esferas da política tradicional a capacidade de participar da formulação
das alternativas. Apegada a fórmulas feitas, a política continua
pautada pelos temas e objetivos de um mundo que não corresponde mais à
realidade de hoje. As grandes propostas totalizantes já não fazem
sentido. O nacionalismo, a obsessão com o crescimento material, a ênfase
no consumo supérfluo, os grandes embates ideológicos, temas que
dominaram a política nos últimos dois séculos, perderam importância.
Hoje, o que importa são questões concretas, relativas ao cotidiano,
questões de eficiência administrativa para garantir a qualidade de vida.
É significativo que os protestos no Brasil tenham começado com a
reivindicação do passe livre nos transportes públicos urbanos. A questão
da mobilidade nas grandes metrópoles é paradigmática da exaustão do
modelo produtivista-consumista. A indústria automobilística foi o pilar
da industrialização desenvolvimentista e o automóvel o símbolo supremo
da aspiração consumista. O inferno do trânsito nas grandes cidades, que
se agrava quanto mais bem-sucedido é o projeto desenvolvimentista, é a
expressão máxima da completa inviabilidade de prosseguir sem uma revisão
profunda de objetivos. Ao que parece, a sociedade intuiu a falência do
projeto do século passado antes que o Estado e aqueles que deveriam
representá-la – governo e oposição, Executivo, Legislativo e imprensa –
tenham se dado conta de que hoje trabalham com objetivos anacrônicos.
A insatisfação difusa dos protestos pode vir a ser catalizadora de uma
mudança profunda de rumo, que abra o caminho para um novo
desenvolvimento, não mais baseado exclusivamente no crescimento do
consumo material, mas na qualidade de vida. Para isso, é preciso que
surjam lideranças capazes de exprimir, formular e executar o novo
desenvolvimento.
André Lara Resende é economista. Este texto será
apresentado na Festa Literária de Paraty (Flip), em debate com o
filósofo Marcos Nobre, que ocorre neste sábado.
--
Para ver esta discussão na web, acesse https://groups.google.com/d/msgid/ppsdn/51dcee1a9ee6d_3a267f3693c681%40a4-weasel7.tmail.
Por André Lara Resende
Nenhuma liderança soube captar e expressar o mal-estar contemporâneo. Este é provavelmente o seu elemento novo: a internet viabiliza a mobilização antes que surjam as lideranças.
Na tentativa de interpretar o protesto das ruas nas grandes cidades brasileiras, há uma natural tentação de fazer um paralelo com os movimentos similares nos países avançados, sobretudo da Europa, mas também nos EUA – Occupy Wall Street – assim como com os da chamada Primavera Árabe. As condições objetivas são, contudo, muito distintas. A Primavera Árabe é um fenômeno de países totalitários, onde não há representação democrática. Não é o caso do Brasil. Na Europa, sobretudo nos países mediterrâneos periféricos mais atingidos pelos efeitos da crise financeira de 2008, houve uma drástica piora das condições de vida. O desemprego, especialmente entre os jovens, subiu para níveis dramáticos. Mais uma vez, não é o caso do Brasil.
Nem os críticos mais radicais ousariam argumentar que o Brasil de hoje não se enquadra nos moldes das democracias representativas do século XX. Podem-se culpar os desacertos da política econômica nos últimos seis anos. Embora devam ficar mais evidentes daqui para a frente, os efeitos negativos da incompetência da política econômica só muito recentemente se fizeram sentir. Fato é que, desde a estabilização do processo inflacionário crônico, houve grandes avanços nas condições econômicas de vida dos brasileiros. Nos últimos 20 anos, houve ganho substancial de renda entre os mais pobres. Ao contrário do que ocorreu em outras partes do mundo, até mesmo nos países avançados, a distribuição de renda melhorou. O desemprego está em seu mínimo histórico.
É verdade que a inflação, especialmente a de alimentos, que se faz sentir mais intensamente pelos assalariados, está em alta. Por mais consciente que se seja em relação aos riscos, políticos e econômicos, da inflação, é difícil atribuir à inflação o papel de catalisadora do movimento das ruas nas últimas semanas. Só agora a taxa de inflação superou o teto da banda – excessivamente generosa, é verdade – da meta do Banco Central.
Os dois elementos tradicionais da insatisfação popular – dificuldades econômicas e falta de representação democrática – definitivamente não estão presentes no Brasil de hoje. Inflação, desemprego, autoritarismo e falta de liberdade de expressão não podem ser invocados para explicar a explosão popular. O fenômeno é, portanto, novo. Procurar interpretá-lo de acordo com os cânones do passado parece-me o caminho certo para não o compreender.
O movimento de maio de 1968 na França tem sido lembrado diante das manifestações das últimas semanas. O paralelo se justifica, pois maio de 68 é o paradigma do movimento sem causas claras nem objetivos bem definidos, uma combustão espontânea surpreendente, que ocorre em condições políticas e econômicas relativamente favoráveis. Movimento que, uma vez detonado, canaliza um sentimento de frustração difusa – um “malaise”- com o estado das coisas, com tudo e todos, com a vida em geral.
A novidade mais evidente em relação a maio de 68 na França é a internet e as redes sociais. Embora não tivesse expressão clara na vida pública francesa, a insatisfação difusa poderia ter sido diagnosticada, ao menos entre os universitários parisienses. No Brasil de hoje, a irritação difusa podia ser claramente percebida na internet e nas redes sociais. O movimento pelo passe livre fez com que este mal-estar transbordasse do virtual para a realidade das ruas. Tanto os universitários franceses de 68, quanto os internautas do Brasil de hoje, não representam exatamente o que se poderia chamar de as massas ou o povão, mas funcionam igualmente como sensores e catalisadores de frustrações comuns.
Quais as causas do mal-estar difuso no Brasil de hoje, que transbordou da internet para a realidade e levou a população às ruas?
Parecem ter dois eixos principais. O primeiro, e mais evidente, é uma crise de representação. A sociedade não se reconhece nos poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário – em todas suas esferas. O segundo é que o projeto do Estado brasileiro não corresponde mais aos anseios da população. O projeto do Estado, e não do governo, é importante que se note, pois a questão transcende governos e oposições. Este hiato entre o projeto do Estado e a sociedade explica em grande parte a crise de representação.
O Estado brasileiro mantém-se preso a um projeto cuja formulação é do início da segunda metade do século passado. Um projeto que combina uma rede de proteção social com a industrialização forçada. A rede de proteção social inspirou-se nas reformas das economias capitalistas da Europa, entre as duas Grandes Guerras, reforçadas após a crise dos anos 1930. Foi introduzida no Brasil por Getúlio Vargas, para a organização do mercado de trabalho, baseado no modelo da Itália de Mussolini. A industrialização forçada através da substituição de importações, introduzida por Juscelino Kubitschek nos anos 1950, e reforçada pelo regime militar nos anos 1970, tem raízes mais autóctones. Suas origens intelectuais são o desenvolvimentismo latino-americano dos anos 1950, que defendia a ação direta do Estado, como empresário e planejador, para acelerar a industrialização.
Não nos interessa aqui fazer a análise crítica do projeto desenvolvimentista que, com altos e baixos, aos trancos e barrancos, cumpriu seu papel e levou o país às portas da modernidade neste início de século. Basta ressaltar que o desenvolvimentismo, em seus dois pilares – a industrialização forçada e a rede de proteção social – dependem da capacidade do Estado de extrair recursos da sociedade. Recursos que devem ser utilizados para financiar o investimento público e os benefícios da proteção social.
Diante da baixa taxa de poupança do setor privado e da precariedade da estrutura tributária do Estado, a inflação transferiu os recursos da sociedade para o Estado, até que nos anos 1980 viesse a se tornar completamente disfuncional. Com a inflação estabilizada, a partir do início dos anos 1990, o Estado se reorganizou para arrecadar por via fiscal também os recursos que extraía através do imposto inflacionário. A carga fiscal passou de menos de 15% da renda nacional, no início dos anos 1950, para em torno de 25%, nas décadas de 1970 a 90, até saltar para os atuais 36%, depois da estabilização da inflação. O Brasil tem hoje uma carga tributária comparável, ou mesmo superior, à das economias mais avançadas.
O projeto do PT no governo revelou-se flagrantemente retrógrado. É essencialmente a volta do nacional- desenvolvimentismo.
Apesar de extrair da sociedade mais de um terço da renda nacional, o Estado perdeu a capacidade de realizar seu projeto. Não o consegue entregar porque, apesar de arrecadar 36% da renda nacional, investe menos de 7% do que arrecada, ou seja, menos de 3% da renda nacional. Para onde vão os outros 93% dos quase 40% da renda que extrai da sociedade? Parte, para a rede de proteção e assistência social, que se expandiu muito além do mercado de trabalho organizado, mas, sobretudo, para sua própria operação. O Estado brasileiro tornou-se um sorvedouro de recursos, cujo principal objetivo é financiar a si mesmo. Os sinais dessa situação estão tão evidentes, que não é preciso conhecer e analisar os números. O Executivo, com 39 ministérios ausentes e inoperantes; o Legislativo, do qual só se tem más notícias e frustrações; o Judiciário pomposo e exasperadoramente lento.
O Estado foi também incapaz de perceber que seu projeto não corresponde mais ao que deseja a sociedade. O modelo desenvolvimentista do século passado tinha dois pilares. Primeiro, a convicção de que a industrialização era o único caminho para escapar do subdesenvolvimento. Países de economia primário-exportadora nunca poderiam almejar alcançar o estágio de desenvolvimento das economias industrializadas. Segundo, a convicção de que o capitalismo moderno exige a intervenção do Estado em três dimensões: para estabilizar as crises cíclicas das economias de mercado; para prover uma rede de proteção social; e, no caso dos países subdesenvolvidos, para liderar o processo de industrialização acelerada. As duas primeiras dimensões da ação do Estado são parte do consenso formado depois da crise dos anos 1930. A terceira decorre do sucesso do planejamento central soviético em transformar uma economia agrária, semifeudal, numa potência industrial em poucas décadas. A proteção tarifária do mercado interno, com o objetivo de proteger a indústria nascente e promover a substituição de importações, completava o cardápio com um toque de nacionalismo.
O nacional-desenvolvimentismo, fermentado nos anos 1950, teve sua primeira formulação como plano de ação do governo na proposta de Roberto Simonsen. Embora sempre combatido pelos defensores mais radicais do liberalismo econômico, como Eugênio Gudin, autor de famosa polêmica com Roberto Simonsen, e posteriormente por Roberto Campos, foi adotado tanto pela esquerda, como pela direita. Seu período de maior sucesso foi justamente o do “milagre econômico” do regime militar.
Na década de 1980, a inflação se acelera e se torna definitivamente disfuncional. As sucessivas e fracassadas tentativas de estabilização passam a dominar o cenário econômico. Com a estabilização do real, a partir da segunda metade da década de 1990, ainda com algum constrangimento em reconhecer que o nacional-desenvolvimentismo já não fazia sentido num mundo integrado pela globalização, o país parecia estar em busca de novos rumos. A vitória do PT foi, sem dúvida, parte da expressão desse anseio de mudança.
Nos dois primeiros anos do governo Lula, a política econômica foi essencialmente pautada pela necessidade de acalmar os mercados financeiros, sempre conservadores, assustados com a perspectiva de uma virada radical à esquerda. A partir daí, o PT passou a pôr em prática o seu projeto. Um projeto muito diferente do que defendia enquanto oposição. O projeto do PT no governo, frustrando as expectativas dos que esperavam mudanças, muito mais do que o aparente continuísmo dos primeiros anos do governo Lula, revelou-se flagrantemente retrógrado. É essencialmente a volta do nacional-desenvolvimentismo, inspirado no período em este que foi mais bem-sucedido: durante regime militar. A crise internacional de 2008 serviu para que o governo abandonasse o temor de desagrad ar aos mercados financeiros e, sob pretexto de fazer política macroeconômica anticíclica, promovesse definitivamente a volta do nacional-desenvolvimentismo estatal.
O PT acrescentou dois elementos novos em relação ao projeto nacional-desenvolvimentista do regime militar: a ampliação da rede de proteção social, com o Bolsa Família, e o loteamento do Estado. A ampliação da rede de proteção social se justifica, tanto como uma inciativa capaz de romper o impasse da pobreza absoluta, em que, apesar dos avanços da economia, grande parte da população brasileira se via aprisionada, quanto como forma de manter um mínimo de coerência com seu discurso histórico. Já a lógica por trás do loteamento do Estado é puramente pragmática. Ao contrário do regime militar, que não precisava de alianças difusas, o PT utilizou o loteamento do Estado, em todas suas instâncias, como moeda de troca para compor uma ampla base de sustent ação. Sem nenhum pudor ideológico, juntou o sindicalismo de suas raízes com o fisiologismo do que já foi chamado de Centrão, atualmente representado principalmente pelo PMDB, no qual se encontra toda sorte de homens públicos, que, independentemente de suas origens, perderam suas convicções ao longo da estrada e hoje são essencialmente cínicos.
Há ainda um terceiro elemento do projeto de poder do PT. Trata-se da eleição de uma parte do empresariado como aliada estratégica. Tais aliados têm acesso privilegiado ao crédito favorecido dos bancos públicos e, sobretudo, à boa vontade do governo, para crescerem, absorverem empresas em dificuldades, consolidarem suas posições oligopolísticas no mercado interno e se aventurarem internacionalmente como “campeões nacionais”.
A combinação de um projeto anacrônico com o loteamento do Estado entre o sindicalismo e o fisiologismo político, ao contrário do pretendido, levou à sobrevalorização cambial e à desindustrialização. Só foi possível sustentar um crescimento econômico medíocre enquanto durou a alta dos preços dos produtos primários, puxados pela demanda da China. A ineficiência do Estado nas suas funções básicas – segurança, infraestrutura, saúde e educação – agravou-se significativamente. Ineficiência realçada pela redução da pobreza absoluta na população, que aumentou a demanda por serviços de qualidade.
A insatisfação difusa dos protestos pode vir a ser catalizadora de uma mudança profunda de rumo, que abra o caminho para um novo desenvolvimento (na foto, manifestantes sobem ao teto do Congresso)
Loteado e inadimplente em suas funções essenciais, enquanto absorvia parcela cada vez maior da renda nacional para sua própria operação, o Estado passou a ser visto como um ilegítimo expropriador de recursos. Não apenas incapaz de devolver à sociedade o mínimo que dele se espera, mas também um criador de dificuldades. A combinação de uma excessiva regulamentação de todas as esferas da vida, com a truculência e a arrogância de seus agentes, consolidou o estranhamento da sociedade. Em todas as suas esferas, o Estado deixou de ser percebido como um aliado, representativo e prestador de serviço. Passou a ser visto como um insaciável expropriador, cujo único objetivo é criar vantagens para os que dele fazem parte, enquanto impõe dificuldades e cria obrigações para o resto da população. O contraste da realidade com o ufanismo da propaganda oficial só agravou o estranhamento e consolidou o divórcio entre a população e os que deveriam ser seus representantes e servidores.
A insatisfação com a democracia representativa não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. As razões dessa insatisfação ainda não estão claras, mas é possível que o modelo de representação democrática, constituído há dois séculos para sociedades menores e mais homogêneas, tenha deixado de cumprir seu papel num mundo interligado de 7 bilhões de pessoas, e precise ser revisto. O debate público deslocou-se das esferas tradicionais da política para a internet e as redes sociais. Ameaçada pelo crescimento da internet e habituada ao seu papel de agente da política tradicional, a mídia não percebeu que o debate havia se deslocado.
No caso brasileiro, perplexa com sua aparente falta de repercussão e pressionada financeiramente pela competição da internet, uma parte da mídia desistiu do jornalismo de interesse público e passou a fazer um jornalismo de puro entretenimento. Mesmo os que resistiram, cederam, em maior ou menor escala, à lógica dos escândalos. Foram incapazes de compreender a razão da sua falta de repercussão, pois não se deram conta de que o público e o debate haviam se deslocado para a internet. Surpreendida pelo movimento de protestos, num primeiro momento, a mídia não foi capaz de avaliar a extensão da insatisfação.
O projeto nacional-desenvolvimentista combina o consumismo das economias capitalistas avançadas com o produtivismo soviético. Ambos pressupõem que o crescimento material é o objetivo final da atividade humana. Aí está a essência de seu caráter anacrônico. Os avanços da informática permitiram a coleta de um volume extraordinário de evidências sobre a psicologia e os componentes do bem-estar. A relação entre renda e bem-estar só é claramente positiva até um nível relativamente baixo de renda, capaz de atender às necessidades básicas da vida. A partir daí, o aumento do bem-estar está associado ao que se pode chamar de qualidade de vida, cujos elementos fundamentais são o tempo com a família e os amigos, o sentido de comunidade e confiança nos concidadãos, a saúde e a ausência de estresse emocional.
Os estudos da moderna psicologia comprovam aquilo que de uma forma ou de outra, mais ou menos conscientemente, intuímos todos: nossa insaciabilidade de bens materiais advém do fato de que o bem-estar que nos trazem é efêmero. Para manter a sensação de bem-estar, precisamos de mais e novas aquisições. O consumismo material tem elementos parecidos com o do uso de substâncias entorpecentes que causam dependência física e psicológica.
No mundo todo, a população parece já ter intuído a exaustão do modelo consumista do século XX, mas ainda não encontrou nas esferas da política tradicional a capacidade de participar da formulação das alternativas. Apegada a fórmulas feitas, a política continua pautada pelos temas e objetivos de um mundo que não corresponde mais à realidade de hoje. As grandes propostas totalizantes já não fazem sentido. O nacionalismo, a obsessão com o crescimento material, a ênfase no consumo supérfluo, os grandes embates ideológicos, temas que dominaram a política nos últimos dois séculos, perderam importância. Hoje, o que importa são questões concretas, relativas ao cotidiano, questões de eficiência administrativa para garantir a qualidade de vida.
É significativo que os protestos no Brasil tenham começado com a reivindicação do passe livre nos transportes públicos urbanos. A questão da mobilidade nas grandes metrópoles é paradigmática da exaustão do modelo produtivista-consumista. A indústria automobilística foi o pilar da industrialização desenvolvimentista e o automóvel o símbolo supremo da aspiração consumista. O inferno do trânsito nas grandes cidades, que se agrava quanto mais bem-sucedido é o projeto desenvolvimentista, é a expressão máxima da completa inviabilidade de prosseguir sem uma revisão profunda de objetivos. Ao que parece, a sociedade intuiu a falência do projeto do século passado antes que o Estado e aqueles que deveriam representá-la – governo e oposição, Executivo, Legislativo e imprensa – tenham se dado conta de que hoje trabalham com objetivos anacrônicos.
A insatisfação difusa dos protestos pode vir a ser catalizadora de uma mudança profunda de rumo, que abra o caminho para um novo desenvolvimento, não mais baseado exclusivamente no crescimento do consumo material, mas na qualidade de vida. Para isso, é preciso que surjam lideranças capazes de exprimir, formular e executar o novo desenvolvimento.
André Lara Resende é economista. Este texto será apresentado na Festa Literária de Paraty (Flip), em debate com o filósofo Marcos Nobre, que ocorre neste sábado.
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Para ver esta discussão na web, acesse https://groups.google.com/d/msgid/ppsdn/51dcee1a9ee6d_3a267f3693c681%40a4-weasel7.tmail.
sexta-feira, 12 de julho de 2013
Os sem-gesto
12/07/2013 - 03h30
Numa reunião simbólica, representantes dos povos indígenas oram, finalmente, após mais de dois anos de espera, recebidos pela presidente Dilma. Como nas pinturas que retratam momentos históricos (a primeira missa, o grito do Ipiranga e outras que ilustram os livros escolares), as imagens que o governo apressa-se em produzir são arrumadas, e seus personagens, distribuídos nos lugares que lhes cabe.
"Só que não", como dizem os mais jovens nas redes sociais. Sabendo que, naquele exato momento, seus direitos estavam sendo ameaçados em manobras no Congresso, os índios não se deixaram enganar e expuseram sua insatisfação na carta que divulgaram em seguida. Não podem esquecer o genocídio que sofrem no chão que um dia foi seu.
De todo modo, permanece o simbolismo: a civilização "Matrix" está tão descolada do mundo real que não consegue passar da gesticulação ao gesto, da representação à presença. Ainda assim, esforça-se para produzir ao menos a impressão de que está respondendo às demandas da população.
Afinal, é disso que se trata, da presença desse novo personagem que tem forma de multidão e é polifônico, multicêntrico, imprevisível. Tudo se faz para ele: audiências, reuniões, aceleração de processos e votações, decisões sobre assuntos encalhados há vários anos.
O povo nas ruas destravou o Brasil. Além das conquistas imediatas, como no preço das passagens, o novo e indefinível personagem forneceu uma "licença política" até para antigas organizações voltarem às ruas com suas cores, símbolos e pauta de reivindicações.
Como em todos os momentos em que novos "espectros" rondam o mundo conhecido, há nele muitas reações: segurar as rédeas com mais força, nostalgia de quem passou de protagonista a figurante, histeria de quem se sente ameaçado, esperança de quem ainda crê na renovação das estruturas, oportunismos variados.
Mas há uma diferença: hoje, são poucos os entes políticos capazes de metabolizar a força tornada presente, pois a estagnação já atinge muitos grupos e em grau avançado.
Tenho a esperança de que, no Brasil, consigamos viver a transição civilizatória --que já se iniciou-- com alternativas menos conflituosas que levem mais à renovação do que à ruptura, embora saiba que uma combinação de ambas é inevitável e necessária.
Quando vejo os caciques políticos chamando os índios para aparecer na foto, lamento, pois vejo a repetição neurótica sob a gesticulação nervosa que oculta a ausência do gesto.
Quando vejo a altivez indígena recusando a manipulação, alegro-me com a força moral e ética de sua causa traduzida em ato.
O movimento oceânico que nos ronda pode parecer inconsciente para alguns, mas é consciente para si mesmo.
Marina Silva, ex-senadora, foi ministra do Meio Ambiente no governo Lula e candidata ao Planalto em 2010. Escreve às sextas na versão impressa da Página A2.
quarta-feira, 10 de julho de 2013
Entrevista da Marina Silva para o The Times
James Hider
Published at 12:01AM, July 10 2013
A
new rival to President Rousseff of Brazil has emerged in the form of a
leading environmentalist from the Amazon who shuns political parties and
warns of the imminent collapse of civilization.
Marina
Silva, an evangelical Christian and close ally of the murdered Amazon
activist Chico Mendes, emerged in recent polls as the main contender to
Mrs Rousseff, who had been considered a shoo-in for next year’s
presidential elections until nationwide street protests erupted last
month.
Of
mixed African-Portuguese heritage, Ms Silva grew up in a poor community
and was orphaned at 16. She worked as a maid to pay her way through
university and then became a union representative. As a state senator,
she tackled deforestation and big agribusiness in her native Amazon.
She
was already gaining popularity before the current social turmoil and
amassed almost 20 per cent of the vote in 2010. But the massive
outpouring of disgust at a political and economic system riddled with
corruption, inequality and violence has given the slightly built
55-year-old a huge boost.
“I’ve
been saying for a long time that we are seeing a new political
awakening all around the world and it’s finding new ways of expressing
itself,” she said. “We are seeing an activism that is no longer directed
by political parties. It is decentralized; it is leaderless.”
For
someone who does not believe in political parties or leadership — she
insists that she would stand for only one term — running for president
presents something of a paradox. But she said that she was not
deliberately seeking office, only trying to push her message for
sustainable development, combined with individual responsibility. If she
were elected, it would be a bonus.
“We
will have to learn to deal with the idea that leadership will be
multiple,” she said. “One moment you will be the leader and the next you
will be led. If there is something you could do with charisma, it’s to
convince people not to depend on charisma, but to become the subject of
your own history. We are living in a crisis of civilisation.”
Turning
that into reality will be difficult, but Ms Silva has promised that 30
per cent of the seats on her platform will go to independents.
She
has long experience of politics. She was Environment Minister under Mrs
Rousseff’s predecessor, President Lula da Silva, before quitting the
Workers’ Party to run as presidential candidate for the Greens three
years ago. Despite the scant air time given to minority parties, she
came third.
But
even the Green Party proved too mainstream and she formed her own
movement, the Sustainability Network, to challenge the constraints of
the political system, which allows only members of registered parties to
run for office.
“Brazil is a country that could make an important contribution to this world in crisis,” she said.
Now
her moment may be at hand, according to Marco Aurelio Nogueira, a
political analyst. “These protests were anti-institutional and she has
always been seen as an outsider, so she is benefiting. But it’s hard to
know whether this popularity will last.” he said.
Her
evangelical faith may not help either. She has been criticised by the
movement’s conservative wing for her liberal policies, including
proposing a referendum on abortion, still illegal in Brazil, and decriminalizing marijuana.
segunda-feira, 8 de julho de 2013
Tirar os índios da praia
08/07/2013
-
02h00
As respostas dos governos aos protestos tiveram apenas objetivo de curto
prazo: comprar a volta à normalidade a qualquer preço. Lembram a
explicação de Brizola, no exílio em Lisboa, em entrevista na qual
Hermano Alves se surpreendia com a moderação de seus propósitos: "Tenho
primeiro de tirar os índios da praia para poder desembarcar!".
Suspender o aumento das tarifas era o mínimo denominador comum das manifestações e foi o único pedido atendido. Não resolve nada no longo prazo nem garante a melhora dos transportes públicos. Intelectuais estrangeiros como Castells elogiam o espírito democrático dos governantes brasileiros, contrastando-o com a obstinação dos turcos.
Confundem com o desejo de atender à população o que pode não passar de maneira diferente de dizer não. Afinal, adiar as soluções práticas equivale à negação.
Se não é assim, por que não fazer logo o que depende só da decisão do Executivo? A bandeira mais frequente após o preço das passagens era o protesto contra a prioridade errada de estádios faraônicos.
Admitindo-se a dificuldade do governo em confessar que o melhor teria sido construir hospitais e facilitar o transporte, restava algo fácil e à mão. Bastava anunciar que recursos fantásticos reservados à mais mentirosa das prioridades --o trem-bala-- seriam destinados à construção de metrôs e trens suburbanos.
Ora, o que se fez foi o contrário: reafirmar o enlouquecido projeto rejeitado por virtual unanimidade do país. O governo confirma que suas prioridades continuam tão confusas como antes. Prova de que não houve contrição, nem desejo sincero de emenda, é que, na mesma semana, renovaram-se as manobras da contabilidade criativa para dissimular aumento de gastos e da dívida pública bruta.
Portanto, omite-se o que apenas depende do Executivo. Em lugar de medidas simples e imediatas, embarca-se o Congresso e a população no mais complexo e demorado dos desafios: a reforma do sistema político. Ainda se por milagre a reforma sair perfeita, os efeitos sobre a mobilidade urbana ou melhorias na saúde e educação serão, na melhor das hipóteses, indiretos e tardios.
O pior é renovar a velha ilusão brasileira de esperar da reforma política mais do que ela pode dar, o que vem gerando frustração desde o Ato Adicional e a Lei Saraiva do Império. As propostas do plebiscito são insuficientes. Lidam com problemas do passado. Nos países onde tudo isso já existe há muito tempo, discute-se como superar a crise da democracia representativa mediante meios diretos de controle e participação. Para esse problema atual da era das redes sociais e da internet, o plebiscito nada sugere.
Tampouco serve para evitar gastos da verba pública com estádios superdimensionados, motivados por um projeto triunfalista de poder. Ou para impedir falsas prioridades como o trem-bala, contabilidade criativa, inflação de ministérios inúteis e outros produtos de governos incompetentes.
O que obriga a uma conclusão: o plebiscito é uma fuga para frente, isto é, não podendo ou querendo fazer o possível agora, dilui-se o desafio na geleia geral das coisas remotas e impossíveis.
Rubens Ricupero, diretor da Faculdade de Economia da Faap, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), ministro da Amazônia e do Meio Ambiente, ministro da Fazenda (governo Itamar), embaixador em Genebra, Washington e Roma. Escreve quinzenalmente, aos domingos, na versão impressa de "Mercado".
Suspender o aumento das tarifas era o mínimo denominador comum das manifestações e foi o único pedido atendido. Não resolve nada no longo prazo nem garante a melhora dos transportes públicos. Intelectuais estrangeiros como Castells elogiam o espírito democrático dos governantes brasileiros, contrastando-o com a obstinação dos turcos.
Confundem com o desejo de atender à população o que pode não passar de maneira diferente de dizer não. Afinal, adiar as soluções práticas equivale à negação.
Se não é assim, por que não fazer logo o que depende só da decisão do Executivo? A bandeira mais frequente após o preço das passagens era o protesto contra a prioridade errada de estádios faraônicos.
Admitindo-se a dificuldade do governo em confessar que o melhor teria sido construir hospitais e facilitar o transporte, restava algo fácil e à mão. Bastava anunciar que recursos fantásticos reservados à mais mentirosa das prioridades --o trem-bala-- seriam destinados à construção de metrôs e trens suburbanos.
Ora, o que se fez foi o contrário: reafirmar o enlouquecido projeto rejeitado por virtual unanimidade do país. O governo confirma que suas prioridades continuam tão confusas como antes. Prova de que não houve contrição, nem desejo sincero de emenda, é que, na mesma semana, renovaram-se as manobras da contabilidade criativa para dissimular aumento de gastos e da dívida pública bruta.
Portanto, omite-se o que apenas depende do Executivo. Em lugar de medidas simples e imediatas, embarca-se o Congresso e a população no mais complexo e demorado dos desafios: a reforma do sistema político. Ainda se por milagre a reforma sair perfeita, os efeitos sobre a mobilidade urbana ou melhorias na saúde e educação serão, na melhor das hipóteses, indiretos e tardios.
O pior é renovar a velha ilusão brasileira de esperar da reforma política mais do que ela pode dar, o que vem gerando frustração desde o Ato Adicional e a Lei Saraiva do Império. As propostas do plebiscito são insuficientes. Lidam com problemas do passado. Nos países onde tudo isso já existe há muito tempo, discute-se como superar a crise da democracia representativa mediante meios diretos de controle e participação. Para esse problema atual da era das redes sociais e da internet, o plebiscito nada sugere.
Tampouco serve para evitar gastos da verba pública com estádios superdimensionados, motivados por um projeto triunfalista de poder. Ou para impedir falsas prioridades como o trem-bala, contabilidade criativa, inflação de ministérios inúteis e outros produtos de governos incompetentes.
O que obriga a uma conclusão: o plebiscito é uma fuga para frente, isto é, não podendo ou querendo fazer o possível agora, dilui-se o desafio na geleia geral das coisas remotas e impossíveis.
Rubens Ricupero, diretor da Faculdade de Economia da Faap, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), ministro da Amazônia e do Meio Ambiente, ministro da Fazenda (governo Itamar), embaixador em Genebra, Washington e Roma. Escreve quinzenalmente, aos domingos, na versão impressa de "Mercado".
Meditação ganha, enfim, aval científico
VEJA Saúde
Terapia
Estudos sérios estão afastando as dúvidas que costumavam pairar sobre a prática e mostram que ela é extremamente eficaz no tratamento do stress e da insônia, pode diminuir o risco de sofrer ataque cardíaco e até melhorar a reação do organismo aos tratamentos contra o câncer
Tiago Cordeiro
Meditação: arma poderosa contra o stress ganha respaldo científico
(Thinkstock)
Iniciada na Índia e difundida em toda a Ásia, a prática começou a se popularizar no ocidente com o guru Maharishi Mahesh Yogi, que nos anos 1960 convenceu os Beatles a atravessar o planeta para aprender a meditar. Até a década passada, não contava com respaldo médico. Nos últimos anos, os pesquisadores ocidentais começaram a entender por que, afinal, meditar funciona tão bem, e para tantos problemas de saúde diferentes. "Com a ressonância magnética e a tomografia, percebemos que a meditação muda o funcionamento de algumas áreas do cérebro, e isso influencia o equilíbrio do organismo como um todo", diz o psicólogo Michael Posner, da Universidade de Oregon.
A meditação não se resume a apenas uma técnica: são várias, diferindo na duração e no método (em silêncio, entoando mantras etc.). Essas variações, no entanto, não influenciam no resultado final, pois o efeito produzido no cérebro é parecido. Na prática, aumenta a atividade do córtex cingulado anterior (área ligada à atenção e à concentração), do córtex pré-frontal (ligado à coordenação motora) e do hipocampo (que armazena a memória). Também estimula a amígdala, que regula as emoções e, quando acionada, acelera o funcionamento do hipotálamo, responsável pela sensação de relaxamento.
Não se trata de encarar a meditação como uma panaceia universal, os estudos mostram também que ela tem aplicações bem específicas. Mas, ao contrário de outras terapias alternativas que carecem de comprovação científica, a meditação ganha cada vez mais respaldo de pesquisas realizadas por grandes instituições.
Hoje, os estudos sobre os benefícios da meditação estão concentrados em seis áreas.
Os benefícios da meditação
Redução do stress
Meditar é mais repousante do que dormir. Uma pessoa em estado de
meditação consome seis vezes menos oxigênio do que quando está dormindo.
Mas os efeitos para o cérebro vão mais longe: pessoas que meditam todos
os dias há mais de dez anos têm uma diminuição na produção de
adrenalina e cortisol, hormônios associados a distúrbios como ansiedade,
déficit de atenção e hiperatividade e stress. E experimentam um aumento
na produção de endorfinas, ligadas à sensação de felicidade. A mudança
na produção de hormônios foi observada por pesquisadores do Davis Center
for Mind and Brain da Universidade da Califórnia. Eles analisaram o
nível de adrenalina, cortisol e endorfinas antes e depois de um grupo de
voluntários meditar. E comprovaram que, quanto mais profundo o estado
de relaxamento, menor a produção de hormônios do stress.
Este efeito positivo não dura apenas enquanto a pessoa está meditando. Um estudo conduzido pelo Wake Forest Baptist Medical Center, na Carolina do Norte, colocou 15 voluntários para aprender a meditar em quatro aulas de 20 minutos cada. A atividade cerebral foi examinada antes e depois das sessões. Em todos os pesquisados, foi observada uma redução na atividade da amígdala, região do cérebro responsável por regular as emoções. E os níveis de ansiedade caíram 39%.
Para quem já está estressado, a meditação funciona como um remédio. Foi o que os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos descobriram ao analisar 28 enfermeiras do hospital da Universidade do Novo México, 22 delas com sintomas de stress pós-traumático. A metade que realizou duas sessões por semana de alongamento e meditação viram os níveis de cortisol baixar 67%. A outra metade continuou com os mesmos níveis.
Resultados parecidos foram observados entre refugiados do Congo, que tiveram que deixar suas terras para escapar da guerra. O grupo que meditou ao longo de um mês viu os sintomas de stress pós-traumático reduzir três vezes mais do que as pessoas que não meditaram – índices parecidos aos já observados entre veteranos americanos das guerras do Vietnã e do Iraque.
sexta-feira, 5 de julho de 2013
O senhor e os anéis
05/07/2013
-
03h30
Muitos ressaltam que uma parte crescente da população paga impostos e que, portanto, revolta-se com a corrupção, o desperdício e a baixa qualidade de serviços oferecidos pelo Estado em saúde, educação, transporte e segurança.
Ainda assim, é preciso ir mais fundo e perguntar: o que gerou a insatisfação que explode nas ruas? Como chegamos a tal estado de frustração? Por que os representantes se apartaram dos representados? Por que a corrupção é tão persistente? Por que sacrificamos os recursos naturais de milhões de anos pelo lucro de algumas décadas? Por que predomina a indiferença com o futuro e as próximas gerações?
Por mais densas que sejam, essas questões foram, ao mesmo tempo, formuladas e respondidas neste memorável junho de 2013. O "éthos" do movimento é uma irrupção de valores, o grito de uma ética libertária e profunda. E não foram apenas "os jovens", mas todas as gerações, pais e avós juntos aos filhos e netos, dizendo: o Brasil é nosso e nós o queremos melhor. A rejeição não era "aos políticos", mas aos vícios que o sistema por eles criado e gerenciado consagrou. A exigência é básica: respeito.
Esse clamor constrange a todos, pois os problemas da política, devo insistir, não são técnicos, mas éticos. Não falta metodologia para tornar o Brasil uma potência educacional, não falta ciência para vivermos com boa saúde, não falta tecnologia para a mobilidade urbana. Faltam vontade política e senso de responsabilidade, eis o motivo do constrangimento.
Infelizmente, alguns nem se constrangem. A frase do vice-presidente da República é reveladora do que as ruas denunciam: "O Congresso estará obrigado a seguir o que o plebiscito deliberou? Não. Ele faz o que quiser, ele é o senhor absoluto, não poderá perder o protagonismo político".
Na democracia, o poder emana do povo e por ele é exercido. Dele é o protagonismo, cuja perda foi denunciada e resgatada em grandes manifestações. O Estado é instrumento. O poder político é o de representar, não o de substituir o povo. O trabalho não é apenas para ele, mas com ele.
Esse é o valor que sustenta uma democracia. O resto são anéis, que alguns amam mais que aos próprios dedos.
Marina Silva, ex-senadora, foi ministra do Meio Ambiente no governo Lula e candidata ao Planalto em 2010. Escreve às sextas na versão impressa da Página A2.
A pororoca de protestos nas ruas suscita várias tentativas de interpretação. Mas a visão do novo fenômeno está condicionada à posição de cada um: há os que olham da janela, das frestas, dos palácios ou das mesmas ruas onde caminham os manifestantes. Há os que se regozijam com os ventos da mudança e esforçam-se por descortinar novos horizontes. Há os que fecham as janelas e tentam ocultar a beleza do momento nas sombras da intolerância e do autoritarismo, construindo uma narrativa que mantenha tudo no lugar, do jeito que sempre foi.
Muitos ressaltam que uma parte crescente da população paga impostos e que, portanto, revolta-se com a corrupção, o desperdício e a baixa qualidade de serviços oferecidos pelo Estado em saúde, educação, transporte e segurança.
Ainda assim, é preciso ir mais fundo e perguntar: o que gerou a insatisfação que explode nas ruas? Como chegamos a tal estado de frustração? Por que os representantes se apartaram dos representados? Por que a corrupção é tão persistente? Por que sacrificamos os recursos naturais de milhões de anos pelo lucro de algumas décadas? Por que predomina a indiferença com o futuro e as próximas gerações?
Por mais densas que sejam, essas questões foram, ao mesmo tempo, formuladas e respondidas neste memorável junho de 2013. O "éthos" do movimento é uma irrupção de valores, o grito de uma ética libertária e profunda. E não foram apenas "os jovens", mas todas as gerações, pais e avós juntos aos filhos e netos, dizendo: o Brasil é nosso e nós o queremos melhor. A rejeição não era "aos políticos", mas aos vícios que o sistema por eles criado e gerenciado consagrou. A exigência é básica: respeito.
Esse clamor constrange a todos, pois os problemas da política, devo insistir, não são técnicos, mas éticos. Não falta metodologia para tornar o Brasil uma potência educacional, não falta ciência para vivermos com boa saúde, não falta tecnologia para a mobilidade urbana. Faltam vontade política e senso de responsabilidade, eis o motivo do constrangimento.
Infelizmente, alguns nem se constrangem. A frase do vice-presidente da República é reveladora do que as ruas denunciam: "O Congresso estará obrigado a seguir o que o plebiscito deliberou? Não. Ele faz o que quiser, ele é o senhor absoluto, não poderá perder o protagonismo político".
Na democracia, o poder emana do povo e por ele é exercido. Dele é o protagonismo, cuja perda foi denunciada e resgatada em grandes manifestações. O Estado é instrumento. O poder político é o de representar, não o de substituir o povo. O trabalho não é apenas para ele, mas com ele.
Esse é o valor que sustenta uma democracia. O resto são anéis, que alguns amam mais que aos próprios dedos.
Marina Silva, ex-senadora, foi ministra do Meio Ambiente no governo Lula e candidata ao Planalto em 2010. Escreve às sextas na versão impressa da Página A2.
quinta-feira, 4 de julho de 2013
X-Tudo: uma rebelião contra o vazio
quinta-feira, 04 de Julho de 2013
Márcio Santilli
O
título acima poderia ser uma expressão depreciativa para se referir à
pluralidade das reivindicações que emanam das manifestações de rua das
últimas semanas. Numa concepção política clássica, o foco seria
fundamental para potencializar o efeito político da mensagem e as suas
chances de influenciar decisões ou mudar o rumo das coisas.
Mas não se trata de depreciação, ao contrário, pois o “tudo” é o “X” da questão, pela simples e boa razão de se contrapor claramente ao nada. É uma forma potencialmente unitária de questionar o vazio político monumental gerado pela diluição de toda e qualquer referência programática ou doutrinária e pela adesão e cooptação das principais forças políticas do pós-ditadura ao modo de ser corrupto do sistema.
As pessoas que têm ido às ruas não querem a naturalização dos sofridos avanços políticos e sociais conquistados nesse período como se fosse “o possível”, numa lógica maniqueísta do tipo “é isto ou andar para trás”. Como se o misto-quente do bolsa-família com empreiteiras de obras públicas fosse uma espécie de fim da história.
X tudo, sim, porque as pessoas querem discutir tudo que for efetivamente importante para a melhoria das suas condições de vida e do padrão civilizatório do país. Querem saber de objetivos e metas para as políticas, do que a redução do valor das passagens dos ônibus é apenas uma referência simples e essencial, tendo, por isso mesmo, exercido um poder catártico no ponto certo da maturação de múltiplas frustrações.
Por isso mesmo, as manifestações podem acolher, inclusive, bandeiras antagônicas no que propõem, mas aliadas quanto à necessidade de propor. Significa dizer que também valem as contradições francas e explícitas, como condição para se chegar a alguma resultante, desde que tenha conteúdo e clareza.
Com o seu majestoso sentido pacífico, as manifestações tiveram até que acolher a sua própria antítese, como pequenos grupos dispostos a demonstrações de violência. E outros pretendentes a alguma manipulação corporativa ou partidária ou, simplesmente, candidatos a surfar pelas ondas das ruas à procura das suas próprias identidades políticas perdidas.
Não há dúvida de que há repulsa à podridão do sistema político, das alianças fundadas na manipulação de dinheiro público e mal explicadas, como se “governabilidade” fosse. Mas ninguém vai tolerar que a discussão sobre a reforma política sirva de biombo protelatório para continuar a esculhambação política habitual no cotidiano, como que insinuando que honestidade na politica só seria possível num sistema imaginário.
Não se iludam com a recorrente retórica de que “o Brasil mudou”, pela só ocorrência das manifestações. A proliferação de propostas de plebiscitos, referendos e constituintes é a reverberação da cacofonia resultante da falta de decisão sobre todas as pendências políticas importantes. As votações espasmódicas ocorridas no Congresso nesses últimos dias, mais do que tudo, são indicativas de gavetas cheias, e não vazias.
O Brasil oficial só chacoalhou, mas não mudou. Ouriçou-se em um jogo de aparências que pode resultar apenas na desmobilização das emergências, para que tudo volte a ser como dantes “no Quartel de Abrantes”, com o acréscimo de uma ilusão de superação das causas da insatisfação em algum ponto incerto do futuro.
X tudo! E para começar JÁ! Com pequenas-grandes atitudes, como dizer verdades e ouvir contrariedades, o que não custa ao orçamento e independe de votos no Congresso. Resgatar esperanças, sinalizar decência, reconsiderar posições precárias ou arrogantes e tudo mais...
Mas não se trata de depreciação, ao contrário, pois o “tudo” é o “X” da questão, pela simples e boa razão de se contrapor claramente ao nada. É uma forma potencialmente unitária de questionar o vazio político monumental gerado pela diluição de toda e qualquer referência programática ou doutrinária e pela adesão e cooptação das principais forças políticas do pós-ditadura ao modo de ser corrupto do sistema.
As pessoas que têm ido às ruas não querem a naturalização dos sofridos avanços políticos e sociais conquistados nesse período como se fosse “o possível”, numa lógica maniqueísta do tipo “é isto ou andar para trás”. Como se o misto-quente do bolsa-família com empreiteiras de obras públicas fosse uma espécie de fim da história.
X tudo, sim, porque as pessoas querem discutir tudo que for efetivamente importante para a melhoria das suas condições de vida e do padrão civilizatório do país. Querem saber de objetivos e metas para as políticas, do que a redução do valor das passagens dos ônibus é apenas uma referência simples e essencial, tendo, por isso mesmo, exercido um poder catártico no ponto certo da maturação de múltiplas frustrações.
Por isso mesmo, as manifestações podem acolher, inclusive, bandeiras antagônicas no que propõem, mas aliadas quanto à necessidade de propor. Significa dizer que também valem as contradições francas e explícitas, como condição para se chegar a alguma resultante, desde que tenha conteúdo e clareza.
Com o seu majestoso sentido pacífico, as manifestações tiveram até que acolher a sua própria antítese, como pequenos grupos dispostos a demonstrações de violência. E outros pretendentes a alguma manipulação corporativa ou partidária ou, simplesmente, candidatos a surfar pelas ondas das ruas à procura das suas próprias identidades políticas perdidas.
Não há dúvida de que há repulsa à podridão do sistema político, das alianças fundadas na manipulação de dinheiro público e mal explicadas, como se “governabilidade” fosse. Mas ninguém vai tolerar que a discussão sobre a reforma política sirva de biombo protelatório para continuar a esculhambação política habitual no cotidiano, como que insinuando que honestidade na politica só seria possível num sistema imaginário.
Não se iludam com a recorrente retórica de que “o Brasil mudou”, pela só ocorrência das manifestações. A proliferação de propostas de plebiscitos, referendos e constituintes é a reverberação da cacofonia resultante da falta de decisão sobre todas as pendências políticas importantes. As votações espasmódicas ocorridas no Congresso nesses últimos dias, mais do que tudo, são indicativas de gavetas cheias, e não vazias.
O Brasil oficial só chacoalhou, mas não mudou. Ouriçou-se em um jogo de aparências que pode resultar apenas na desmobilização das emergências, para que tudo volte a ser como dantes “no Quartel de Abrantes”, com o acréscimo de uma ilusão de superação das causas da insatisfação em algum ponto incerto do futuro.
X tudo! E para começar JÁ! Com pequenas-grandes atitudes, como dizer verdades e ouvir contrariedades, o que não custa ao orçamento e independe de votos no Congresso. Resgatar esperanças, sinalizar decência, reconsiderar posições precárias ou arrogantes e tudo mais...
Programa:
quarta-feira, 3 de julho de 2013
Medo das massas
02/07/2013
-
03h30
Essa situação não seria superada por meio da troca dos partidos no comando, pois crises de representação exigem um movimento de outra natureza. Elas só podem ser realmente superadas quando saímos da própria esfera da representação, ou seja, quando fazemos apelo a uma força política bruta e instituinte fora do universo da representação.
Com essa consciência em mente, o povo islandês decidiu que era hora de ter outra Constituição. Mas, em vez de chamar juristas e políticos para preparar um esboço inicial do texto constitucional, eles fizeram algo mais ousado: mandaram, ao acaso, 950 cartas convocando 950 cidadãos a se reunirem em um estádio a fim de preparar as bases do que seria discutido na Assembleia Constituinte.
Essa incrível confiança no acaso, essa crença de que o acaso é o nome que desperta a potência da invenção democrática não foi a porta aberta para todos os delírios possíveis. Sua Constituição é uma das mais fantásticas peças da democracia contemporânea.
Há um tipo de pessoa incapaz de ter o único sentimento que realmente funda a democracia: confiança no povo. Para tais pessoas, toda vez que o povo é chamado à cena da instauração política, isso só pode significar convite ao caos e à desordem. O povo só pode aparecer dentro de um filme cujo cenário já está desenhado de antemão, seja para sorrir no dia da "festa eleitoral", seja para plebiscitar perguntas que a classe política previamente decidiu.
Nesse sentido, a única ideia sensata depois de semanas de ações paliativas para aplacar as manifestações populares foi a proposta de uma constituinte da reforma política capaz de colocar em questão todo o sistema atualmente em funcionamento. A ideia era tão sensata que foi abandonada em menos de 24 horas.
No seu lugar, ficou um plebiscito canhestro, em que a população será chamada a responder perguntas que ela não colocou. Ou alguém imagina que o povo brasileiro foi às ruas para decidir se as eleições teriam lista fechada ou aberta, voto distrital ou estadual? Há algo de piada de mau gosto nesse tipo de manobra.
Se alguém realmente ouvisse a população em nossos governos, a solução islandesa seria aplicada e as propostas de reforma política sairiam de fóruns de participação direta pela sábia mão do acaso. Isso, entretanto, seria pedir demais para quem, no fundo, tem medo das massas.
Assim como o povo brasileiro, o povo da pequena Islândia um dia descobriu que estava em crise de representação. A crise econômica lhes havia mostrado a relação profundamente incestuosa entre classe política, imprensa e interesses econômicos do sistema financeiro.
Essa situação não seria superada por meio da troca dos partidos no comando, pois crises de representação exigem um movimento de outra natureza. Elas só podem ser realmente superadas quando saímos da própria esfera da representação, ou seja, quando fazemos apelo a uma força política bruta e instituinte fora do universo da representação.
Com essa consciência em mente, o povo islandês decidiu que era hora de ter outra Constituição. Mas, em vez de chamar juristas e políticos para preparar um esboço inicial do texto constitucional, eles fizeram algo mais ousado: mandaram, ao acaso, 950 cartas convocando 950 cidadãos a se reunirem em um estádio a fim de preparar as bases do que seria discutido na Assembleia Constituinte.
Essa incrível confiança no acaso, essa crença de que o acaso é o nome que desperta a potência da invenção democrática não foi a porta aberta para todos os delírios possíveis. Sua Constituição é uma das mais fantásticas peças da democracia contemporânea.
Há um tipo de pessoa incapaz de ter o único sentimento que realmente funda a democracia: confiança no povo. Para tais pessoas, toda vez que o povo é chamado à cena da instauração política, isso só pode significar convite ao caos e à desordem. O povo só pode aparecer dentro de um filme cujo cenário já está desenhado de antemão, seja para sorrir no dia da "festa eleitoral", seja para plebiscitar perguntas que a classe política previamente decidiu.
Nesse sentido, a única ideia sensata depois de semanas de ações paliativas para aplacar as manifestações populares foi a proposta de uma constituinte da reforma política capaz de colocar em questão todo o sistema atualmente em funcionamento. A ideia era tão sensata que foi abandonada em menos de 24 horas.
No seu lugar, ficou um plebiscito canhestro, em que a população será chamada a responder perguntas que ela não colocou. Ou alguém imagina que o povo brasileiro foi às ruas para decidir se as eleições teriam lista fechada ou aberta, voto distrital ou estadual? Há algo de piada de mau gosto nesse tipo de manobra.
Se alguém realmente ouvisse a população em nossos governos, a solução islandesa seria aplicada e as propostas de reforma política sairiam de fóruns de participação direta pela sábia mão do acaso. Isso, entretanto, seria pedir demais para quem, no fundo, tem medo das massas.
Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de
filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às terças na
Página A2 da versão impressa.
terça-feira, 2 de julho de 2013
Atual Congresso brasileiro deveria ser dissolvido, diz sociólogo espanhol
02/07/2013
-
12h31
"O grande problema do Brasil não é econômico, mas político", afirma. "Se não for alterado o sistema político, a esperança de mudança representada pelo movimento se converterá em raiva coletiva e cinismo individual."
Castells é um dos mais reconhecidos estudiosos de movimentos em rede e de seus efeitos na política. Ele esteve no Brasil no mês passado, coincidentemente durante os protestos.
Contou a experiência em artigo publicado no sábado pelo jornal "La Vanguardia", de Barcelona --no texto, o sociólogo escreve que forças policiais do Distrito Federal e do Ministério da Justiça mataram manifestantes, o que não aconteceu.
Em entrevista à Folha por e-mail, Castells diz que "o Brasil chegou a um ponto não sustentável na deterioração ecológica e urbana".
Folha - A que o sr. atribui as manifestações das últimas semanas no Brasil?
Manuel Castells - Eu não interpreto os movimentos, e sim observo o que os movimentos dizem sobre suas motivações. Começou contra o aumento das tarifas, e depois a tarifa zero, porque a mobilidade é um direito universal. A isso se somam as demandas sobre educação e saúde, bens essenciais para a vida das pessoas e que não são são atendidos nem pelo mercado nem pelo Estado, na proporção do crescimento econômico que tem tido o Brasil. Eles dizem "não são os centavos, são nossos direitos". Ou seja, os jovens sentem que as instituições e os políticos não respeitam seus direitos nem oferecem canais de participação. Por isso têm que sair à rua, e a presidenta Dilma Roussef está de acordo. Além disso, a corrupção política é um insulto à dignidade cidadã.
O sr. acredita que as manifestações poderiam ter acontecido se não existissem as redes sociais?
Não. As redes sociais são o espaço público no qual, no nosso tipo de sociedade, a sociedade rede, se formam os movimentos sociais, para a partir dali ocupar o espaço público urbano e penetrar depois no espaço público institucional. Mas isso não quer dizer que são as redes que causam o movimento. O movimento é uma revolta contra a injustiça e a humilhação cotidiana que sofrem muitos jovens. Mas as redes são a plataforma indispensável para que eles se encontrem, debatam, coordenem-se e expressem-se fora do sistema político e das formas tradicionais, hoje em dia burocratizadas.
Faz tempo que as redes sociais têm força no Brasil. Por que demorou tanto em acontecer algo como agora?
Exatamente porque a causa não são as redes, mas sim a indignação contra as condições de vida das pessoas imposta por um crescimento econômico e urbano especulativo e sem controle. O Brasil chegou a um ponto não sustentável na deterioração ecológica e urbana, assim como os níveis de corrupção e arrogância da classe política.
Como o sr. compara o que passou no Brasil com os processos da Primavera Árabe, dos indignados espanhóis, do Cinco Estrelas na Itália e com o que acontece agora na Turquia?
Em todos os casos, os movimentos são espontâneos, sem líderes, sem ideologia comum. Surgem da indignação e da defesa da dignidade. São gestados nas redes sociais, se expressam no espaço urbano e recusam as formas de governo que não consideram democráticas. São essencialmente movimentos contra a corrupção da classe política e por uma nova forma de representação. E surgem na ditadura e na democracia, em períodos de crescimento e em períodos de crise econômico, e em diferentes contextos culturais. Ou seja, o contexto é diferente, mas os movimentos se parecem porque têm a forma dos movimentos sociais na era da internet.
O Executivo e o Legislativo brasileiros estão reagindo às manifestações. Como vê essa relação entre as redes e a vida institucional? Como isso vai acontecer a partir de agora?
A presidenta Dilma Rousseff reagiu como democrata. Escutou as ruas e tratou de atuar imediatamente, investindo no transporte, na educação e na saúde e propondo uma reforma política por plebiscito para superar o bloqueio da classe política brasileira que em sua maior parte é corrupta, não só pelo dinheiro, mas também pelo poder, porque acreditam que o poder é dela e não dos cidadãos.
O grande problema do Brasil não é econômico, mas político. Os partidos políticos brasileiros representam a si mesmos e se fecham a qualquer reforma real que limite seus privilégios. Esse é o ponto chave. Se não for alterado o sistema político, a esperança de mudança hoje representada pelo movimento se converterá em raiva coletiva e cinismo individual.
O Congresso atual não pode se autorreformar. Deveria ser dissolvido para que se inicie um processo constituinte de reforma da democracia. O Brasil poderia ser um exemplo para o mundo. A presidenta, líderes como Marina Silva e talvez o presidente Lula e o presidente [Fernando Henrique] Cardoso poderiam liderar a mudança com sua autoridade moral. Mas muitos políticos profissionais deveriam se aposentar e montar empresas para criar empregos com o dinheiro que ganharam na política.
FSP ROBERTO DIAS
SECRETÁRIO-ASSISTENTE DE REDAÇÃO
O sociólogo espanhol Manuel Castells, 71, diz que o atual Congresso
brasileiro não tem como se reformar. Ele defende sua dissolução para dar
lugar a uma assembleia constituinte.SECRETÁRIO-ASSISTENTE DE REDAÇÃO
"O grande problema do Brasil não é econômico, mas político", afirma. "Se não for alterado o sistema político, a esperança de mudança representada pelo movimento se converterá em raiva coletiva e cinismo individual."
Castells é um dos mais reconhecidos estudiosos de movimentos em rede e de seus efeitos na política. Ele esteve no Brasil no mês passado, coincidentemente durante os protestos.
Contou a experiência em artigo publicado no sábado pelo jornal "La Vanguardia", de Barcelona --no texto, o sociólogo escreve que forças policiais do Distrito Federal e do Ministério da Justiça mataram manifestantes, o que não aconteceu.
Em entrevista à Folha por e-mail, Castells diz que "o Brasil chegou a um ponto não sustentável na deterioração ecológica e urbana".
Folha - A que o sr. atribui as manifestações das últimas semanas no Brasil?
Manuel Castells - Eu não interpreto os movimentos, e sim observo o que os movimentos dizem sobre suas motivações. Começou contra o aumento das tarifas, e depois a tarifa zero, porque a mobilidade é um direito universal. A isso se somam as demandas sobre educação e saúde, bens essenciais para a vida das pessoas e que não são são atendidos nem pelo mercado nem pelo Estado, na proporção do crescimento econômico que tem tido o Brasil. Eles dizem "não são os centavos, são nossos direitos". Ou seja, os jovens sentem que as instituições e os políticos não respeitam seus direitos nem oferecem canais de participação. Por isso têm que sair à rua, e a presidenta Dilma Roussef está de acordo. Além disso, a corrupção política é um insulto à dignidade cidadã.
O sr. acredita que as manifestações poderiam ter acontecido se não existissem as redes sociais?
Não. As redes sociais são o espaço público no qual, no nosso tipo de sociedade, a sociedade rede, se formam os movimentos sociais, para a partir dali ocupar o espaço público urbano e penetrar depois no espaço público institucional. Mas isso não quer dizer que são as redes que causam o movimento. O movimento é uma revolta contra a injustiça e a humilhação cotidiana que sofrem muitos jovens. Mas as redes são a plataforma indispensável para que eles se encontrem, debatam, coordenem-se e expressem-se fora do sistema político e das formas tradicionais, hoje em dia burocratizadas.
Faz tempo que as redes sociais têm força no Brasil. Por que demorou tanto em acontecer algo como agora?
Exatamente porque a causa não são as redes, mas sim a indignação contra as condições de vida das pessoas imposta por um crescimento econômico e urbano especulativo e sem controle. O Brasil chegou a um ponto não sustentável na deterioração ecológica e urbana, assim como os níveis de corrupção e arrogância da classe política.
Como o sr. compara o que passou no Brasil com os processos da Primavera Árabe, dos indignados espanhóis, do Cinco Estrelas na Itália e com o que acontece agora na Turquia?
Em todos os casos, os movimentos são espontâneos, sem líderes, sem ideologia comum. Surgem da indignação e da defesa da dignidade. São gestados nas redes sociais, se expressam no espaço urbano e recusam as formas de governo que não consideram democráticas. São essencialmente movimentos contra a corrupção da classe política e por uma nova forma de representação. E surgem na ditadura e na democracia, em períodos de crescimento e em períodos de crise econômico, e em diferentes contextos culturais. Ou seja, o contexto é diferente, mas os movimentos se parecem porque têm a forma dos movimentos sociais na era da internet.
O Executivo e o Legislativo brasileiros estão reagindo às manifestações. Como vê essa relação entre as redes e a vida institucional? Como isso vai acontecer a partir de agora?
A presidenta Dilma Rousseff reagiu como democrata. Escutou as ruas e tratou de atuar imediatamente, investindo no transporte, na educação e na saúde e propondo uma reforma política por plebiscito para superar o bloqueio da classe política brasileira que em sua maior parte é corrupta, não só pelo dinheiro, mas também pelo poder, porque acreditam que o poder é dela e não dos cidadãos.
O grande problema do Brasil não é econômico, mas político. Os partidos políticos brasileiros representam a si mesmos e se fecham a qualquer reforma real que limite seus privilégios. Esse é o ponto chave. Se não for alterado o sistema político, a esperança de mudança hoje representada pelo movimento se converterá em raiva coletiva e cinismo individual.
O Congresso atual não pode se autorreformar. Deveria ser dissolvido para que se inicie um processo constituinte de reforma da democracia. O Brasil poderia ser um exemplo para o mundo. A presidenta, líderes como Marina Silva e talvez o presidente Lula e o presidente [Fernando Henrique] Cardoso poderiam liderar a mudança com sua autoridade moral. Mas muitos políticos profissionais deveriam se aposentar e montar empresas para criar empregos com o dinheiro que ganharam na política.
segunda-feira, 1 de julho de 2013
A vez do povo desorganizado
30/06/2013
-
03h30
As manifestações de protesto ocorridas nas últimas semanas em numerosas
cidades brasileiras são, sem sombra de dúvida, um fenômeno novo na vida
política do país, nos últimos 20 anos.
Causou surpresa a muita gente --inclusive a mim-- que o aumento de R$ 0,20 nas tarifas de transporte urbano tenha provocado tamanha revolta e mobilizado tanta gente.
É que essas manifestações traziam consigo outras motivações que não se revelaram no primeiro momento. Logo pôde-se ver que o aumento das tarifas foi apenas o detonador de um descontentamento maior que põe em questão o próprio sistema político que nos governa.
Ouvi e li opiniões segundo as quais trata-se de um fenômeno internacional, uma vez que, em vários países, protestos populares têm se repetido com frequência. Trata-se, creio eu, de uma opinião equivocada, já que as razões desses protestos são diferentes de país para país. O que há de comum neles é a influência das redes sociais, que possibilitam mobilizações em tal escala.
No caso do Brasil, por exemplo, está evidente que a revolta é contra os políticos em geral, sejam de que partidos forem, pertençam ao governo ou à oposição. Isso se tornou evidente em diversos momentos quando militantes deste ou daquele partido tentaram se manifestar: foram vaiados e até espancados. Foi o caso do PT que, oportunista como sempre, tentou tirar vantagem da situação e se deu mal.
Mas de onde vem esse horror aos políticos? A resposta é óbvia: eles se tornaram uma casta que se apropriou da máquina do Estado em seu próprio benefício.
Essa máquina, que é mantida com o dinheiro de impostos escorchantes, eles usam para empregar seus parentes e companheiros de partido, para enriquecer a si e a seus familiares, manipulando licitações e contratos de obras públicas --e usam isso, sobretudo, para se manter no poder.
Essa situação tornou-se particularmente insuportável depois que Lula assumiu o governo e pôs em prática uma política populista que veio agravar ainda mais aqueles fatores negativos da vida política brasileira. Quem nele acreditava viu, decepcionado, que ele ignorou os compromissos éticos assumidos e aliou-se a figuras como Maluf e o bispo Macedo --sem falar na compra, com dinheiro público, de partidos corruptos.
Essa aliança, com o submundo político, de um líder que surgiu como uma esperança de renovação, só poderia conduzir as pessoas em geral --e particularmente os que confiaram nele-- à desesperança total quanto ao futuro da nação.
O mais grave é que, somando-se isso à política assistencialista que adotou, tornou-se eleitoralmente imbatível. Assim, sem outra saída, os inconformados foram para as ruas. Nessa rejeição ao poder constituído e aos políticos em geral, o povo descontente pode não saber ainda por onde vai, mas sabe por onde não vai.
Não por acaso, a maioria desses manifestantes é de classe média. Não foram os pobres dos subúrbios que vieram para as ruas protestar, pois recebem Bolsa Família e melhoraram de vida. Quem está insatisfeita e revoltada é a parte da sociedade que só perdeu com o populismo lulista, uma vez que o dinheiro público, em lugar de ser investido em hospitais, escolas e serviços públicos, foi e é usado em programas assistencialistas e demagógicos.
Por outro lado, o lulismo cooptou as entidades representativas dos trabalhadores e dos estudantes (a CUT e a UNE), que, contrariamente a suas origens e à sua história, agora impedem manifestações contrárias ao governo. Desse modo, tanto os trabalhadores quanto os estudantes não têm quem os represente na luta por suas reivindicações.
Por isso, meses atrás, afirmei nesta coluna que a única solução possível seria o povo desorganizado ir para as ruas, já que não conta com as organizações que deveriam representá-lo. É o que acontece agora: o povo desorganizado está nas ruas. Desmascarada, a CUT tentou juntar-se aos manifestantes, mas foi repelida por eles.
Sem alternativa, a presidente Dilma promoveu uma reunião com governadores e prefeitos para aparecer como porta-voz dos inconformados, e propôs medidas que não se sabe quando nem se serão mesmo postas em prática.
Ferreira Gullar é cronista, crítico de arte e poeta. Escreve aos domingos na versão impressa de "Ilustrada".
Causou surpresa a muita gente --inclusive a mim-- que o aumento de R$ 0,20 nas tarifas de transporte urbano tenha provocado tamanha revolta e mobilizado tanta gente.
É que essas manifestações traziam consigo outras motivações que não se revelaram no primeiro momento. Logo pôde-se ver que o aumento das tarifas foi apenas o detonador de um descontentamento maior que põe em questão o próprio sistema político que nos governa.
Ouvi e li opiniões segundo as quais trata-se de um fenômeno internacional, uma vez que, em vários países, protestos populares têm se repetido com frequência. Trata-se, creio eu, de uma opinião equivocada, já que as razões desses protestos são diferentes de país para país. O que há de comum neles é a influência das redes sociais, que possibilitam mobilizações em tal escala.
No caso do Brasil, por exemplo, está evidente que a revolta é contra os políticos em geral, sejam de que partidos forem, pertençam ao governo ou à oposição. Isso se tornou evidente em diversos momentos quando militantes deste ou daquele partido tentaram se manifestar: foram vaiados e até espancados. Foi o caso do PT que, oportunista como sempre, tentou tirar vantagem da situação e se deu mal.
Mas de onde vem esse horror aos políticos? A resposta é óbvia: eles se tornaram uma casta que se apropriou da máquina do Estado em seu próprio benefício.
Essa máquina, que é mantida com o dinheiro de impostos escorchantes, eles usam para empregar seus parentes e companheiros de partido, para enriquecer a si e a seus familiares, manipulando licitações e contratos de obras públicas --e usam isso, sobretudo, para se manter no poder.
Essa situação tornou-se particularmente insuportável depois que Lula assumiu o governo e pôs em prática uma política populista que veio agravar ainda mais aqueles fatores negativos da vida política brasileira. Quem nele acreditava viu, decepcionado, que ele ignorou os compromissos éticos assumidos e aliou-se a figuras como Maluf e o bispo Macedo --sem falar na compra, com dinheiro público, de partidos corruptos.
Essa aliança, com o submundo político, de um líder que surgiu como uma esperança de renovação, só poderia conduzir as pessoas em geral --e particularmente os que confiaram nele-- à desesperança total quanto ao futuro da nação.
O mais grave é que, somando-se isso à política assistencialista que adotou, tornou-se eleitoralmente imbatível. Assim, sem outra saída, os inconformados foram para as ruas. Nessa rejeição ao poder constituído e aos políticos em geral, o povo descontente pode não saber ainda por onde vai, mas sabe por onde não vai.
Não por acaso, a maioria desses manifestantes é de classe média. Não foram os pobres dos subúrbios que vieram para as ruas protestar, pois recebem Bolsa Família e melhoraram de vida. Quem está insatisfeita e revoltada é a parte da sociedade que só perdeu com o populismo lulista, uma vez que o dinheiro público, em lugar de ser investido em hospitais, escolas e serviços públicos, foi e é usado em programas assistencialistas e demagógicos.
Por outro lado, o lulismo cooptou as entidades representativas dos trabalhadores e dos estudantes (a CUT e a UNE), que, contrariamente a suas origens e à sua história, agora impedem manifestações contrárias ao governo. Desse modo, tanto os trabalhadores quanto os estudantes não têm quem os represente na luta por suas reivindicações.
Por isso, meses atrás, afirmei nesta coluna que a única solução possível seria o povo desorganizado ir para as ruas, já que não conta com as organizações que deveriam representá-lo. É o que acontece agora: o povo desorganizado está nas ruas. Desmascarada, a CUT tentou juntar-se aos manifestantes, mas foi repelida por eles.
Sem alternativa, a presidente Dilma promoveu uma reunião com governadores e prefeitos para aparecer como porta-voz dos inconformados, e propôs medidas que não se sabe quando nem se serão mesmo postas em prática.
Ferreira Gullar é cronista, crítico de arte e poeta. Escreve aos domingos na versão impressa de "Ilustrada".
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