sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Os semeadores da Amazônia

Quem são os líderes e empresários que começaram um movimento silencioso para desenvolver a região sem destruir a floresta. E como eles estão plantando uma economia legal e sustentável

Aline Ribeiro , Querência

O sol já estava baixo quando um helicóptero com o emblema oficial do governo despontou sobre a fazenda de José Adelar Jaenisch, de 50 anos, produtor de soja de Mato Grosso. Com metralhadoras em riste, os ocupantes da aeronave apontavam em direção a uma máquina agrícola que, em terra, preparava o solo para o plantio da próxima safra. Seis viaturas reforçavam a fiscalização nas estradas vizinhas. Assustado, o motorista que pilotava o trator abandonou o veículo no mato e fugiu. Jaenisch foi se esconder na cidade. Só retornou depois que os agentes de crimes ambientais deixaram a região. "Fiquei pelo menos uma semana sem trabalhar", afirma ele. "Foi uma época de muita insegurança. Você nunca sabia o que ia te acontecer no dia seguinte."

O episódio ocorreu no município de Querência, em Mato Grosso, um dos 20 maiores produtores de soja do Brasil. Mas poderia ter sido em qualquer localidade do Pará, de Rondônia ou do Acre. Desde que o Ministério do Meio Ambiente criou, em fevereiro de 2008, a lista negra do desmatamento, a tensão no campo aumentou - e se alastrou. O ministério mirou nos 36 municípios campeões de desmatamento. Fazendeiros e madeireiros ilegais foram presos. Centenas de serrarias fecharam. Os bancos deixaram de liberar financiamento aos produtores. Na prática, é como se todas essas cidades estivessem com o nome sujo na praça.

Naquela tarde, os fiscais sobrevoavam a fazenda de Jaenisch para conferir o que as imagens de satélite já haviam apontado: ele desmatara mais que o permitido. Jaenisch comprou 1.250 hectares de terras em Querência em 2001. De acordo com o Código Florestal, que define o uso do solo privado no Brasil, ele deveria manter 80% (ou 1.000 hectares) da área preservada, conhecida como reserva legal. Mas fez o oposto. Usando a técnica do correntão, um cabo de aço puxado por dois tratores, aparou 80% da mata para plantar soja, exatamente o que teria de proteger. Por ter desobedecido à regra, foi cobrado.
A despeito da dívida ambiental, a situação para Jaenisch melhorou. Em abril deste ano, Querência deixou a lista suja. Foi o segundo (e por enquanto o último) município do Brasil a limpar o nome.

Querência seguiu o rastro de Paragominas, no Pará, que alcançou o feito no ano passado, ao reduzir em quase 90% suas taxas de derrubada. A partir da experiência pioneira de Paragominas, uma sequência de cidades começou a se mexer. O Pará, um dos campeões de desmatamento nos últimos 20 anos, lançou um programa decisivo para reverter sua má fama, o Municípios Verdes. A intenção é criar um modelo econômico baseado em ações responsáveis. E deixar para trás as práticas predatórias. Das 144 cidades paraenses convidadas a assinar o pacto, 89 aderiram. Suas prefeituras agora recebem dados de satélite com as áreas desmatadas. O mapeamento é essencial para punir os infratores.

As histórias de Paragominas, Querência e outras cidades que buscam a legalidade dão sinais de que há uma reviravolta silenciosa tomando forma na floresta. Parte por pura pressão jurídica e financeira. São municípios que querem recuperar mercado, sossego e dinheiro para plantar ou engordar o boi. Outros o fazem por convicção. Dizem acreditar na importância da floresta na manutenção do ciclo de chuvas e do equilíbrio climático. "Quando a sociedade quer e o poder público está motivado, é possível conciliar o desenvolvimento local com a conservação", afirma Mauro Pires, do Ministério do Meio Ambiente. "O protagonismo desses municípios nos surpreendeu."

Abandonar a lista, porém, não é um trabalho simples. As cidades precisam cumprir algumas obrigações, entre elas: reduzir o desmatamento para menos de 40 quilômetros quadrados por ano e conseguir que 80% da área do município (com exceção de terras indígenas e unidades de conservação) tenha um documento chamado Cadastro Ambiental Rural (CAR), um relato de todas as ilegalidades do passado. Aí reside o maior desafio. Fazer o tal cadastramento é o mesmo que um criminoso decidir, por vontade própria, ir a uma delegacia se entregar. O fazendeiro em situação ilegal tem medo de ser punido ao declarar suas dívidas. Para complicar, o Código Florestal está em revisão no Congresso. Dependendo do que for decidido, os agricultores e pecuaristas poderão ficar isentos de reparar seus erros pretéritos. Isso reduz a vontade de se regularizar imediatamente. A menos que eles estejam sentindo a pressão no bolso.

É o caso de Querência. Acuada com a rejeição das compradoras de soja e com a restrição dos bancos, a cidade decidiu fazer direito - tornando mais tranquila a rotina de produtores como Jaenisch. Em meados de 2009, os agricultores do município começaram um processo inovador de mobilização social, ao criar um conselho de meio ambiente para gerenciar a saída da lista. Diversos segmentos da sociedade, da Igreja Católica ao sindicato rural, ganharam um assento no órgão. "A gente queria um colegiado para envolver todo mundo", afirma Marcelo Cunha, diretor do conselho. "Organizamos um movimento de baixo para cima, sem o governo." Querência conseguiu registrar 85,5% de sua área no CAR. Jaenisch foi um dos que confessaram os pecados de sua fazenda.

À frente dessa mudança de direção está o produtor Neuri Wink, de 49 anos, simpatizante dos ruralistas mais tradicionais. Sua trajetória resume bem a colonização de Mato Grosso. Gaúcho convicto (ele mantém a tradição de tomar chimarrão na cuia, a despeito do calor escaldante dali), chegou à região em 1988 numa caravana organizada por uma cooperativa de compra de terras. Nos anos 1960 e 1970, o governo federal fazia campanhas para levar sulistas e nordestinos aos solos desabitados do Norte e do Centro-Oeste. Acreditava-se que a chegada dos imigrantes era uma forma de impedir que as potências estrangeiras desejassem a Amazônia. O nome Querência, a propósito, é uma espécie de provocação. Para os gaúchos, a palavra "querência" significa algo como a terra amada de origem. O governo propunha fundar, em Mato Grosso, uma nova terra natal para o povo.

Wink sustenta até hoje o discurso dos tempos da colonização. Nutre uma repulsa escancarada pelas ONGs estrangeiras. Diz que elas pregam a preservação para retardar nosso crescimento. Afirma que, no futuro, a Amazônia será ocupada pelos mesmos americanos que hoje brigam por sua proteção. Um dia antes de a reportagem de ÉPOCA chegar a Querência, ele se reuniu com outros produtores de soja para discutir, entre outros assuntos, o que dizer à imprensa. Na manhã seguinte, começou a conversa incisivo: "Quero saber se vocês vão transcrever o que eu falar ou o que vão interpretar", disse ele. "Porque aqui é assim, combinado não sai caro." Apesar da postura conservadora (ou talvez por causa dela), Wink convence os outros produtores a regularizar suas terras. Em alguns casos, explica a necessidade do reflorestamento e apresenta práticas socioambientais aos colegas. É uma espécie de avalista das novidades. Tudo o que experimenta em sua propriedade ganha potencial para ser reproduzido.

Quando pisou em Querência pela primeira vez, tudo o que Wink encontrou foi floresta. Não havia estradas, casas ou qualquer indício de infraestrutura urbana. Ele foi atraído pelo baixo custo dos terrenos. Com o valor de 1 hectare no Sul, compravam-se 30 hectares em Mato Grosso. Wink começou do zero. Dormiu durante meses embaixo de uma lona, até conseguir dinheiro para construir um casebre de madeira. Hoje tem 1.220 hectares. Preservou 33% de sua área (quando chegou, a lei era menos restritiva. Obrigava a proteger 50%, em vez dos 80% atuais) e, no restante, colocou bois, soja e milho. Recentemente, decidiu plantar seringueiras, as árvores que dão o látex. Sua propriedade, de nome Certeza, é uma das poucas dali que combinam lavoura e pecuária com floresta, um sistema chamado silvoagropastoril. Além de aproveitar melhor o solo, o método eleva a produtividade. Wink mantém seis bois por hectare, seis vezes a média brasileira, sem colocar máquinas e funcionários adicionais. Seus seringais são ainda mais promissores. Ele estima que os 10 hectares vão render, no futuro, R$ 40 mil por ano de lucro. "É melhor que o INSS, não é?", diz, agora num tom mais descontraído.

A mudança na região teve um empurrãozinho externo. O grande incentivador de um novo modelo de produção é o engenheiro-agrônomo Rodrigo Junqueira, de 39 anos, coordenador do Instituto Socioambiental (ISA). Ele precisou de muita saliva para cair nas graças de Wink. Os dois se conhecem há seis anos, mas só há pouco conseguiram sentar à mesma mesa para debater. O ISA é a única ONG que os produtores de Querência respeitam. Ainda assim, há resistências. "Os conflitos são inerentes", diz Junqueira. "Não é porque trabalhamos juntos que viramos amiguinhos." Junqueira teve de participar de dezenas de dias de campo, momento em que os produtores se reúnem numa fazenda para trocar experiências, antes de tocar em assuntos delicados, como recuperação de nascentes ou a importância de cessar o desmatamento. Paciente, é um catequizador das causas verdes. E seus esforços já tiveram algum êxito. Centenas de proprietários na região estão plantando mata nativa com o uso de máquinas agrícolas. O próprio Wink já reflorestou 19 hectares.

Se em Querência a ordem é cumprir a lei pelo bem das finanças, mais ao Norte, na cidade de Alta Floresta, a regularização chegou também pela necessidade climática. No ano passado, o município de 50 mil habitantes compreendeu na prática a importância de pagar seu débito ambiental. Apesar de estar no meio da Amazônia, um dos lugares mais úmidos do planeta, Alta Floresta ficou durante semanas sem água. Os rios que alimentam o sistema de abastecimento de 25 mil casas secaram. Foi preciso estourar algumas represas de criação de peixes para drenar a água e suavizar a estiagem. Detalhe: a cidade tem nada menos que 11.000 quilômetros de rios e 6 mil nascentes. Embora haja fontes em abundância, 4 mil delas estão degradadas pela erosão do solo.

Da tragédia veio a lição para recompor o entorno das nascentes e regularizar as propriedades. Começou de uma parceria incomum. A Secretaria de Meio Ambiente do município se uniu à de Agricultura para persuadir os produtores a fazer o CAR e recuperar os olhos-d'água. A grande novidade de Alta Floresta foi incluir os pequenos agricultores. Como eles são numerosos e suas terras não fazem tanto volume, inseri-los em geral não é prioritário. É mais fácil chegar aos 80% da área cadastrada do município com os grandes fazendeiros. "Queremos deixar a lista com todos juntos", afirma a prefeita de Alta Floresta, Maria Izaura Dias Afonso.

Quem lidera a empreitada é a paranaense Irene Duarte, de 50 anos, secretária de Meio Ambiente. Com um jeito quase maternal, convence do latifundiário ao agricultor familiar a impedir que o boi beba nas nascentes, uma das principais causas da degradação. É chamada de Marina Silva de Alta Floresta. Somado à liderança inerente, ela tem a seu favor um aliado notável, o secretário de Agricultura, Valdemar (mais conhecido por Chico) Gamba, de 46 anos. Gamba é produtor rural e fala a mesma língua dos agricultores. Usa da facilidade para laçar os colegas rebeldes. "Enquanto eles brigam lá em cima, a gente se une aqui embaixo", diz Irene, em referência à divergência travada entre os ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura em torno das mudanças do Código Florestal.

Irene e Gamba fizeram 61 reuniões com agricultores, incluindo fins de semana e feriados, para explicar a cartilha ambiental. Um dos objetivos é recuperar as nascentes degradadas. Com recursos do Fundo Amazônia, R$ 2,8 milhões repassados pelo BNDES, a prefeitura comprou sementes, mudas e 3.000 quilômetros de arame. Distribuiu o material aos pequenos produtores, que cercaram 870 nascentes e plantaram as espécies nativas no entorno. Outra meta é que 100% da área da cidade esteja no CAR. Até a última semana, 78,2% do município se cadastrara. O resultado coloca Alta Floresta quase fora da lista das campeãs do desmatamento. A saída é uma questão de tempo.

O conjunto da obra conferiu ao município visibilidade internacional. A prefeita Maria Izaura foi a Nagoya para contar a história de Alta Floresta. O clima de segurança chegou também ao campo. No passado, quando os fiscais ambientais apareciam nos sítios com suas caminhonetes, costumavam encontrar só as crianças em casa. Os adultos se escondiam. Hoje os produtores esperam ansiosamente a visita. Um deles, de tão orgulhoso, transformou o CAR num quadro e o pendurou na parede. O atestado de que agora está dentro da lei ganhou destaque na sala.

Há ainda os que transformaram a recomposição de florestas em oportunidade de negócio. O agricultor Aguinaldo da Silva arrendou um pedacinho de terra próximo a sua chácara para ganhar um dinheiro extra. Em vez de pagar pelo arrendamento, tem o compromisso de recuperar as nascentes do vizinho. Silva intercalou o plantio de árvores nativas com espécies com valor econômico, como mandioca, abacaxi e bucha. Como não usa agrotóxico, conseguiu certificar parte dos produtos com um selo orgânico e lucrou R$ 9 mil na primeira colheita. "A gente ganha um pouco mais porque tem um portfólio variado", diz ele, numa clara demonstração do tino para o comércio. "Sem contar o marketing."

É ilusão pensar que, por vontade própria, os produtores rurais cessarão o desmatamento ilegal ou tirarão dinheiro do bolso para salvar a floresta. Se não for pela punição, a única maneira de convencê-los é com estímulos financeiros. Há alguns fundos dispostos a investir em quem se compromete com a Amazônia. Um deles, o Fundo Amazônia, conta com US$ 1 bilhão prometido pela Noruega, além de outros recursos. O governo federal estuda agora destinar um porcentual dos repasses para Estados e municípios às práticas verdes. Para essas cidades, sair da lista suja da devastação, apesar de um feito considerável, é só um passo de um longo caminho. Os municípios precisam encontrar meios de viver alinhados com uma nova ótica de produção, a economia florestal. "Pior que entrar na lista é voltar para ela", afirma Mauro Pires, do MMA. "Mas esses municípios já têm mostrado que há muita solução criativa para esse Brasil do interior."