quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Para juristas, Código Florestal estimula desmatamento, fere Constituição e anula compromissos do país

[14/09/2011 11:25]
 
Audiência pública com juristas, Ministério Público e especialistas, nesta terça-feira (13/9) reforçou opiniões de que o projeto do novo Código Florestal (PLC 30/2011), aprovado na Câmara e agora discutido no Senado, fere a Constituição, favorece desmatamento, anistia desmatadores irregulares e esvazia compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Ao final da audiência, a senadora Kátia Abreu discutiu com um dos convidados e levou bronca de colega senador.



Juristas, promotores e especialistas na audiência pública (Foto: Márcia Kalume/Agência Senado)


Para reforçar o entendimento de que a ocupação de áreas de proteção permanente nos morros – nos moldes admitidos pelo novo texto do Código Florestal – têm causado tragédias em algumas regiões do país, o professor e doutor em direito ambiental Paulo Affonso Leme Machado advertiu: “Cada morro que rolar, o senador que tiver assinado um texto fraco será coautor das mortes que ocorrerem.”
Machado participou nesta terça-feira (13/9) da audiência pública promovida por comissões do Senado encarregadas de discutir as mudanças no Código. Além dele, participaram como convidados a promotora de Justiça Cristina Godoy de Araújo Freitas, do Ministério Público de São Paulo, o subprocurador-geral da República, Mário José Gisi, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim – que é também ex-ministro da Justiça e da Defesa – e o ministro do Superior Tribunal de Justiça Antônio Herman de Vasconcelos Benjamin.

Os dois representantes do Ministério Público, Cristina e Gisi, enfatizaram que o projeto em discussão fere o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, garantido pela Constituição.Para a promotora, isso se dá com a regularização das atividades agropecuárias em áreas de preservação permanente (APPs) consolidadas até julho de 2008. O subprocurador concordou, classificando a norma como “uma afronta à sociedade brasileira”.

“Se formos admitir a figura da área rural consolidada, que seja pelo menos até a edição da Lei 7.803/89, que ampliou as APPs”, opinou Gisi. Ele ainda defendeu a adoção de normas para ajudar a reverter a destruição de áreas montanhosas.

Outra preocupação dos representantes do Ministério Público diz respeito às mudanças nas faixas de mata ao longo dos rios. No código em vigor, a APP é definida a partir do leito maior do rio. Já o projeto determina que a mata seja medida a partir da calha regular do rio. “Pelo novo texto, várzeas ficarão desprotegidas e cursos d’água terão suas APPs diminuídas”— disse a promotora.

Compromisso internacionais

Gisi lembrou que o Brasil, como signatário de tratados internacionais incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro como normas internas, sobretudo o Pacto de San José de Costa Rica e o Protocolo de San Salvador, precisa observar tais princípios no processo de alteração do Código Florestal. “Não pode haver retrocesso, pois o país assumiu compromissos.”
Ele citou ainda a Convenção Internacional de Combate à Desertificação: “O projeto de reforma do Código Florestal não prevê qualquer obrigação de recuperação das áreas degradadas, seja pelo particular, seja pelo poder público”. O subprocurador também citou a Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, onde o Brasil se comprometeu a reduzir as emissões de gases geradores de efeito estufa em 38% até 2020. “Mas, o país caminha em sentido contrário aos compromissos que assumiu”, afirmou.
A promotora Cristina Godoy citou exemplos em todo o país de redução inevitável, em especial nas áreas de proteção permanente. No caso dos reservatórios artificiais ela exemplificou: “Na barragem de Sobradinho, na Bahia, hoje, com APP de 100 metros, teria 28,7 mil hectares de proteção, mas com o novo texto a exigência de proteção cairia para 4,3 mil hectares.” Em outros caso, como na Serra do Guararu, região de Guarujá, litoral de São Paulo, a área de proteção cairá para 1% apenas do que é exigido pelo atual código, revelou ela. “Segundo o IPEA, as porcentagens de áreas de reserva legal que serão perdidas com a proposta seriam de 13% na Amazônia, 48% na caatinga, 18,5% no cerrado, 45% na mata atlântica e 5% no pantanal”, disse ela.

Fabricante de seca

O professor Paulo Affonso apresentou às comissões sete propostas de mudanças no projeto. Ao justificar, por exemplo, a mudança no texto que trata de manejo sustentável, comentou: “As florestas não são protegidas só pelo seu próprio valor, mas porque são protetoras das águas e da estabilidade do solo. Com um mínimo de conhecimento, as pessoas sabem que eliminar a área de preservação permanente é abrir a porta para o deserto. Quem destrói a floresta de preservação permanente é um fabricante de seca.”

Da mesma forma, ao tratar de áreas consolidadas, disse que o texto cria a anistia sem utilizar esse nome: “Perdoar não significa entender que tudo está certo e que se pode fazer o que quiser, ainda que cause prejuízo. O perdão admissível é o que leva a alguma reparação da falta. O projeto de lei introduz um conceito de anistia sem usar esse nome.”

Nas modificações, ele sugeriu ainda a eliminação do artigo 10º, que trata das áreas consolidadas em bordas dos tabuleiros ou chapadas, no topo dos morros, montes, montanhas e serras, com altura mínima de cem metros. Citando as tragédias do RJ, Paulo Affonso afirmou: “Legalizar uma atividade tão perigosa fere a organização do país, pois incentiva a ilegalidade e encoraja a prática de comportamentos desrespeitosos ao meio ambiente.”

Rigor na definição de conceitos

Convidado pela senadora Kátia Abreu, que é presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), o ex-ministro Nelson Jobim conclamou os senadores a serem rigorosos na definição de conceitos e expressões e a evitar conflitos estaduais. “Se adotarem expressões e conceitos dúbios, o Código vai provocar questionamento judiciário, vocês vão transferir suas responsabilidades para os juízes. Não transfiram para o poder executivo ou para o juiz o que vocês podem resolver aqui.”

O subprocurador Gisi acrescentou: “A falta de implementação dos programas de recuperação ambiental resulta da morosidade do poder executivo em regulamentar as políticas públicas relacionadas à gestão ambiental. Há necessidade de se estabelecer, na lei, a data para início da implementação desses programas, e não transferir essa competência ao executivo”.

Mário Gisi ainda destacou os efeitos do PLC 30/2011 nas áreas de reserva legal: “Na prática, diminui em 50%.” E considerou inaceitável a recomposição por espécies exóticas. “É plenamente aceitável e razoável que se estabeleçam mecanismos de aproveitamento da madeira ou de uso daquela área, todavia, com espécies nativas, com projeto submetido ao Sisnama [Sistema Nacional do Meio Ambiente]”.

Incentivos à recuperação

A previsão, no novo Código, de mecanismos de incentivo para a recuperação de áreas protegidas, ao lado das medidas de comando e controle, foi outro aspecto bastante citado na audiência pública. O senador Eduardo Braga (PMDB-AM), sugeriu medidas como redução de taxas de juros de programas de crédito e compensações tributárias para aqueles que protegem os recursos naturais.

Em resposta às senadoras Ana Amélia (PP-RS) e Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), sobre a omissão do Código em relação às cidades, Herman Benjamin, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), lembrou que tramitam no Congresso diversos projetos sobre o tema. “A Lei de Parcelamento do Solo Urbano, por exemplo, está aguardando votação na Câmara”, disse.
Para ele, esgotar o assunto no Código Florestal deixaria de fora outras possibilidades constantes nos projetos. O ministro sugere que o assunto esteja previsto na nova lei, mas com a possibilidade de regulação em lei específica.

União versus estados

Uma das principais controvérsias na discussão do novo Código é a questão dos limites da União e dos estados para legislarem sobre o assunto. O senador Luiz Henrique (PMDB-SC), que é um dos relatores da proposta, pretende ampliar a atuação dos estados. Já o professor Paulo Affonso afirmou que não pode haver conflito entre as normas fixadas pela União e as normas formuladas pelos estados. O ministro do Superior Tribunal de Justiça Herman Benjamin disse que o novo código deve fixar exigências mínimas que terão de ser respeitadas pelos estados. E o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim ressaltou que a legislação não pode levar a disputas interestaduais.

Encerrada a audiência, a promotora Cristina Godoy disse, em entrevista ao ISA, que a sociedade pode reagir, caso o Senado ignore as advertências da ciência e dos juristas e aprove um texto que represente retrocesso na proteção ambiental. “Existem diversas possibilidades de analisar a constitucionalidade da lei que vier a ser aprovada. Isso pode ser feito por uma ação direta, ou difusamente, pelo promotores de Justiça, em cada uma das ações ou termos de ajustamento de conduta firmados pelo Ministério Público.”

Votação imprevisível

De acordo com os senadores que participaram do debate ontem, as divergências registradas na audiência podem levar a Comissão de Constituição e Justiça a pedir o adiamento da votação do relatório do senador Luiz Henrique na reunião desta quarta-feira (14/9). A secretaria da CCJ disse ao site do ISA que ainda não há qualquer decisão sobre votar ou adiar. Isso só acontecerá durante a reunião, que começa às 10 horas.

Senador critica senadora

A senadora Kátia Abreu foi duramente criticada por seu colega Pedro Taques (PDT-MT) depois que impediu o subprocurador Mário Gisi de responder a um questionamento dela. “Agora o senhor não vai falar não. Eu o ouvi e agora o senhor vai me ouvir”, disse ela ao representante do MPF. A senadora não havia gostado da fala de Gisi, que definiu como predatória a agricultura praticada extensivamente no Brasil, com excesso de uso de agrotóxicos.

Kátia Abreu rebateu: “Agrotóxico para o senhor não deve ser problema porque ganha R$ 20 mil e pode comprar orgânicos que custam 160% mais caro.” O senador Pedro Taques protestou e lembrou que o regimento do Senado recomenda tratar os convidados com urbanidade e respeito: “Quando vim para o Senado, jurei respeitar o regimento interno. Não jurei seguir o estatuto da CNA” , disse o senador, referindo-se ao cargo da senadora como presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil. “E o senhor não deveria ter jurado o corporativismo de ficar aqui defendendo a sua turma”, respondeu ela, referindo-se à condição de Taques como ex-membro do MP, quando era procurador.

“Quem tem turma é vossa excelência”, rebateu o pedetista, enquanto o presidente Rodrigo Rollemberg punha fim ao desentendimento.

Universitários cobram

Os membros do Comitê Universitário em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável do Distrito Federal encaminharam carta-aberta ao senador Jorge Viana (PT/AC) e à ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira solicitando as razões que levaram os dois a elogiar o relatório do senador Luiz Henrique (PMDB/SC)sobre o Código Florestal.

O documento é assinado por dez centros acadêmicos da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Católica de Brasília (UCB) e questiona “como, ao mesmo tempo que se dizem defensor e defensora do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, podem elogiar um relatório que beneficia e incentiva aquelas e aqueles que praticaram o desmatamento ilegal”. Leia aqui a íntegra da carta.

(Com informações da Agência Senado.)

ISA, Julio Cezar Garcia.