Osvaldo Ferreira Valente*
Já escrevi vários artigos, a maioria no Portal EcoDebabe, discutindo o que eu considero ser as fragilidades da atual legislação ambiental brasileira, capitaneada pelo Código Florestal de 1.965, com todas as modificações que ele sofreu de lá para cá. Não há nenhum preconceito em relação às florestas (sou engenheiro florestal), nem qualquer dúvida quanto à importância das mesmas. Também não discuto percentagens ideais de recobrimento, pois isso depende, atualmente, de uma análise atualizada e desapaixonada de três componentes: o ambiental, o social e o econômico. Para assim não ser, o homem teria que abrir mão de seu modo atual de viver. Já escrevi, também, e por diversas vezes, que tudo estaria facilitado se conseguíssemos reduzir a população mundial a um terço do que ela é hoje e mantê-la assim daí por diante. Como isso é utópico, temos que buscar alternativas entre necessidades de consumo, produção e conservação. Olhe que eu coloquei consumo em primeiro lugar, pois ele é o motor da produção e é desta a principal atuação ambiental.
Mas o que mais me incomoda na fragilidade da legislação é o fato de ela não estar cientificamente baseada nas fragilidades ambientais. Estas, sim, deveriam estar devidamente equacionadas e protegidas. Quem disse que todo topo de morro é sempre frágil? Que todos os cursos d’água devem ter faixas de proteção baseadas apenas em suas larguras? Em muitas situações, os topos de morros deveriam estar sendo usados em alguma atividade econômica e a encostas adjacentes, com 60% de declividade, por exemplo, deveriam ter prioridades de conservação. As maiores fragilidades ambientais, em grande parte de nosso território, estão, com toda certeza, em encostas livres das exigências legais.
Outro aspecto da fragilidade da legislação é que ela adotou, para resolver as fragilidades ambientais, conceitos meramente geométricos: tantos metros para cá, outros tantos para lá, um terço da altura do morro, nível mais alto e outras preciosidades. Ou seja, as questões relacionadas ficam submetidas a números lidos nas trenas, nos GPSs, nas estações topográficas e outros instrumentos de medições. Isso na Amazônia, nos Pampas, no Cerrado, na Mata Atlântica e em qualquer outro bioma ou ecossistema. Além do mais, ninguém sabe, quando confrontado com situações de campo, determinar exatamente onde está o terço de topo de morro. A Resolução 303 do Conama traz regrinhas e mais regrinhas que acabam confundindo ainda mais e gerando interpretações desconectadas até da provável intenção do legislador, que ninguém sabe realmente qual era. Talvez nem ele soubesse. Virou sinfonia do absurdo. O erro começa na imprecisão do termo “morro” e daí derivam as demais dificuldades e imprecisões. Quanto ao morro, a Resolução traz a seguinte definição: “elevação do terreno com cota do topo em relação à base entre cinquenta e trezentos metros e encostas com declividade superior a trinta por cento na linha de maior declive”. Para “facilitar” a marcação do terço superior do topo, a Resolução conceitua, assim, a base de referência: “plano horizontal definido por planície ou superfície de lençol d’água adjacente ou, nos relevos ondulados, pela cota da depressão mais baixa ao seu redor” . Ficou tudo claro? Pois então tente colocar isso em prática nas condições de campo. Vai precisar fazer novas definições, ou melhor, vai ter de escolher uma opção para cada caso.
Quanto às faixas ciliares, as dificuldades também estão presentes. Modificação do Código de 1.965 (o original está cheio de modificações) fala que as metragens em torno dos cursos e corpos d’água devem partir “desde o seu nível mais alto”. Certamente o legislador não sabia o que estava querendo. Em seu socorro, a Resolução 303 resolveu “explicar” isso, dizendo: “nível mais alto – nível alcançado por ocasião da cheia sazonal do curso d’água perene ou intermitente”. Mas sazonal é o que está sujeito a variações de uma estação para outra e, portanto, faltam respostas às seguintes perguntas: Deverei escolher uma cheia em uma determinada estação? Deverei trabalhar com a média de várias cheias? Deverei escolher um tempo de recorrência? Poderei usar o nível mais alto de um evento extraordinário, que tem probabilidade de ocorrer de cem em cem anos? Além do mais, precisaria de um grande número de estações linimétricas (medidoras de nível d’água) ao longo de córregos, ribeirões, rios e às margens de lagos para saber as variações de níveis de enchentes, em alguns anos. A área de preservação permanente em torno das emergências superficiais de águas subterrâneas está assim conceituada: área “ao redor de nascente ou olho d’água, ainda que intermitente, com raio mínimo de cinquenta metros de tal forma que proteja, em cada caso, a bacia hidrográfica de contribuição”. Que bela confusão criada com tão poucas palavras! Ora, bacia hidrográfica de contribuição, no conceito hidrológico, é toda a área que drena água para a nascente. Na falta de estudos geofísicos, tal área só poderá ser representada pela pequena bacia onde se encontra a nascente. Daí, todas as pequenas bacias, ou bacias de primeira ordem, conforme conceitua a hidrologia, estariam preservadas. E de pequena em pequena bacia, uma boa parte do território brasileiro. Por que, então, os cinquenta metros de raio? Se o raio “mínimo” de cinquenta metros ultrapassar o divisor de águas, deve-se avançar para a bacia vizinha?
Não foi minha intenção entediar o leitor com todas essas incongruências, pois nem eu tenho mais paciência para lidar com elas. Já tentei acompanhar o emaranhado legal, procurar alternativas para colocá-lo em prática, mas confesso que desisti há muito tempo. As cabeças dos legisladores de gabinete são freneticamente produtivas. Eles legislam e, depois, passam um bom tempo tentado explicar o que quiseram dizer. São criados os “interpretadores de resoluções”. Estes dão cursos de treinamento, viajam para palestras e mais palestras. E, se não conseguem, os legisladores voltam e legislam de novo.
Não passa pela minha cabeça, é claro, que tudo fique para ser definido em cada situação específica. Cada propriedade rural, por exemplo, tendo que ser analisada de acordo com suas peculiaridades. Sei que isso seria inviável. Mas advogo a descentralização por Comitês Ambientais, distribuídos por Biomas ou por Bacias, conforme já apresentei no Portal EcoDebate, em artigo de 06/05/2009 (Reflexões sobre o Código Florestal e uma proposta de mudança).
Não há porque temer a edição de um Código Ambiental que estabeleça os princípios fundamentais da conservação do território brasileiro, os objetivos dessa conservação, as responsabilidades dos diversos entes federativos e que transfira a Comitês, com forte participação da sociedade, as decisões mais restritivas ou particularizadas. Não é em defesa da sociedade que os movimentos ambientalistas atuam? Por que deveriam temê-la, então? O poder não emana do povo? Vamos, então, democratizar as decisões.
*Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas e professor titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV); ovalente@tdnet.com.br