segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

José Eli da Veiga: "Se abolimos a escravidão, podemos resolver o aquecimento global"

Para o economista, um dos principais estudiosos do desenvolvimento, a defesa do meio ambiente precisa virar um valor de toda a sociedade

por MARCOS CORONATO

É opinião comum que a escravidão acabou só porque não fazia mais sentido econômico. Para o economista José Eli da Veiga, a história não é bem essa. A escravidão acabou também porque os valores da sociedade mudaram. Ele acredita que algo similar pode estar ocorrendo agora – em relação à defesa do planeta. Eli da Veiga, um dos mais influentes estudiosos do meio ambiente no Brasil, ajudou a formular o programa de governo da candidata Marina Silva, do Partido Verde. Em seu novo livro, Sustentabilidade – A legitimação de um novo valor, ele compara a preocupação com o ambiente a um valor igualmente difícil de definir, a justiça. Segundo ele, a adoção de valores assim é sinal de grandes mudanças. Mas, para que isso ocorra, é preciso encontrar outras formas, além do PIB, para medir o desenvolvimento econômico, dando importância a esses novos interesses da sociedade. Mas não venha falar do IDH, o Índice de Desenvolvimento Humano. Ele o considera “tosco”. Nem do FIB, o indicador de Felicidade Interna Bruta, que diz ser “equivocado”.

ENTREVISTA - JOSÉ ELI DA VEIGA
QUEM É, Professor titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), da USP
O QUE FAZ, Pesquisa no Núcleo de Economia Socioambiental (Nesa) da FEA
O QUE PUBLICOU, Dezenove livros. O mais recente, lançado em novembro, é Sustentabilidade – A legitimação de um novo valor, pela Editora Senac


ÉPOCA – Nos últimos anos, ganhou popularidade a ideia de medir a felicidade de um país, como proposto pelo índice de Felicidade Interna Bruta (FIB), do Butão. Esse seria um indicador melhor que o PIB? 
José Eli da Veiga – Houve a discussão no Butão, uma sociedade atrasada em termos de capitalismo e desenvolvimento. Eles perguntaram por que aceitar essa convenção do Ocidente e concluíram que o que interessa é a felicidade. Até aí é uma crítica ótima. Mas eles medem misturando tudo, os indicadores objetivos, a contabilidade, com indicadores subjetivos, que dependem de questionários aplicados à população sobre saúde, educação. Além disso, com a contabilidade nacional posso calcular várias coisas, como o Produto Interno Bruto, o Produto Nacional Bruto. Mas o que é bruto não tem aquela desvalorização, o gasto de reposição de seu carro, da máquina de uma fábrica, chamada “amortização”. Não se cogitava antes fazer essa “amortização” do capital natural. Hoje, sabemos que, se eu exploro uma mina, não posso considerar só o que faturo. Eu estou dilapidando aquele patrimônio. Eles (no Butão) substituíram o PIB pelo FIB, que também é uma medida bruta. Achei uma solução completamente equivocada, que não vai levar a nada.

ÉPOCA – Essa medida não serve para orientar políticas públicas?
Eli da Veiga – Uma dimensão do FIB é algo como a satisfação do cidadão com a educação, completamente subjetiva. Outra é algo como o custo de vida, superobjetivo. O resultado de uma soma assim não tem significado. Dizer que o FIB aumentou 10% não quer dizer coisa nenhuma. É como somar automóveis com bananas. Nenhum outro país adotou. Tem uma discussão muito interessante na Inglaterra para chegar a um índice de felicidade. Só que eles não vão misturar as coisas. Desde 1994 já havia reclamações dos economistas sobre indicadores de desenvolvimento. O (presidente da França, Nicolas) Sarkozy teve uma sacada e convidou o (Nobel de Economia Joseph) Stiglitz e o (Nobel de Economia) Amartya Sen para montar uma equipe. Eles passaram um ano trabalhando nisso. Uma das conclusões a que chegaram (em 2009): nós precisamos de três medidas diferentes. Uma do desempenho econômico, uma da qualidade de vida, outra da sustentabilidade. São três coisas diferentes, que não devem ser misturadas. O relatório propõe que o PIB seja substituído e o desempenho econômico seja medido pela renda ajustada ou renda líquida das famílias – é a renda disponível para a família usar no consumo da maneira que decidir. A proposta recebeu uma espécie de confirmação com a Irlanda: o PIB lá disparou, mas a renda líquida das famílias nunca mudou. Havia uma disparidade. O PIB era um indicador ilusório. A segunda medida é a de qualidade de vida. Existe um índice que se impôs desde os anos 90, o IDH, que vem também sofrendo críticas. Ele mede a saúde só pela expectativa de vida e a educação só pelo nível de matrículas (média de anos de estudo). Sempre foi considerado uma medição tosca. Para medir qualidade de vida, o Relatório Stiglitz propõe um indicador complexo, com oito dimensões: educação, saúde, segurança econômica, segurança propriamente dita e assim por diante. E recomenda também o uso de indicadores subjetivos.

ÉPOCA – Mas sem misturar indicadores objetivos com subjetivos. 
Eli da Veiga – Não vai demorar para o Reino Unido também ter um indicador de felicidade. O Relatório Stiglitz recomenda que os países façam isso. E, no relatório, eles rejeitaram o uso de indicadores monetários para sustentabilidade. Havia uma discussão entre economistas assim: não há mercado para o meio ambiente, mas não faz mal, a gente dá um jeito de atribuir preço para isso. Qual é o valor do ar puro? E da água limpa? Quanto as pessoas estariam dispostas a pagar? Eles (Stiglitz e Sem) rejeitaram a ideia de que o indicador de sustentabilidade possa ser monetário. Disseram que tem de ser na linha da pegada ecológica, um indicador físico ou
bioquímico. Se você tem uma pegada carbono, uma pegada de recursos hídricos e uma pegada de biodiversidade, pronto, você tem um indicador.

ÉPOCA – Uma ideia bem difundida é que qualidade de vida e sustentabilidade estão muito relacionadas. 
Eli da Veiga – Depende. Eu posso obter uma tremenda qualidade de vida, mas por meio de dilapidação do meio ambiente. Isso tem perna curta. Um caso clássico é o da Indonésia. O país bombou nos anos 80 e 90, montou uma tremenda indústria exportadora, enquanto acabava com a floresta.

ÉPOCA – E, naquele momento, isso se reverteu em melhor qualidade de vida. 
Eli da Veiga – Nós vivemos no Brasil um momento razoável e pelo menos algumas migalhas estão indo para uma melhora geral da qualidade de vida. No caso da Indonésia, começaram a acontecer coisas desse tipo, mas com uma exploração predatória de um recurso natural. Não acho que seja o caso do Brasil. Mas quem acha que sustentabilidade rima com qualidade de vida está por fora da história.

ÉPOCA – A sociedade pode precisar abrir mão de qualidade de vida no presente para ter sustentabilidade? 
Eli da Veiga – Não necessariamente abrir mão, mas, se você tem consciência de que aquele ritmo de aumento de qualidade de vida se baseia numa predação dos recursos naturais, pode ter certeza de que é insustentável.

ÉPOCA – Preservar o meio ambiente vai exigir um novo padrão moral? 
Eli da Veiga – Não tem regra do que vem antes e o que vem depois. Cada exemplo em nossa história mostra uma combinação diferente. Eu uso o exemplo da escravidão porque o (economista) Eduardo Giannetti deu uma declaração brilhante, mas ultrapessimista. Deu uma sensação de que talvez a humanidade não seja capaz de resolver o aquecimento global. Por isso, lembro que somos capazes de resolver problemas como a escravidão, que existiu durante milênios, em praticamente todas as sociedades, e no período de um século foi praticamente extinta. Quando estudamos como foi esse processo, a maior parte da literatura insiste numa explicação econômica de que o capitalismo foi evoluindo e chegou ao ponto em que não era mais rentável manter escravos. Se você for ver a história completa, o movimento pelo fim da escravidão nasceu na Inglaterra, com petições mandadas ao Parlamento por gente do povo, principalmente religiosos. Tinha na frente a questão dos valores, do comportamento, do respeito ao ser humano, muito antes de uma exigência econômica. À medida que esses caras foram vencendo e foi sendo abolido o tráfico de escravos, ficou mais caro ter escravos. Com o escravo mais caro, os senhores passaram a cuidar melhor deles. Como o mundo já havia abolido a escravidão e o Brasil não, as elites brasileiras eram discriminadas quando iam à Europa. Começou com mudanças de valores, e os mais resistentes mudaram quando a economia exigiu. Podemos estar pensando na sustentabilidade ambiental hoje como eles pensavam na escravidão: é difícil imaginar um mundo sustentável. A tese central de meu livro é que sustentabilidade é um novo valor, do mesmo jeito que os direitos humanos eram quando houve o processo de abolição da escravidão.