Sérgio Abranches
O ato de votar está ficando cada vez mais simples e rápido no Brasil. É um avanço proporcionado pela tecnologia. O voto, a decisão pessoal, intransferível e secreta, cada vez mais difícil.
Votei. Foi simples e rápido. Ir até lá e manejar a urna eletrônica. Caminhei uma parte do trajeto da Gávea até o Jardim Botânico. Já não garoava. As ruas estavam movimentadas, mas não havia entusiasmo nelas.
Votei e foi complicado como sempre. Não consigo, no dia da votação, escapar de uma lembrança da minha pré-adolescência, que me assalta na hora mesmo que acordo todos os anos de eleição para presidente. Os tanques descem a recém-asfaltada W-3, em Brasília. Eu grito “Jango”! E minha mãe, aflita, vem me pedir para parar, com medo que os tanques se voltem contra mim. Ali começou meu árduo aprendizado do valor da democracia. O aprendizado do valor do que se perde, do que não se tem.
Não consegui intuir que aqueles tanques pressagiavam que passaria toda minha adolescência e juventude não apenas sem votar, mas sob censura, com a universidade seguidamente invadida, os sonhos desfeitos e os amigos caindo um a um. Quando votei pela primeira vez para presidente, era PhD. Já havia vivido a parte mais significativa de aprendizado: de amores, de saberes, de amadurecimento. Tinha uma personalidade profissional bem formada e uma personalidade política tão subdesenvolvida quanto a dos jovens que tinham 18 anos, em 1989. E deformada pela militância em um contexto autoritário. Militância em um ambiente marcado pelo ódio, pela ideologia exacerbada, sem contraste e sem debate, onde quem não está com você é inimigo e quer acabar com você. Um ambiente no qual não há valores cívicos, é o patriótico castrense contra o ideológico da resistência. Os valores democráticos são esmagados pela violência, pelo arbitrário, pelo inevitável. É a política dos grupos fechados, das decisões incontrastadas. É a não política.
Toda vez que vou votar para presidente, carrego comigo esses pesados sentimentos do tempo que perdemos nas trevas da intolerância e do arbítrio. Voto como se cada voto valesse para aquele ano e para outro ano, em que não pude votar e um general sucedeu a outro no plantão da ditadura.
Só essas lembranças seriam suficientes para tornar mais complexo, mais responsável, o meu voto. Mas eu carrego, também a lembrança dos sonhos e das esperanças. E das decepções e frustrações. Sou profissional da análise política. Sei que a democracia nunca é perfeita. Mas sei também que os países podem fracassar pelas más escolhas que fazem. Aceitamos o inaceitável e deixamos que a corrupção e a intolerância, a desqualificação dos concorrentes, comprometessem a qualidade da escolha democrática que podemos fazer e o pluralismo que precisamos ter.
Eu cheguei a pensar que caminhávamos para o pluralismo. Mas o que tem crescido entre nós é o desejo de destruir os opositores. Como quiseram fazer com a oposição na ditadura. Tal e qual. Muitos herdaram e carregam os vícios daquele passado, ainda que tenham discurso supostamente democrático.
Mas vou às urnas sempre menos analítico e mais sonhador. Sei que o voto pode mudar. Espero que um dia o voto realmente mude o Brasil.
Quando chego na cabine, pareço mais um homem-bomba, tanto os sentimentos que carrego à flor da pele e que movimentam meu dedo na direção daquele botão definitivo para confirmar escolhas nunca fáceis, nunca feitas levianamente.
Esse foi um ano difícil. O presidente abandonou os votos institucionais do cargo, para tentar formatar o voto dos brasileiros à sua vontade. Conheço pessoalmente e gosto como pessoas de três dos quatro candidatos acolhidos aos debates desta campanha. Conheço a história, a luta, os valores e os sonhos de cada um. Compartilho vários com todos eles. O destino me forçou a escolher um, quando os três poderiam estar juntos, construindo um projeto para o Brasil do século XXI. Cada um teria que ceder um pouco, mas não em princípios: em ênfases. Mas eram concorrentes. Meu coração chorava ao decidir por um.
Mas democracia é essencialmente isso: escolher. A boa democracia é escolher por princípio, alguém que sabemos comandará o processo político do país e política é interesse. Os três sabem distinguir entre interesse público e privado. Eu, em homenagem a eles, escolhi pensando no Brasil com o qual todos sonhamos. Principalmente, em um sentimento que compartilhamos os três, eu sei com certeza: não queremos ver o Brasil fracassar. Não queremos o Brasil cínico, convencido de que se todos se corrompem devemos nos locupletar todos.
Escrevo este post como desabafo e explicação aos mais jovens. No Brasil, votar é muito difícil e como dói. Mas dói muito mais não votar. Escrevo esse post em homenagem aos candidatos cívicos, com as virtudes do Príncipe cívico de Maquiavel, aqueles que não maquinam para ganhar, pensam mais no país que querem e no povo. Que conversam com as pessoas, não as manipulam, nem as querem iludir com promessas vãs.
Escrevo esse post com os dedos carregados das mesmas emoções, aflições e sonhos com que votei.
Tags:democracia, eleições, voto
Votei e foi complicado como sempre. Não consigo, no dia da votação, escapar de uma lembrança da minha pré-adolescência, que me assalta na hora mesmo que acordo todos os anos de eleição para presidente. Os tanques descem a recém-asfaltada W-3, em Brasília. Eu grito “Jango”! E minha mãe, aflita, vem me pedir para parar, com medo que os tanques se voltem contra mim. Ali começou meu árduo aprendizado do valor da democracia. O aprendizado do valor do que se perde, do que não se tem.
Não consegui intuir que aqueles tanques pressagiavam que passaria toda minha adolescência e juventude não apenas sem votar, mas sob censura, com a universidade seguidamente invadida, os sonhos desfeitos e os amigos caindo um a um. Quando votei pela primeira vez para presidente, era PhD. Já havia vivido a parte mais significativa de aprendizado: de amores, de saberes, de amadurecimento. Tinha uma personalidade profissional bem formada e uma personalidade política tão subdesenvolvida quanto a dos jovens que tinham 18 anos, em 1989. E deformada pela militância em um contexto autoritário. Militância em um ambiente marcado pelo ódio, pela ideologia exacerbada, sem contraste e sem debate, onde quem não está com você é inimigo e quer acabar com você. Um ambiente no qual não há valores cívicos, é o patriótico castrense contra o ideológico da resistência. Os valores democráticos são esmagados pela violência, pelo arbitrário, pelo inevitável. É a política dos grupos fechados, das decisões incontrastadas. É a não política.
Toda vez que vou votar para presidente, carrego comigo esses pesados sentimentos do tempo que perdemos nas trevas da intolerância e do arbítrio. Voto como se cada voto valesse para aquele ano e para outro ano, em que não pude votar e um general sucedeu a outro no plantão da ditadura.
Só essas lembranças seriam suficientes para tornar mais complexo, mais responsável, o meu voto. Mas eu carrego, também a lembrança dos sonhos e das esperanças. E das decepções e frustrações. Sou profissional da análise política. Sei que a democracia nunca é perfeita. Mas sei também que os países podem fracassar pelas más escolhas que fazem. Aceitamos o inaceitável e deixamos que a corrupção e a intolerância, a desqualificação dos concorrentes, comprometessem a qualidade da escolha democrática que podemos fazer e o pluralismo que precisamos ter.
Eu cheguei a pensar que caminhávamos para o pluralismo. Mas o que tem crescido entre nós é o desejo de destruir os opositores. Como quiseram fazer com a oposição na ditadura. Tal e qual. Muitos herdaram e carregam os vícios daquele passado, ainda que tenham discurso supostamente democrático.
Mas vou às urnas sempre menos analítico e mais sonhador. Sei que o voto pode mudar. Espero que um dia o voto realmente mude o Brasil.
Quando chego na cabine, pareço mais um homem-bomba, tanto os sentimentos que carrego à flor da pele e que movimentam meu dedo na direção daquele botão definitivo para confirmar escolhas nunca fáceis, nunca feitas levianamente.
Esse foi um ano difícil. O presidente abandonou os votos institucionais do cargo, para tentar formatar o voto dos brasileiros à sua vontade. Conheço pessoalmente e gosto como pessoas de três dos quatro candidatos acolhidos aos debates desta campanha. Conheço a história, a luta, os valores e os sonhos de cada um. Compartilho vários com todos eles. O destino me forçou a escolher um, quando os três poderiam estar juntos, construindo um projeto para o Brasil do século XXI. Cada um teria que ceder um pouco, mas não em princípios: em ênfases. Mas eram concorrentes. Meu coração chorava ao decidir por um.
Mas democracia é essencialmente isso: escolher. A boa democracia é escolher por princípio, alguém que sabemos comandará o processo político do país e política é interesse. Os três sabem distinguir entre interesse público e privado. Eu, em homenagem a eles, escolhi pensando no Brasil com o qual todos sonhamos. Principalmente, em um sentimento que compartilhamos os três, eu sei com certeza: não queremos ver o Brasil fracassar. Não queremos o Brasil cínico, convencido de que se todos se corrompem devemos nos locupletar todos.
Escrevo este post como desabafo e explicação aos mais jovens. No Brasil, votar é muito difícil e como dói. Mas dói muito mais não votar. Escrevo esse post em homenagem aos candidatos cívicos, com as virtudes do Príncipe cívico de Maquiavel, aqueles que não maquinam para ganhar, pensam mais no país que querem e no povo. Que conversam com as pessoas, não as manipulam, nem as querem iludir com promessas vãs.
Escrevo esse post com os dedos carregados das mesmas emoções, aflições e sonhos com que votei.
Tags:democracia, eleições, voto