Eduardo
Viveiros de Castro dispara: iludido por noção ultrapasada de progresso,
Brasil pode desperdiçar oportunidade única de propor novo modelo
civilizatório
Entrevista a Júlia Magalhães
“É preciso insistir no fato de que é
possível ser feliz sem o frenesi de consumo que a mídia nos impõe”,
reafirma o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro à jornalista Júlia
Magalhães. Para ele, assim como para Fernando Meirelles e Ricardo Abramovay – primeiros entrevistados da sério Outra Política – a felicidade pode ter outros caminhos. O novo diálogo é parte da série que o Instituto Ideafix produziu por encomenda do IDS (Instuto Democracia e Sustentabilidade), e que o site publica na seção especial “Outra Política“.
Pesquisador e professor de antropologia
do Museu Nacional (UFRJ) e sócio fundador do Instituto Socioambiental
(ISA), Viveiros insiste em que só pela educação avançaremos rumo a uma
sociedade mais democrática. “A falta de educação é o nó cego responsável
por esse conservadorismo reacionário de boa parte da população”, diz
ele. Vai além: arrisca dizer que haveria uma conspiração para impedir os
brasileiros de ter acesso a educação ou conexão à internet de qualidade
– conquistas que permitiriam ampliar o acesso a produtos e bens
culturais.
Ainda como Meirelles e Abramovay,
Viveiros insiste em políticas que reduzam a desigualdade e favoreçam
novos padrões de consumo. “É um absurdo afirmar que produzir mais carros
é sinal de pujança, utilizar esse dado como indicador de melhoria
econômica.”
Para o antropólogo, a mobilização pelas
causas ambientais é importante, mas ainda está longe de corresponder à
gravidade do problema. É preciso ampliar o universo dos que se
preocupam, lembrar “que saneamento básico, dengue e lixo são problemas
ambientais”. Viveiros está alarmado: “as pessoas fingem não saber o que
está acontecendo, mas o fato é que temos que nos preparar para o pior”. O
raciocínio é semelhante ao de Fernando Meirelles, diretor de Ensaio
sobre a Cegueira: “Apenas cegos, cínicos ou oportunistas recusam-se a
enxergar”.
Diferentemente de Abramovay – que vê
germinar um trabalho sério nas empresas e acredita que a sociedade terá
força e atitude para impor limites à iniciativa privada –, Viveiros de
Castro considera que as corporações não são capazes de ir além do
“capitalismo verde”, fingindo responsabilidade social e ambiental. Os
dois se alinham, contudo, na esperança depositada nas redes sociais como
canais de expressão, opinião, colaboração e mobilização.
“Não existe um rumo Brasil”, alerta
Viveiros de Castro, ao falar sobre a fratura que marca a sociedade
brasileira contrapondo as forças vivas do autoritarismo e do racismo aos
setores que buscam a inovação. “O Brasil é um país escravocrata,
racista, que não fez reforma agrária, e precisa fazê-la”, diz.
Não por coincidência, dissse o mesmo, há pouco, Mano Brown, em vídeo gravado
na Ocupação Mauá, centro de São Paulo. “O Brasil está em transição, não
sabe se é um país moderno ou se está ainda em 1964. Tem uma geração de
direita ainda viva – Kassab é de direita, Alckmin é de direita – que tem
um modus operandi dos caras da antiga, de usar a força, o poder.” A
seguir, a entrevista (Inês Castilho).
Qual é sua percepção sobre a participação política do brasileiro?
Preferiria começar por uma desgeneralização:
vejo a sociedade brasileira como profundamente dividida no que concerne
à sua visão do país e do futuro. A ideia de que existe um Brasil,
no sentido não-trivial das ideias de unidade e de brasilidade,
parece-me uma ilusão politicamente conveniente (sobretudo para os
dominantes) mas antropologicamente equivocada. Existem no mínimo dois,
e, a meu ver, bem mais Brasis. O conceito geopolítico de Estado-nação
unificado não é descritivo, mas prescritivo. Há fraturas profunda na
sociedade brasileira. Há setores da população com uma vocação
conservadora imensa; eles não integram necessariamente uma classe
específica, embora as chamadas “classes médias”, ascendentes ou
descendentes, estejam bem representadas ali. Grande parte da chamada
sociedade brasileira — a maioria, infelizmente, temo — se sentiria muito
satisfeita sob um regime autoritário, sobretudo se conduzido
mediaticamente pela autoridade paternal de uma personalidade forte. Mas
isso é uma daquelas coisas que a minoria libertária que existe no país,
ou mesmo uma certa medioria “progressista”, prefere manter envolta em um
silêncio embaraçado. Repete-se a todo e a qualquer propósito que o povo
brasileiro é democrático, “cordial”, amante da liberdade, da igualdade e
da fraternidade – o que me parece uma ilusão muito perigosa. É assim
que vejo a “participação política do povo brasileiro”: fraturada,
dividida, polarizada, uma polarização que não está necessariamente em
harmonia com as divisões politicas oficiais (partidos etc.). O Brasil
permanece uma sociedade visceralmente escravocrata, renitentemente
racista, e moralmente covarde. Enquanto não acertarmos contas com esse
inconsciente, não iremos “para a frente”. Em outros momentos, é claro,
soluços insurreicionais esporádicos, e uma certa indiferença pragmática
em relação aos poderes constituídos, que se testemunha sobretudo entre
os mais pobres, ou os mais alheios ao teatro montado pelo andar de cima,
inspiram modestas utopias e moderados otimismos por parte daqueles que a
historia colocou na confortável posição de “pensar o Brasil”. Nós, em
suma.
O que é preciso para mudar isso?
Falar, resistir, insistir, olhar por cima do imediato – e, evidentemente, educar.
Mas não “educar o povo”, como se a elite fosse muito educada e
devêssemos (e pudéssemos) trazer o povo para um nível superior; mas sim
criar as condições para que o povo se eduque e acabe educando a elite,
quem sabe até livrando-se dela. A paisagem educacional do Brasil de hoje
é a de uma terra devastada, um deserto. E não vejo nenhuma iniciativa
consistente para tentar cultivar esse deserto. Pelo contrário: chego a
ter pesadelos conspiratórios de que não interessa ao projeto de poder em
curso modificar realmente a paisagem educacional do Brasil: domesticar a
força de trabalho, se é que é isso mesmo que se está sinceramente
tentando (ou planejando), não é de forma alguma a mesma coisa que
educar.
Isto é só um pesadelo,
decerto: não é assim, não pode ser assim, espero que não seja assim. Mas
fato é que não se vê uma iniciativa de modificar a situação. Vê-se é a
inauguração bombástica de dezenas de universidades sem a mínima
infra-estrutura física (para não falar de boas bibliotecas, luxo quase
impensável no Brasil), enquanto o ensino fundamental e médio permanecem
grotescamente inadequados, com seus professores recebendo uma miséria,
com as greves de docentes universitários reprimidas como se eles fossem
bandidos. A “falta” de instrução — que é uma forma muito particular e
perversa de instrução imposta de cima para baixo — é talvez o principal
fator responsável pelo conservadorismo reacionário de boa parte da
sociedade brasileira. Em suma, é urgente uma reforma radical na educação
brasileira.
“A floresta e a escola”,
sonhava Oswald de Andrade. Infelizmente, parece que deixaremos de ter
uma e ainda não teremos a outra. Pois sem escola, aí é que não sobrará
floresta mesmo.
Por onde começaria a reforma na educação?
Começaria por baixo, é
lógico, no ensino fundamental – que continua entregue às moscas. O
ensino público teria de ter uma política unificada, voltada para uma –
com perdão da expressão – “revolução cultural”. Não adianta redistribuir
renda (ou melhor, aumentar a quantidade de migalhas que caem da mesa
cada vez mais farta dos ricos) apenas para comprar televisão e ficar
vendo o BBB e porcarias do mesmo quilate, se não redistribuímos cultura,
educação, ciência e sabedoria; se não damos ao povo condições de criar
cultura em lugar de apenas consumir aquela produzida “para” ele. Está
havendo uma melhora do nível de vida dos mais pobres, e talvez também da
velha classe média – melhora que vai durar o tempo que a China
continuar comprando do Brasil e não tiver acabado de comprar a África.
Apesar dessa melhora no chamado nível de vida, não vejo melhora na
qualidade efetiva de vida, da vida cultural ou espiritual, se me
permitem a palavra arcaica. Ao contrário. Mas será que é preciso mesmo
destruir as forças vivas, naturais e culturais, do povo, ou melhor, dos
povos brasileiros para construir uma sociedade economicamente mais
justa? Duvido.
Nesse cenário, quais os temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira, hoje?
Vejo a “sociedade
brasileira” imantada, pelo menos no plano de sua auto-representação
normativa por via da midia, por um ufanismo oco, um orgulho besta, como
se o mundo (desta vez, enfim) se curvasse ao Brasil. Copa, Olimpíadas…
Não vejo mobilização sobre temas urgentíssimos, como esses da educação e
da redefinição de nossa relação com a terra, isto é, com aquilo que
está por baixo do território. Natureza e Cultura, em suma, que hoje não
apenas se acham mediadas, mediatizadas pelo Mercado, mas mediocrizadas
por ele. O Estado se aliou ao Mercado, contra a Natureza e contra a
Cultura.
Esses temas ainda não mobilizam?
Existe alguma preocupação
da opinião pública com a questão ambiental, um pouco maior do que com a
educacional – o que não deixa de ser para se lamentar, pois as duas vão
juntas. Mas tudo me parece “too little, too late”: muito pouco,
e muito tarde. Está demorando tempo demais para se espalhar a
consciência ambiental, o sentido de urgência absoluta que a situação do
planeta impõe a todos nós. Essa inércia se traduz em pouca pressão sobre
os governos, as corporações, as empresas – estas investindo cada vez
mais na historia da carochinha do “capitalismo verde”. E pouca pressão
sobre a grande imprensa, suspeitamente lacônica, distraída e
incompetente quando se trata da questão das mudanças climáticas.
Não se vê a sociedade
realmente mobilizada, por exemplo, por Belo Monte, uma monstruosidade
provada e comprovada, mas que tem o apoio desinformado (é o que se
infere) de porções significativas da população do Sul e Sudeste, para
onde irá boa parte da energia que não for vendida a preço de banana
paras as multinacionais do alumínio fazerem latinha de sakê, no baixo
Amazonas, para o mercado asiático. Faz falta um discurso politico mais
agressivo em relação à questão ambiental. É preciso sobretudo falar aos povos, chamar
a atenção de que saneamento básico é um problema ambiental, dengue é
problema ambiental, lixão é problema ambiental. Não é possível separar
desmatamento de dengue e de saneamento básico. É preciso convencer a
população mais pobre de que melhorar as condições ambientais é garantir
as condições de existência das pessoas. Mas a esquerda tradicional, como
se está comprovando, mostra-se completamente despreparada para
articular um discurso sobre a questão ambiental. Quando suas cabeças
mais pensantes falam, tem-se a sensação de que estão apenas “correndo
atrás”, tentando desajeitadamente capturar e reduzir ao já-conhecido um
tema novo, um problema muito real que não estava em seu DNA ideológico e
filosófico. Isso quando ela, a esquerda, não se alinha com o
insustentável projeto ecocida do capitalismo, revelando assim sua comum
origem com este último, lá nas brumas e trevas da metafísica
antropocêntrica do Cristianismo.
Enquanto acharmos que
melhorar a vida das pessoas é dar-lhes mais dinheiro para comprarem uma
televisão, em vez de melhorar o saneamento, o abastecimento de água, a
saúde e a educação fundamental, não vai dar. Você ouve o governo falando
que a solução é consumir mais, mas não vê qualquer ênfase nesses
aspectos literalmente fundamentais da vida humana nas condições
dominantes no presente século.
Não se diga, por suposto,
que os mais favorecidos pensem melhor e vejam mais longe que os mais
pobres. Nada mais idiota do que esses Land Rovers que a gente vê a torto
e a direito em São Paulo ou no Rio, rodando com plásticos do Greenpeace
e slogans “ecológicos” colados nos pára-brisas. Gente refestelada
nessas banheiras 4×4 que atravancam as ruas e bebem o venenoso óleo
diesel, gente que acha que “contato com a natureza” é fazer rally no
Pantanal…
É uma situação difícil:
falta instrução básica, falta compromisso da midia, falta agressividade
política no tratar da questão do ambiente — isso quando se acha que há
uma questão ambiental, o que está longe de ser o caso de nossos atuais
Responsáveis. Estes mostram, ao contrário e por exemplo, preocupação em
formar jovens que dirijam com segurança, e assim ao mesmo tempo mantêm
sua aposta firme no futuro do transporte por carro individual numa
cidade como São Paulo, em que não cabe nem mais uma agulha. Um governo
que não se cansa de arrotar grandeza sobre a quantidade de veiculos
produzidos por ano. É um absurdo utilizar os números da produção de
veiculos como indicador de prosperidade econômica. Isso é uma proposta
podre, uma visão tacanha, um projeto burro de país.
Você está dizendo
que muitos apelos ao consumo vêm do próprio governo. Mas também há um
apelo muito grande que vem do mercado. Como você avalia isso?
O Brasil é um país
capitalista periférico. O capitalismo industrial-financeiro é
considerado por quase todo mundo hoje como uma evidência necessária, o
modo incontornável de um sistema social sobreviver no mundo de hoje.
Entendo, ao contrário de alguns companheiros de viagem, que o
capitalismo sustentável é uma contradição em termos, e que se nossa
presente forma de vida econômica é realmente necessária, então
logo nossa forma de vida biológica, isto é, a espécie humana, vai-se
mostrar desnecessária. A Terra vai favorecer outras alternativas.
A ideia de crescimento
negativo, ou de objeção ao crescimento, a ética da suficiência são
contraditórias com a lógica do capital. O capitalismo depende do
crescimento contínuo. A ideia manutenção de um determinado patamar de
equilíbrio na relação de troca energética com a natureza não cabe na
matriz econômica do capitalismo.
Esse impasse, queiramos ou
não, vai ser “solucionado” pelas condições termodinâmicas do planeta em
um período muito mais curto do que imaginávamos. As pessoas fingem não
saber o que está acontecendo, preferem não pensar no assunto, mas o fato
é que temos que nos preparar para o pior. E o Brasil, ao contrário,
está sempre se preparando para o melhor. O otimismo nacional diante de
uma situação planetária para lá de inquietante é extremamente perigoso, e
a aposta de que vamos nos dar bem dentro do capitalismo é algo ingênua,
se é que não é, quem sabe, desesperada.. O Brasil continua sendo um
país periférico, uma plantation relativamente high tech que
abastece de produtos primários o capitalismo central. Vivemos de
exportar nossa terra e nossa água em forma de soja, açúcar, carne, para
os países industrializados – e são eles que dão as cartas, controlam o
mercado. Estamos bem nesse momento, mas de forma alguma em posição de
controlar a economia mundial. Se mudar um pouco para um lado ou para o
outro, o Brasil pode simplesmente perder esse lugar à janela onde está
sentado hoje. Sem falar, é claro, no fato de que estamos vivendo uma
crise econômica mundial que se tornou explosiva em 2008 e está longe de
acabar; ninguém sabe onde ela vai parar. O Brasil, nesse momento da
crise, está em uma espécie de contrafluxo do tsunami, mas quando a onda
quebrar vai molhar muita gente. Essas coisas têm de ser ditas.
E como você avalia a
relação dessa realidade macropolítica, macroeconômica, com as
realidades do Brasil rural, dos ribeirinhos, dos indígenas?
O projeto de Brasil que tem
a presente coalizão governamental sob o comando do PT é um no qual
ribeirinhos, índios, camponeses, quilombolas são vistos como gente
atrasada, retardados socioculturais que devem ser conduzidos para um
outro estágio. Isso é uma concepção tragicamente equivocada. O PT é
visceralmente paulista, seu projeto é uma “paulistanização” do Brasil.
Transformar o interior do país numa fantasia country: muita
festa do peão boiadeiro, muito carro de tração nas quatro, muita música
sertaneja, bota, chapéu, rodeio, boi, eucalipto, gaúcho. E do outro lado
cidades gigantescas e impossíveis como São Paulo. O PT vê a Amazônia
brasileira como um lugar a se civilizar, a se domesticar, a se
rentabilizar, a se capitalizar. Esse é o velho bandeirantismo que tomou
conta de vez do projeto nacional, em uma continuidade lamentável entre
as geopolítica da ditadura e a do governo atual. Mudaram as condições
políticas formais, mas a imagem do que é uma civilização brasileira, do
que é uma vida que valha a pena ser vivida, do que é uma sociedade que
esteja em sintonia consigo mesma, é muito, muito parecida. Estamos vendo
hoje, numa ironia bem dialética, o governo comandado por uma pessoa
perseguida e torturada pela ditadura realizando um projeto de sociedade
encampado e implementado por essa mesma ditadura: destruição da
Amazônia, mecanização, transgenização e agrotoxificação da “lavoura”,
migração induzida para as cidades. Por trás de tudo, uma certa ideia de
Brasil que o vê, no início do século XXI, como se ele devesse ser o que
os Estados Unidos foram no século XX. A imagem que o Brasil tem de si
mesmo é, sob vários aspectos, aquela projetada pelos Estados Unidos nos
filmes de Hollywood dos anos 50 – muito carro, muita autoestrada, muita
geladeira, muita televisão, todo mundo feliz. Quem pagava por tudo isso
éramos, entre outros, nós. (Quem nos pagará, agora? A África, mais uma
vez? O Haiti? A Bolivia?). Isso sem falarmos na massa de infelicidade
bruta gerada por esse modo de vida para seus beneficiários mesmo.
É isso que vejo, uma
tristeza: cinco séculos de abominação continuam aí. Sarney é um capitão
hereditário, como os que vieram de Portugal para saquear e devastar a
terra dos índios. O nosso governo dito de esquerda governa com a
permissão da oligarquia e dos jagunços destas para governar, ou seja,
pode fazer várias coisas desde que a parte do leão continue com ela.
Toda vez que o governo ensaia alguma medida que ameace isso,o congresso,
eleito sabe-se como, breca, a imprensa derruba, o PMDB sabota.
Há uma série de impasses
para os quais não vejo saída, não vejo como sair por dentro do jogo
político tradicional, com as presentes regras – vejo mais como sendo
possível pelo lado do movimento social. Este está desmobilizado; se não
está, o que mais se ouve é que ele está. Mas se não for por via do
movimento social, vamos continuar vivendo nesse paraíso subjuntivo,
aquele em que um dia tudo vai ficar ótimo. O Brasil é um país dominado
politicamente por grandes proprietários e grandes empreiteiros, que não
só nunca fez sua reforma agrária, como onde se diz que já não é mais
preciso fazê-la.
Você acha que as coisas vão começar a mudar quando chegarem a um limite?
A crise econômica mundial
vai provavelmente pegar o Brasil no contrapé em algum momento próximo.
Mas o que vai acontecer com certeza é que o mundo todo vai passar por
uma transição ecológica, climática e demográfica muito intensa nos
próximos 50 anos, com epidemias, fomes, secas, desastres, guerras,
invasões. Estamos vendo as condições climáticas mudarem muito mais
aceleradamente do que imaginávamos, e é grande a possibilidade de
catástrofes, de quebras de safras, de crises de alimentos. Por ora,
hoje, isso está até beneficiando o Brasil. Mas um dia a conta vai
chegar. Os climatologistas, os geofísicos, os biólogos e os ecólogos
estão profundamente pessimistas quanto ao ritmo, as causas e as
consequências da transformação das condições ambientais em que se
desenvolve hoje a vida da espécie. Porque haveria eu de estar otimista?
Penso que é preciso
insistir que é possível ser feliz sem se deixar hipnotizar por esse
frenesi de consumo que a mídia nos impõe. Não sou contra o crescimento
econômico no Brasil, não sou idiota a ponto de achar que tudo se
resolveria distribuindo a grana do Eike Batista entre os camponeses do
semi-árido nordestino ou cortando os subsídios aos clãs
político-mafiosos que governam o país. Não que isso não fosse uma boa
ideia. Mas sou contra, isso sim, o crescimento da “economia” mundial, e
sou a favor de uma redistribuição das taxas de crescimento. Sou também
obviamente a favor de que todos possam comprar uma geladeira, e, por que
não, uma televisão — mas sou a favor de que isso envolva a máxima
implementação das tecnologias solar e eólica. E teria imenso prazer em
parar de andar de carro se pudéssemos trocar esse meio absurdo de
transporte por soluções mais inteligentes.
E como você vê o jovem nesse contexto?
É muito difícil falar de
uma geração à qual não se pertence. Na década de 60 tínhamos ideias
confusas mas ideais claros, achávamos que podíamos mudar o mundo, e
sabíamos que tipo de mundo queríamos. Acho que, no geral, os horizontes
utópicos se retraíram enormemente.
Algum movimento recente no Brasil ou no mundo chamou sua atenção?
No Brasil, a aceleração da
difusão do que podemos chamar de cultura agro-sulista, tanto à direita
como à esquerda, pelo interior do país. Vejo isso como a consumação do
projeto de branqueamento da nacionalidade, esse modo muito peculiar da
elite dominante acertar suas contas com o próprio passado (passado?)
escravista. Outra mudança importante
foi a consolidação de uma cultura popular ligada ao movimento
evangélico. O evangelismo das igrejas universais do reino de Deus e
congêneres está evidentemente associado à religião do consumo, aliás.
E como você vê o surgimento das redes sociais, nesse contexto?
Isso é uma das poucas
coisas com que estou bastante otimista: o relativo e progressivo
enfraquecimento do controle total das mídias por cinco ou seis grandes
grupos. Esse enfraquecimento está acontecendo com a proliferação das
redes sociais, que são a grande novidade na sociedade brasileira e que
estão contribuindo para fazer circular um tipo de informação que não
tinha trânsito na imprensa oficial, e permitindo formas de mobilização
antes impossíveis. Há movimentos inteiramente produzidos dentro das
redes sociais, como a marcha contra a homofobia, o churrasco da “gente
diferenciada” em Higienópolis, os vários movimentos contra Belo Monte, a
mobilização pelas florestas. As redes são nossa saída de emergência
para a aliança mortal entre governo e mídia. São um fator de
desestabilização, no melhor sentido da palavra, do arranjo de poder
dominante. Se alguma grande mudança no cenário político brasileiro vier a
acontecer, creio que vai passar por essa mobilização das redes.
Por isso se intensificam as
tentativas de controlar essas redes por parte dos poderes constituídos –
isso no mundo inteiro. Pelo controle ao acesso ou por instrumentos
vergonhosos, como o “projeto” brasileiro de banda larga, que começa pelo
reconhecimento de que o serviço será de baixa qualidade. Uma decisão
tecnolotica e política antidemocrática e antipopular, equivalente ao que
se faz com a educação: impedir que a população tenha acesso pleno à
circulação cultural. Parece mesmo, às vezes, que há uma conspiração para
impedir que os brasileiros tenham uma educação boa e acesso de
qualidade à internet. Essas coisas vão juntas e têm o mesmo efeito, que é
o aumento da inteligência social, algo que, pelo jeito, é preciso
controlar com muito cuidado.
Você imagina um novo modelo político?
Um amigo que trabalhava no
ministério do Meio Ambiente na época de Marina Silva me criticava
dizendo que essa minha conversa de ficar longe do Estado era romântica e
absurda, que tínhamos que tomar o poder, sim. Eu respondia que, se
tínhamos de tomar o poder, era preciso saber manter o poder depois, e
era aí que a coisa pegava. Não tenho um desenho político para o Brasil,
não tenho a pretensão de saber o que é melhor para o povo brasileiro em
geral e como um todo. Só posso externar minhas preocupações e
indignações, e palpitar, de verdade, apenas ali onde me sinto seguro. Penso, de qualquer forma,
que se deve insistir na ideia de que o Brasil tem – ou, a essa altura,
teria – as condições ecológicas, geográficas, culturais de desenvolver
um novo estilo de civilização, um que não seja uma cópia empobrecida do
modelo americano e norte-europeu. Poderíamos começar a experimentar,
timidamente que fosse, algum tipo de alternativa aos paradigmas
tecno-econômicos desenvolvidos na Europa moderna. Mas imagino que, se
algum país vai acabar fazendo isso no mundo, será a China. Verdade que
os chineses têm 5000 anos de historia cultural praticamente continua, e o
que nós temos a oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia e
uma triste historia de etnocídio, deliberado ou não. Mesmo assim, é
indesculpável a falta de inventividade da sociedade brasileira, pelo
menos das suas elite políticas e intelectuais, que perderam várias
ocasiões de se inspirarem nas soluções socioculturais que os povos
brasileiros historicamente ofereceram, e de assim articular as condições
de uma civilização brasileira minimamente diferente dos comerciais de
TV. Temos de mudar completamente, para começar, a relação secularmente
predatória da sociedade nacional com a natureza, com a base
físico-biológica da própria nacionalidade. E está na hora de iniciarmos
uma relação nova com o consumo, menos ansiosa e mais realista diante da
situação de crise atual. A felicidade tem muitos caminhos.
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http://www.outraspalavras.net/2012/09/20/outros-valores-alem-do-frenesi-de-consumo/.
Compartilhada por Neyla Mendes.