quarta-feira, 25 de julho de 2012

Ciência, tecnologia, inovação, vaca e leite

19/07/2012 - 03h30

IVAN OLIVEIRA

Folha de Sao Paulo, Tendências/Debates

 O físico austríaco Guido Beck (1903-1988), pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) de 1951 até a sua morte, dizia que "querer a tecnologia mas não querer a ciência é como querer o leite mas não querer a vaca".
Ao longo da história, há vários exemplos. Vejamos alguns poucos:

1) O escocês James Maxwell previu, com suas equações, em 1873, a existência e a propagação de ondas eletromagnéticas. As ondas de rádio foram produzidas pela primeira vez por Heinrich Hertz, em 1888, dando partida às comunicações por rádio;

2) Einstein, em 1905, descobriu a sua famosa fórmula: e=mc2. A energia nuclear só passou a ser explorada a partir da década de 1940. Mais uma dele: em 1916, publicou a relatividade geral, que substituiu a teoria da gravitação de Isaac Newton. Hoje, o GPS emprega a relatividade para funcionar corretamente;

3) A mecânica quântica, formulada no primeiro quarto do século 20, é a base de toda a ciência dos materiais: semicondutores (matéria-prima dos chips de computadores), metais, isolantes, materiais magnéticos e nanotecnologia. Só nos EUA, estima-se que cerca de 40% do PIB decorre de inovações diretamente ligadas às aplicações da mecânica quântica, utilizada para produzir, por exemplo, computadores, eletrodomésticos e carros;

4) O inglês Tim Berners-Lee, ao solucionar um problema de transferência de arquivos de dados científicos entre computadores no maior laboratório de física básica do mundo, o CERN, no início dos anos 1990, inventou a internet;

5) Cristais líquidos (usados em monitores de TV, computadores, tablets) foram descobertos em 1888 pelo botânico Friedrich Reinitzer, quando estudava, na Universidade de Praga, propriedades do... colesterol!

Carvall/Folhapress
A relação entre ciência, tecnologia e inovação segue uma ordem de causa e efeito que não pode ser invertida. Não se retira uma vaca de um copo de leite. É um grave equívoco pensar que se pode separar a atividade científica básica das soluções tecnológicas. A tecnologia é um "efeito colateral" da ciência.

Apenas no Instituto Tecnológico de Massachusetts, MIT, o número de patentes obtidas em 2011 foi de 160, contra 572 pedidos do Brasil inteiro no mesmo ano --em geral, nem todos os pedidos resultam em patentes concedidas. Ao leigo, pode dar a impressão de que os cientistas do MIT passam o dia pensando em novas invenções.

Essa noção desaparece quando verificamos que, entre os 27 prêmios Nobel de Física que passaram pelo MIT (em um total de 63 daquela instituição), encontram-se nomes como o de Richard Feynman (1965), Murray Gell-Mann (1969) e Steven Weinberg (1979), todos dedicados à compreensão de fenômenos físicos fundamentais, sem qualquer viés aplicativo imediato.

A fórmula para a geração de tecnologia e inovação é simples. Coloque em um mesmo lugar cientistas, engenheiros e estudantes, em bom número, pesquisando, juntos, fenômenos básicos da natureza, com laboratórios, oficinas e bibliotecas bem equipados.

Não existe outra forma. Não é rápido, não é barato. Não gera dividendos políticos imediatos, não dá resultados em um par de mandatos. Tem de haver consistência no financiamento, persistência na aplicação da fórmula e paciência. No Brasil, ciência básica é produzida nas universidades e nas unidades de pesquisa de vários ministérios.

Soluções mágicas, impostas por manobras burocráticas, podem matar a nossa vaca, que tem saúde frágil. E, como se sabe, vaca morta não dá leite.
IVAN OLIVEIRA, 50, doutor em física pela Universidade de Oxford, é pesquisador titular e coordenador da pós-graduação no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas