por Raul Silva Telles do Valle (direto doISA)
Em setembro de 2010, em plena corrida
presidencial, um grupo de organizações da sociedade civil encaminhou aos então
candidatos um conjunto de questões relativas às propostas de modificação do
Código Florestal. Já àquela época, avançava na Câmara dos Deputados o projeto
ruralista de modificação da legislação florestal e as organizações queriam
saber o que pensavam os aspirantes ao cargo maior do País.
A hoje presidenta da República, Dilma Rousseff,
questionada se apoiava ou não a anistia proposta pelo texto então em
tramitação, disse textualmente: “construímos no governo Lula um consenso de que
a eventual conversão de multas só deve ocorrer após ações efetivas de
recuperação das áreas desmatadas ilegalmente. Temos que estimular e apoiar esta
transição, dando condições técnicas e materiais para nossos agricultores
recuperarem estas áreas” (veja aqui).
A partir daí, a candidata e depois
presidenta teve a oportunidade de repetir diversas vezes que não passaria a mão
na cabeça de quem desmatou ilegalmente. Isso alimentou um sentimento difuso de
esperança na sociedade, que, depois de aprovado o projeto ruralista pelo
Congresso Nacional, passou a manifestar de forma inequívoca, por todos os meios
disponíveis, amplo apoio à presidenta para que ela cumprisse com sua palavra.
Ciente de que ela estava emparedada entre sua palavra e os anseios da
sociedade, de um lado, e os interesses de uma parte expressiva de sua base de
apoio parlamentar, os cidadãos brasileiros sinalizaram que ela poderia contar
com eles para confrontar a chantagem dos representantes da elite agrária
brasileira.
Na tarde da última sexta-feira, 25 de maio,
exatamente um ano após a aprovação do relatório Aldo Rebelo na Câmara dos
Deputados, três ministros vieram a público, com muitas palavras e nenhum
documento, para reafirmar que o projeto seria vetado. Não na sua íntegra, como
sinal de respeito ao Congresso Nacional. Mas os pontos que significassem
anistia teriam sido extirpados. Mais desmatamentos? De jeito nenhum, tudo seria
eliminado.
O Brasil dormiu desconfiado, mas
esperançoso, durante o final de semana, e acordou indignado na segunda-feira.
Com 12 vetos e uma Medida Provisória, nasceu já remendado o Código Florestal do
século 21 – e repleto de anistias.
Perguntam-se muitos: mas como? A presidenta
não disse que não aceitaria? Os ministros não afirmaram veementemente que a
anisitia havia sido retirada? Então, como alguns ainda dizem que há anistia na
lei?
A partir de agora vai começar a guerra de
comunicação. Tal como Goebbels, o Governo Federal vai insistir na tese de que
uma mentira contada mil vezes vai virar verdade. Assim, para que não fique o
dito pelo não dito, explico porque Dilma Roussef, contrariando tudo o que havia
dito até agora, assinou embaixo da maior anistia ambiental da história do país.
A ministra do Meio Ambiente, repetindo um
mantra ecoado pelos ruralistas, afirmou publicamente que o projeto não tem
anistia. Teria como objetivo, simplesmente, legalizar ocupações “antigas”,
feitas de acordo com as regras da época.
A Lei Federal 12.651, de 25 de maio de
2012, o novo Código “Florestal”, continua mantendo, no entanto, a figura de
“área rural consolidada”. Segundo o artigo 3o, ela é uma “área de imóvel rural
com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008” (inciso IV).
Um incauto leitor da lei deve logo pensar:
“então, antes de 2008, os proprietários rurais não precisavam proteger as
florestas existentes em suas terras ou a quantidade de área protegida era
menor”. Ledo engano. Desde 1934, com o “velho” Código Florestal, o proprietário
é obrigado a manter as florestas das áreas “vulneráveis a erosões” e respeitar
os 25% da propriedade que não poderiam ser convertidos para agropecuária, o que
posteriormente veio a ser denominado de “reserva legal”.
Em 1965, como todo mundo desmatava alegando
que não sabia quais eram essas tais áreas vulneráveis, veio o “novo” Código
Florestal e deixou claro que essas áreas eram os topos de morro, as encostas
íngremes, as nascentes, as beiras de rio. E fixou padrões e metragens, para
ninguém dizer que não sabia que ali não podia desmatar.
Em 1986, houve uma alteração pontual: as
matas ciliares deveriam ser protegidas em, no mínimo, 30 metros contados das
margens, e não apenas cinco como era até então. Em 1996, veio outra
modificação: na Amazônia Legal (e só lá), a reserva legal seria aumentada de
50% para 80% do imóvel, em áreas de floresta, e diminuída de 50% para 35%, em
áreas de cerrado (clique no quadro abaixo para ampliar).
Dessa brevíssima digressão espero ter
ficado claro que um desmatamento realizado em 2008 em encostas íngremes ou
nascentes, por exemplo, assim como na área destinada à reserva legal, era
absolutamente ilegal. Mesmo que realizado dez anos antes, era ilegal. Em muitos
casos, mesmo que realizado várias décadas antes seria ilegal.
O “novíssimo” Código Florestal isenta de
recuperação todas as Áreas de “Preservação Permanente” e a grande maioria das
áreas de reserva legal que tenham sido desmatadas até 2008 (e não em 1965, 1989
ou 1996). Ou seja, desmatou, fica desmatado. Se havia multa, está anulada. Se a
área havia sido embargada, está liberada. Isso é anistia. Mas como?
O artigo 63 (não vetado) diz que nas
encostas com mais de 45º de inclinação, nas bordas de chapadas, nos topos de
morro e áreas com altitude superior a 1.800 metros de altitude – todos
protegidos desde 1965 – serão mantidas as atividades agropecuárias implantadas
até 2008. Mesmo pastagens, altamente degradadoras de áreas montanhosas, estão
permitidas. Recuperação? Zero.
O artigo 67 (não vetado) diz que, nos
imóveis de até quatro módulos fiscais, não é preciso recuperar a reserva legal
irregularmente desmatada antes de 2008 (e não em 1934 ou 1996). Isso significa
que em mais de 90% dos imóveis rurais – que ocupam 24% da área do país – não
haverá recuperação. Com as brechas que essa regra traz é muito provável que
essa anistia se estenda para parte significativa dos 10% de imóveis restantes,
impactando uma área bem maior (saiba mais).
O artigo 11-A (incluído pela MP) permite,
em seu §6º, que haja nos manguezais a “regularização das atividades e
empreendimentos de carcinicultura e salinas cuja ocupação e implantação tenha
ocorrido antes de 22 de julho de 2008”. Os manguezais, não custa lembrar, estão
indiretamente protegidos pela lei desde 1965, e diretamente desde 1993, na Mata
Atlântica, e 2002, na Amazônia. Esse artigo, além de promover essa anistia,
permite que novas áreas sejam abertas para instalação de criações de camarões,
contrariando o conselho unânime dos cientistas brasileiros (veja aqui).
Mesmo no caso das matas ciliares e
nascentes, que erroneamente foi tomado pela grande mídia como “o” caso de
anistia (como se as anteriores não existissem), e que o Governo Federal, na
pirotecnia feita no dia 25/5, usou como exemplo para dizer que “não havia mais
anistia”, ela está lá, inteirinha. O art.61-A (incluído pela MP) prevê a
“recuperação” de uma faixa de 5 a 100 metros em beiras de rio desmatadas até
2008 (e não em 1965 ou 1986), quando a área que deveria ter sido preservada
variava de 30 a 500 metros. No caso de nascentes, protegidas desde 1965, mas
cuja área exata de proteção (raio de 50 metros) foi estabelecida em 2002, a
“recuperação” vai variar de 5 a 15 metros, mesmo para desmatamentos realizados
em 2007. Nesse último caso, diga-se de passagem, a MP diminui a proteção mesmo
em relação ao texto que fora aprovado pela Câmara dos Deputados há menos de um
mês, no qual a recuperação prevista era de 30 metros. Em todos os casos, com
exceção das beiras de rio situadas em imóveis com mais de 10 módulos fiscais, a
“recuperação” será de apenas parte daquilo que deveria ter sido protegido.
E por que estou usando aspas para falar de
recuperação em beiras de rio e nascentes? Porque a MP incluiu uma novidade
surpreendente: essa – pouca – restauração poderá, agora ser feita com “espécies
lenhosas perenes ou de ciclo longo, nativas ou exóticas”. Para quem não sabe,
isso quer dizer eucalipto, laranja, café, videiras, palma de dendê etc. Ou
seja: o que era vegetação nativa, será – parcialmente – recomposto com espécies
de uso econômico e nenhuma função ambiental. Portanto, recuperação ambiental
mesmo, zero. Anistia 100%. Uma “correção” publicada hoje no Diário Oficial
determina que esse dispositivo vale apenas para áreas de até quatro módulos
fiscais.
Mas o problema da anistia não é apenas, ou
principalmente, moral. É ambiental. O “novíssimo” Código Florestal diz em seu
Art. 3º que as áreas de preservação permanente têm a função de “preservar os
recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade,
facilitar o fluxo de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das
populações humanas”. Com a anistia promulgada pela Presidente Dilma Rousseff,
haverá uma grande parte dessas áreas que nunca mais cumprirão com essa função,
pois jamais voltarão a ter vegetação nativa. Em várias regiões do país há mais
APPs e reservas legais desmatadas do que preservadas (leia mais). Justamente
nessas regiões falta água, sobram enchentes, morrem nascentes, acaba a fauna. E
assim será.
Somando-se todas as anistias com todos os
pontos onde há uma diminuição na proteção das florestas que não foram ainda
derrubadas e como prenunciado aqui (leia aqui), deixamos de ter, na prática,
uma lei de proteção às florestas existentes em áreas privadas. O remendo de lei
aprovado tem todos os defeitos das leis anteriores (poucas medidas de apoio a
sua implementação), mas poucas de suas virtudes. É contraditório e complexo de
interpretar.
Ao não cumprir com a palavra empenhada
perante a sociedade, a presidenta Dilma Rousseff se tornou cúmplice do projeto
de país que a ala mais retrógrada de nossa elite econômica está desenhando. E
entrará para história como aquela que, mesmo podendo, mesmo tendo todo o apoio
da sociedade, não evitou o maior retrocesso nos padrões de proteção ambiental
da história brasileira. E talvez mundial, pois não me consta que em outros
países a proteção às florestas esteja diminuindo, muito pelo contrário. Em
pleno século 21, voltaremos a um patamar anterior ao de 1934, quando nosso
primeiro Código Florestal foi aprovado.