sábado, 24 de abril de 2010

III. Trópicos utópicos: um vislumbre do sonho brasileiro

Eduardo Giannetti, 23-abr-2010

Cada cultura encerra um sonho de felicidade. A superação da pobreza que debilita e restringe a margem de escolha de tantos brasileiros; o combate sem trégua à absoluta falta de oportunidades que tolhe o talento criador e cerceia o horizonte de um enorme contingente de crianças e jovens e a redução consistente da desigualdade por meio de políticas de capacitação e inclusão são imperativos de primeira ordem em qualquer visão de futuro digno de ser sonhado – eles representam a dimensão prática e material de um sonho compartilhado de nação.

Mas é preciso ir além. Desenvolvimento para quê? Em nome do quê? Resolver problemas não é o mesmo que afirmar vocações. O que, afinal, almejamos como nação? Que sonho de grandeza e constelação de valores poderiam nos unir em torno de um projeto de realização e afirmação brasileira no concerto das nações? Existirá uma utopia mobilizadora da alma e das energias dos brasileiros? O que o Brasil teria a dizer ao mundo se pudesse finalmente superar as mazelas do seu atraso em áreas como ensino, saúde, saneamento, transporte e segurança?

“Um país pequeno com horizontes pequenos”, afirmou o rei Leopoldo II sobre a Bélgica. Será esta a vocação brasileira? Ouso crer que não. Prefiro encarar o desafio lançado por Dostoievski em Os possuídos: “Se um grande povo não acreditar que a verdade somente pode ser encontrada nele mesmo; se ele não crer que ele apenas está apto e destinado a se erguer e redimir a todos por meio de sua verdade, ele prontamente se rebaixa à condição de material etnográfico, e não de um grande povo: uma nação que perde esta crença deixa de ser uma nação”. Como atinar com as palavras do romancista russo e não se pôr imediatamente a pensar no Brasil ideal que pulsa e vibra no coração do Brasil real?

Um Brasil que mereça ser sonhado não pode ser mera fabulação da imaginação caprichosa. Ele precisa partir do que efetivamente somos; das virtudes e defeitos que se mesclam em nosso destino de nação. Ele precisa reconhecer os limites e condicionantes herdados do passado para traçar o mapa do que podemos e o norte do que sonhamos ser. É garimpando o cascalho de nossas conquistas e reveses que chegaremos à lapidação de nossos saberes e potencialidades. O segredo da utopia (no bom sentido) reside na arte de desentranhar a luz das trevas. Há um futuro luminoso querendo despertar das ameaças e promessas do presente.

Que país não poderia ser o nosso! Quando penso no Brasil ideal que povoa e anima os meus sonhos não nos vejo metidos a conquistadores, donos da verdade ou fabricantes de impérios. Não nos vejo trocando a alma pelo bezerro de ouro ou abrindo mão de nossa compreensão lúdica e amável da vida na luta por uma pole position na métrica do PIB per capita e do descaso por todos os valores que não se prestam a um cálculo monetário. Quanto vale a nossa biodiversidade?

Quanto custa um dia de sol? Se a civilização da máquina, da competição feroz e do tempo medido a conta-gotas tem alguma razão de ser, então ela existe para libertar os homens da servidão ao monovalor econômico, e não para enredá-los em pérpetua e sempre renovada corrida armamentista do consumo e da acumulação.

Do que nos fala a utopia de um Brasil capaz de nos fazer acreditar que podemos ser mais – muito mais! – que simples material etnográfico para diversão de antropólogos? Ela nos fala de um ideal de vida assentado na tranquilidade de ser o que se é, como no canto e violão de João Gilberto. Ela nos fala da existência natural do que é belo e da busca da perfeição pela depuração de tudo que afasta do essencial. Ela nos fala de um outro Brasil, nem mais verdadeiro nem mais falso que o existente – apenas reconciliado consigo próprio, em paz com a sua esplendorosa natureza.

De um Brasil altivo e aberto ao mundo, enfim curado da doença infantil-colonial do progressismo macaqueador e seu avesso – o nacionalismo tatu. De um Brasil em que a democracia racial deixou de ser mito a encobrir para fazer-se forma de vida a revelar. De um Brasil que trabalha (o suficiente), mas nem por isso deixa de transpirar alegria de viver – o “doce sentimento da existência” pelo qual suspirava Rousseau – por todos os poros. De um Brasil, em suma, capaz de apurar a forma da convivência sem perder o fogo dos afetos. Uma nação que se educa e civiliza, mas preserva a chama da vitalidade iorubá filtrada pela ternura portuguesa. Uma nação que poupa, investe em seu futuro e cuida da previdência, mas nem por isso abre mão da disponibilidade tupi para a alegria e o folguedo.

Faz sentido a idéia de uma civilização brasileira?

Uma resposta afirmativa não precisa implicar qualquer tipo de arroubo xenófobo, rompante nacionalista ou furor colérico. O que ela implica é a identificação dos nossos valores e uma efetiva adesão a eles. O que ela implica é a recusa da crença de que não podemos ser originais, de que devemos nos resignar à condição de imitação modesta ou cópia empobrecida do modelo que nos é oferecido pelo “países ricos” – o chamado Primeiro Mundo. Esse modelo, é inegável, possui grandes méritos, mas o tempo vem revelando os seus graves limites, a começar pelos danos ambientais causados e ameaça ecológica que representa. As nações desenvolvidas, como alerta o poeta e pensador mexicano Octavio Paz, “giram incansavelmente no vazio: não avançam, se repetem [...] o seu hedonismo é a outra face do seu desespero; o seu ceticismo não é uma sabedoria mas uma renúncia; o seu niilismo desemboca no suicídio e em formas degradadas de crença; o seu erotismo é uma técnica, e não uma arte ou uma paixão”.

Sem visão de futuro não há futuro. A construção de uma civilização brasileira é tarefa da imaginação crítica e criadora – de uma antropofagia paciente, criteriosa e seletiva do que o mundo desenvolvido tem a nos oferecer: uma visão capaz do sonho, mas também do senso de realidade e da ponderação. Sob a luz austera do provável e do exequível a curto prazo, a visão de um Brasil que mereça ser sonhado pode parecer remota. Mas ela não é uma abstração vazia. A força do seu apelo anima de esperança o caminho e ilumina desde já o nosso horizonte imaginativo.

Sonhar alto – ousar o novo – é imprescindível. O futuro será o que fizermos dele. A consolidação de Marina Silva como liderança de expressão nacional nas eleições de 2010 representa um passo decisivo – uma ponte vital – no caminho rumo a um futuro que seja, a um só tempo, generoso no sonho e sabiamente construído na ação. A candidatura de Marina incorpora e projeta o ideal de uma civilização brasileira: uma nação redimida não perante o mundo, isso é decorrência, mas perante si mesma. Tupi and not tupi. Um Brasil feliz.