quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Alerta verde

Para pesquisador, o desmatamento da Amazônia pode levar à rápida desertificação da América do Sul e colocar em risco a economia e o equilíbrio biológico de todo o planeta.

Por José Ruy Gandra

Na próxima vez em que assistir ao Jornal Nacional, atente à previsão meteorológica. Caso a imagem do satélite traga aquela circulação tipo bumerangue cruzando transversalmente o continente, agradeça. Agradeça ainda mais caso você viva na região Sudeste do Brasil ou na Argentina. Segundo o pesquisador Antonio Donato Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazonia (INPA), não fosse pelas chuvas que essas nuvens trazem, em especial no verão, todo o quadrilátero contido entre as cidades de Cuiabá, São Paulo, Buenos Aires e a cordilheira dos Andes se tornaria, quase certamente, um deserto.

Segundo Nobre, isso só não acontece por duas razões: a presença dos Andes, cuja altura redireciona o vapor d’água vindo do Atlântico para sudeste (formando o tal bumerangue), e a evaporação causada pelas árvores da floresta Amazônica, que alimenta essa umidade, permitindo que ela chegue até os Andes, e mais adiante, sem dissipar-se pelo caminho. “A Amazônia é uma bomba hidrológica impressionante”, diz Nobre, que viveu 22 anos na região. “Ela lança diariamente 20 bilhões de toneladas de água na atmosfera, garantindo que uma área responsável por 70% do PIB sul-americano seja devidamente irrigada”.

O avanço do desmatamento, segundo Nobre, não põe em risco iminente apenas esse sistema que confere à América do Sul sua bem-vinda peculiaridade climática. “O desmate é responsável, sozinho, por 20% de todas as emissões humanas de gás carbônico”, afirma. Trata-se, portanto, de uma ameaça global. Entidades internacionais recomendam que 2% do PIB mundial devam ser imediatamente investidos em medidas contra o aquecimento. “Se isso não for feito”, diz Nobre, “em 2020 serão precisos 30% desse mesmo PIB somente para lidar com os custos das perdas ligadas a desastres ambientais”. Mesmo assim, de acordo com Nobre, nada vem sendo feito efetivamente. “A preservação da floresta não deve portanto se subordinar aos interesses do desenvolvimento e da economia, e sim o contrário. “Sem a manutenção desse delicado mas poderoso sistema de equilíbrio global, toda a economia irá fatalmente pro espaço”.

Atuando dentro do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em São José dos Campos, Nobre, 50 anos, agrônomo por formação, especialista em biologia tropical e doutorado em biogeoquímica pela Universidade de New Hampshire, concedeu uma longa entrevista à revista PIB, cujos principais trechos você lê a seguir. Nela, o pesquisador explica as singularidades de nosso regime climático, analisa a importância da Amazônia em seu funcionamento, condena a mentalidade autista do agro-negócio e, mais ainda, o imobilismo dos governos diante desse quadro. E adiciona uma agravante: “Ao desmatar a Amazônia, não queimamos árvores, mas sim uma biblioteca viva de altíssima tecnologia e valor incalculável”, diz.

A teoria de Hadley

Hoje a ciência sabe que o sistema biológico condiciona a atmosfera. Isso é novidade. Ela sempre considerou a biosfera um fator secundário e a atmosfera, o principal. Hoje sabemos que é exatamente o contrário. Que o oxigênio que respiramos vem das plantas, que nós não temos gases tóxicos na atmosfera por causa de inúmeros organismos que os filtram e que os ciclos das águas doce e salgada dependem diretamente da vegetação.

Hoje sabemos que, num processo sofisticadíssimo, que ocorre em nanoescala e no plano molecular, a fotossíntese é a principal responsável pela estabilidade climática do planeta Terra. A fotossíntese capta a energia solar e, através de reações químicas, libera oxigênio na atmosfera. Foi essa liberação que moldou a vida no planeta ao longo de seus 4 bilhões de anos. Nesse período, concentração de gás carbônico em nossa atmosfera passou de 95% para 0,039%. Para onde foi todo esse CO2? O que aconteceu nesse tempo?

Sem um poderoso mecanismo de regulação, teria sido impossível que a Terra hoje tivesse água líquida e que sua temperatura mantivesse uma variação desprezível em termos cosmológicos. Isso é uma raridade. A única explicação para esse fenômeno, hoje demonstrada, é a vida. Todos os organismos vivos têm um sistema sofisticado de equilíbrio. Se fora esquenta, eles esfriam; e vice versa. Esse sistema só a vida tem. Nada mais. E as florestas exercem nele um papel decisivo. Elas são o maior órgão terrestre de regulação. Elas têm mecanismos altamente complexos, que outros sistemas humanos, como a agricultura, não são capazes de emular.

Dito isto, olhe o mapa mundi. Nele, sempre numa faixa a 30 graus de latitude, estão os desertos. O Saara, o Sonoma, o Kalahari, o Atacama, os da Namíbia e da Austrália. Todos estão nessa mesma faixa de 30 graus. Por quê? Esse fato deve-se a um fenômeno chamado Circulação de Hadley. A parte equatorial do planeta recebe maior radiação solar, é mais quente, evapora muita água e provoca chuvas. Essas chuvas criam a seguinte circulação do ar: ele sobe na faixa do equador, perde umidade e chove. Quando desce na faixa dos 30 graus, já seco, ele consome a umidade da superfície e forma os desertos. Só há duas exceções a essa regra: o sul da China, região próxima ao Himalaia, e a fatia meridional da América do Sul.

Radiador verde

A América do Sul é diferente por dois fatores: os Andes e a floresta Amazônica. O ar, que nas zonas equatoriais sempre corre de leste para oeste, encontra a barreira andina, um paredão de 6 mil metros de altura. Ela impede que o vapor d’água vindo do Atlântico siga em frente. O ar úmido, então, faz uma curva para sudeste e, no verãovai despejando sua umidade sobre essas regiões – que, sem os Andes, seriam desérticas e sem vida econômica.

A floresta, o segundo fator, é ainda mais importante. Esse vento só consegue viajar por quase 5 mil quilômetros sobre a América do Sul, com umidade suficiente para formar nuvens e chuvas, porque as árvores da Amazônia recebem suas águas, sob a forma de chuvas, mas devolvem a maior parte à atmosfera através da transpiração. A Amazônia transpira 20 bilhões de toneladas de água por dia. É muita coisa. O Amazonas, o maior rio da Terra e responsável, sozinho, por 20% de toda água doce que chega aos oceanos, lança 17 bilhões de toneladas diárias de água no Atlântico.

É esse vapor criado pela floresta que acentua e prolonga a circulação úmida na America do Sul. A floresta funciona como um evaporador otimizado, pois suas folhas formam uma área de evaporação muito maior que a da própria superfície no solo. São 10 metros quadrados de folhas para cada metro quadrado de solo. Elas atuam como um radiador na dispersão da umidade. Além disso, essa massa de ar vinda do oceano não conseguiria manter sua umidade do Atlântico aos Andes e mais adiante sem o auxílio da floresta e de sua transpiração.

Se a Amazônia fosse uma região inteiramente agrícola, a massa de ar entraria no continente e choveria. Como não haveria vegetação densa o suficiente, pois o solo agrícola é mais ralo e exposto, essa água não voltaria para a atmosfera. Ela seria absorvida pela terra ou cairia nos rios, voltando ao Atlântico. Os ventos ficariam cada vez mais secos para dentro do continente, choveria cada vez menos e ocorreria a desertificação no interior.

A zona de impacto

A influência dessa transpiração da floresta, combinada à presença dos Andes, se manifesta no quadrilátero entre Cuiabá, São Paulo, Buenos Aires e os Andes. Sem a Amazônia, é muito provável que essa região, responsável por 70% do PIB da América do Sul, se transforme num deserto.

Mas isso não ocorreria de imediato. O primeiro efeito do desmatamento é um desequilíbrio que provoca o excesso alternado de chuvas e de secas. Isso já está acontecendo. Santa Catarina é um bom exemplo. No vale do Itajaí, chuvas mataram pessoas afogadas ou soterradas. Ao mesmo tempo, o oeste do estado experimentava uma seca brutal. A região noroeste do Rio Grande do Sul e o pampa úmido argentino, duas regiões agrícolas riquíssimas, já enfrentam quebras em sua produção. A falta de equilíbrio no sistema regulador está na origem da atual crise agrícola argentina. O país enfrenta uma seca incomum, que levou à falta de água em suas usinas hidroelétricas e, como conseqüência, à escassez de energia.

Se para a América do Sul a Amazônia é um coração que faz circular a umidade, para o mundo ela é um coração e também um fígado, pois processa e limpa o ar da atmosfera numa escala planetária. Estudos mostram que a floresta absorve uma parte considerável dos abusos que estão na origem do aquecimento global. A Amazônia é uma espécie de seguro da humanidade contra esses abusos, mas não é usada como tal.

O agro-autismo

Nossa agricultura é autista. Não é capaz de interagir socialmente. É como um autista savant, aquele que consegue desenvolver extraordinariamente uma única capacidade – mas tem todas as demais comprometidas. São os campos de soja deslumbrantes alcançados à custa de todo o equilíbrio biológico circundante. Nosso sistema estimula esse autismo; dá vitamina para ele. Explorar economicamente é o que interessa. O resto é obstáculo.

O Blairo Maggi (governador de Mato Grosso e um dos maiores produtores de soja do mundo) certa vez disse: “As pessoas precisam decidir se querem comida ou árvores”. Esse dilema é falso, pois, sem árvores, você não tem água, e, sem água, não tem comida. Cabeças assim acham que a floresta só ocupa espaço. Pura ignorância. Um tumor não sabe que é um tumor - e certa mentalidade do agronegócio no Brasil é um tumor que precisa ser removido. Economia e ecologia não são duas coisas diferentes. É preciso esclarecer que, se a floresta for desmatada, todo um gigantesco e delicadíssimo sistema de equilíbrio desmoronará e, com ele, a atividade econômica. Os brasileiros têm de saber que, se a água acabar na floresta, ela logo acabará também em outros lugares, como São Paulo ou Buenos Aires. Esse é papel da ciência, do qual não podemos abdicar.

A biomimética

A ecologia é a economia da natureza. Seus princípios e possibilidades tecnológicas podem impulsionar incrivelmente a economia humana. A Amazônia abriga um dos maiores mananciais de alta tecnologia jamais concebidos. No primeiro mundo há uma nova fronteira da engenharia chamada biomimética. Ela procura se inspirar nos processos naturais, a fim de copiá-los e implementá-los em soluções industriais. A natureza tem soluções tecnológicas incrivelmente sofisticadas. Um estudo da asa da borboleta Morfo, aquela grandona, azul-metálico iridiscente, descobriu que ela tem um cristal, chamado fotônico, que manipula a luz e a intensifica. Esse cristal é um amplificador ótico, hoje usado em fibras óticas para melhorar a transmissão de dados. A indústria automobilística pesquisa o revestimento das folhas de árvores para criar novas tintas que tornem os carros autolimpantes. Se na asa de uma borboleta há um sistema que vale bilhões de dólares, imagine então na floresta Amazônica inteira. A Nasa, a GE, a Boeing e muitas outras empresas já estão contratando a consultoria de biólogos para se apropriar desses conhecimentos. Quando desmatamos a Amazônia, não queimamos árvores, mas sim uma biblioteca viva e quase infinita de altíssima tecnologia.

O imobilismo

Quando os governos se vêem diante de um grave perigo, eles atuam com extrema rapidez. Quando os japoneses atacaram Pearl Harbour, os Estados Unidos entraram na guerra imediatamente. Quando a organização criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) espalhou a violência em São Paulo, o governo paulista colocou toda a polícia nas ruas. Quando a atual crise mundial eclodiu, no final do ano passado, uma semana depois uma série de medidas já estavam sendo tomadas para enfrentá-la. O estresse causado ao sistema climático terrestre é muito mais devastador e, no entanto, não gera respostas práticas. Se cerca de 15 bilhões de dólares fossem investidos anualmente nos agricultores, para que eles conservassem os biomas, em vez de destruí-los, todas as florestas tropicais do mundo poderiam ser salvas. Ao invés de desmatar, esses agricultores estariam prestando serviços ambientais, e recebendo por eles. Zerar o desmatamento da Amazônia, hoje, significaria reduzir em 20% todas as emissões humanas de gás carbônico. Isso teria um valor imenso no mercado de cotas de carbono que vem sendo discutido internacionalmente. Mas nada acontece, e o tempo continua correndo. O chamado Relatório Stern (coordenado pelo economista inglês Nicholas Stern, ex-vice-presidente do Banco Mundial) recomenda que 2% do PIB mundial sejam investidos em medidas contra o aquecimento. Se isso não for feito agora, diz o estudo, e a destruição seguir nesse ritmo, em 2020 serão necessários 30% desse mesmo PIB para que os danos possam ser revertidos. Como nenhuma medida é tomada, estamos numa situação pior que a dos passageiros do Titanic. Estamos navegando a toda velocidade na escuridão; só que num barquinho bem mais frágil, com a proa apontada diretamente para o iceberg.