quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Os riscos climáticos ao “maravilhoso planeta azul”


Encontro com especialista do Instituto de Pesquisas Espaciais, Antônio Donato Nobre, discute sistemas agroflorestais como alternativa de controle na evolução das alterações de temperatura do mundo.


Sem meias-palavras e por meio de comparações simples, fenômenos que a princípio parecem complexos podem ser traduzidos, simplificados, entendidos e, a partir daí - eis a palavra-chave – dialogados. E é lançando mão dessa fórmula – a fórmula da democratização do conhecimento – que o pesquisador Antônio Donato Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), resgata as referências individuais de mundo para disseminar o que cientistas por vezes preferem manter envolto em redomas academicistas.


Durante o VII Congresso Brasileiro de Sistemas Agroflorestais, Donato – que é engenheiro agrônomo, mestre em Biologia Tropical (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e PhD em Earth System Sciences (Biogeochemistry) pela University of New Hampshire – vai participar das rodas de diálogo e interação para falar sobre mudanças climáticas, um dos temas de maior destaque e causador de preocupação na pauta internacional. Como isso acontece - visto e explicado de uma forma diferente - é o que ele vai compartilhar com os demais participantes do evento, que começa dia 22 de junho em Luziânia (GO). Um pouco do que será conversado durante o encontro, Donato adiantou para esta entrevista.


Qual é a relação entre sistemas agroflorestais e as mudanças climáticas?


O sistema terrestre - a despeito de alterações profundas na composição de gases estufa na atmosfera e no considerável aumento de emissão do sol nos bilhões de anos desde sua formação - tem mantido seu clima de superfície de modo surpreendentemente estável. Se considerarmos ainda uma grande quantidade de outros fatores no metabolismo geológico do planeta, como vulcanismos, glaciações, etc., fica ainda mais difícil explicar por que os dois vizinhos cósmicos – Vênus, uma sauna sulfúrica ácida, e Marte, um freezer que cheira a ovo podre - não puderam desenvolver tal estabilidade extraordinária como a Terra.


Somente um fator distingue nosso planeta: a vida. Embora ainda não completamente contabilizada nos cálculos do IPCC, nem representada apropriadamente na maioria dos modelos matemáticos que lutam para predizer - como num oráculo computacional - o que vai acontecer no clima nas próximas décadas, a vida tem propriedades de autorregulação únicas, vide a própria temperatura corporal em nossos corpos, mantida nos 37 graus apesar das enormes variações de temperatura ambiental a que estamos submetidos continuamente.


Os elaboradíssimos processos da vida são verdadeiros termostatos inteligentes que respondem a flutuações nas condições climáticas com interferências ativas nos ciclos da água, do carbono e numa grande variedade de processos na superfície que resultam no maravilhoso e confortável planeta azul no qual vivemos.


Ora, a vida - diferentemente de moléculas de CO2 que fluem daqui para outra parte e de volta passivamente ao sabor dos ventos e das correntezas - existe somente nos organismos, superestruturas de carbono, cuja complexidade e sofisticação ainda permanece na sua maior parte desconhecida da humanidade. Este "carbono-vivo" nos organismos processa fluxos de matéria e energia que resultam na estabilização climática local e por decorrência, na somatória do efeito de todos os organismos na biosfera, para a manutenção do planeta habitável.


Onde estão os organismos? Anteriormente em todas as partes da superficie e próximos dela, compondo a densa biosfera. A biosfera intacta manteve sua função reguladora mesmo atravessando cataclismas naturais de grandes proporções. Com o surgimento da tecnociência e a enorme facilitação das engenharias, a humanidade passou a remover, destruir ou substituir os biomas por sistemas humanos, otimizados para suas finalidades específicas. Estas interferências nos "órgãos" do metabolismo climático planetário estão hoje sendo reconhecidas como fatores mais graves no presente curso de alteracões climáticas do que as emissões de poluentes por si mesmas.


Um exemplo acessível que ilustra o efeito da destruição de ecossistemas complexos na sua capacidade de condicionar o clima pode ser encontrado no caso de um alcoólatra que ingere uma substância tóxica, a qual seu fígado processa e expele num metabolismo complicado e custoso. O poluente tóxico análogo seriam os gases que liberamos na atmosfera, e o fígado análogo que poderia lidar com estes gases e recobrar o equilíbrio orgânico seriam os ecossistemas nativos.


Imagine-se um alcoólatra inveterado de quem se removessem pedaços do fígado (em nome do desenvolvimento). O que se passaria com sua capacidade para lidar com os tóxicos ingeridos? É isso que estamos sistematicamente e insensivelmente fazendo no planeta: removendo ou empobrecendo ecossistemas, destruindo-os ou degenerando-os das mais variadas formas.


Os sistemas agroflorestais são uma tentativa bem intencionada de enriquecer nossos sistemas agroecológicos de produção com maior biomassa, maior variedade de espécies, e - o que ainda tem sido pouco explorado - tentar reconstruir alguma capacidade original em termos de serviços ambientais, ou seja, permitir que os organismos ali cultivados possam, se não substituir, ao menos emular proximamente o papel desempenhado por seus homólogos nos ecossistemas nativos.


Como tal, os SAFs têm o potencial de ajudar, juntamente com processos diretos de reconstrução de ecossistemas, no combate urgentemente necessário aos poluentes atmosféricos que ameaçam entornar o caldo da orgulhosa civilização global. Mas para que os SAFs possam cumprir esta nova função é imperioso que agrônomos, agricultores, estudiosos e interessados se voltem para os fundamentos ecológicos e biogeofísicos que explicam a regulação planetária pela biosfera.


Neste sentido os povos nativos, que souberam guardar algo dos conhecimentos ancestrais de respeito à complexidade na natureza que tinham como sagrada certamente têm muito a nos ensinar. Diante do enorme desafio colocado para a sobrevivência planetária, surge a necessidade de articulação de toda sorte, associações de grande alcance que possam acelerar a aplicação do conhecimento na recuperação das vastíssimas áreas devastadas pela agricultura irresponsável e arrogante resultante do reducionismo patológico que tomou conta da maior parte das engenharias.


Qual é a influência das mudanças climáticas na produção de alimentos?


Climas extremos são a antítese da vida - vide Vênus e Marte, vide os locais da própria Terra onde as oscilações ou as condições médias são hostis ao desenvolvimento de plantas e animais. Todas as previsões, mesmo as mais otimistas, pintam quadros tétricos para o clima num futuro próximo. A menos que convertamos a produção de alimentos para a hidropônica, dessalinizemos a água do mar, e nos refugiemos em cavernas ou edifícios blindados, o futuro da produção de alimentos tem a cara do que já hoje ocorre em desertos: dificuldades muitas, enormes dificuldades.