artigo em O Globo por Bolívar Torres
RIO - Um dos convidados do colóquio "Os mil nomes de Gaia", que
acontece de 15 a 19 de setembro na Casa de Rui Barbosa, Antonio Nobre é o
que se pode chamar de "cientista da terra". Pesquisador titular do
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e pesquisador Visitante no
Centro de Ciência do Sistema Terrestre, do Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais, onde lidera o grupo de modelagem de terrenos, ele
estuda as interações entre as florestas e a atmosfera, mas também tem
desenvolvido, nos últimos anos, uma abordagem mais ampla do planeta.
Nobre, que participa da mesa-redonda, no dia 16 de setembro, às 10h30, com a filósofa belga Isabelle Stengers (criadora do conceito de "intrusão de Gaia") e o antropólogo mexicano Carlos Mondragón, acredita que a Amazônia se tornou um terreno de demonstração importante para uma reanálise da teoria neo-Darwinista da evolução, questionando a noção implícita de que o processo essencial da seleção natural embutia em si o "enobrecimento do egoísmo", que extrapolou a esfera da ciência e foi absorvida pela cultura, a economia e a ciência. Segundo o cientista, já está comprovado que a colaboração entre as espécies é mais importante para um sistema do que a competição - ideia que pode nortear uma nova maneira de pensar a preservação do meio ambiente e evitar um colapso ambiental.
O que se pode entender por Gaia?
Antonio Nobre. O
nome vem da denominação de povos antigos ao ente feminino que rege os
elementos da natureza na Terra. O conceito científico inspirado por tal
nome é descrito em uma teoria reveladora de um planeta complexo e
autorregulado, com a participação ativa (e maciça) dos seres vivos na
miríade de processos interconectados, geradores de bem-estar e
equilíbrio no habitat. A teoria de Gaia em seu início era apenas uma
hipótese, derivada da percepção de James Lovelock e Lynn Margulis de que
as condições encontradas na Terra se desviavam muito do que seria de se
esperar se forças puramente geofísicas e geoquímica agissem sozinhas
ao longo de bilhões de anos, como ocorre nos demais corpos celestes
cujas condições de superfície são conhecidas. Algo na Terra era
responsável por tais desvios, que a tornavam amena e favorável à vida. A
hipótese de Gaia sugeriu que a própria vida era esse algo a mais na
Terra, capaz de reagir ativamente às flutuações cataclísmicas de origem
interna ou cósmicas, regulando o ambiente de superfície e o otimizando
para favorecer seu próprio desenvolvimento. Quatro décadas depois a
hipótese já é respeitada como teoria, e o que antes era apenas sugestões
lógicas, hoje acumulou extensiva base de observações e elaborações
formais que lhe dão suporte. Tal teoria propõe e demonstra como a
biosfera, o conjunto de todos os seres vivos da Terra, interferem de
maneira reguladora no funcionamento do Sistema Terrestre, através da
manipulação não arbitrária dos fluxos de matéria e energia.
Nobre, que participa da mesa-redonda, no dia 16 de setembro, às 10h30, com a filósofa belga Isabelle Stengers (criadora do conceito de "intrusão de Gaia") e o antropólogo mexicano Carlos Mondragón, acredita que a Amazônia se tornou um terreno de demonstração importante para uma reanálise da teoria neo-Darwinista da evolução, questionando a noção implícita de que o processo essencial da seleção natural embutia em si o "enobrecimento do egoísmo", que extrapolou a esfera da ciência e foi absorvida pela cultura, a economia e a ciência. Segundo o cientista, já está comprovado que a colaboração entre as espécies é mais importante para um sistema do que a competição - ideia que pode nortear uma nova maneira de pensar a preservação do meio ambiente e evitar um colapso ambiental.
O que se pode entender por Gaia?
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Comprovar cientificamente a ideia de que o individualismo e o egoísmo cumprem um papel de regulação na Terra teria sido uma obsessão
do século XX?
Antonio Nobre. Como esta ideia norteou a ciência e a nossa concepção de ecossistema? Infelizmente, na progressão explosiva dos últimos cinco séculos, pós-liberação do indigno jugo religioso-inquisitório, a ciência se fragmentou e algumas percepções isoladas e incompletas dos processos naturais hipertrofiaram-se querendo abarcar o todo. A noção implícita de que o processo essencial da seleção natural embutia em si o "enobrecimento do egoísmo" foi um erro grave que bloqueou a visão de outros processos essenciais para o funcionamento do conjunto. Muito bom percebermos o valor intrínseco da seleção natural, mas ruim que esse valor tenha inflado o crescimento de um novo tipo de dogmatismo que não admite nada fora do seu arcabouço conceitual estreito. E aí funcionou de maneira anômala um principio que, em geral, é útil, a navalha de Occam (Guilherme de Ockham: "Se em tudo o mais forem idênticas as várias explicações de um fenômeno, a mais simples é a melhor"). A explicação da seleção natural para a variedade de organismos era sem dúvida melhor do que as explicações anteriores, mas ela não era idêntica em tudo o mais com explicações que viriam depois. Vasto campo de complexidade, invisível antes do surgimento da biologia molecular, permaneceu ignorado no auge do desenvolvimento do Darwinismo. E suspeita-se que parte maior da complexidade bioquímica na base do funcionamento dos sistemas vivos ainda permaneça oculta. Por exemplo, a explicação mais simples, como aquela na base da teoria da evolução baseada apenas nos mecanismos demonstrados da seleção natural, não dá conta de clarificar o papel da vida na regulação do ambiente planetário. Ademais, existem explicações simplíssimas ilustrando o papel central da colaboração na evolução de complexidade, que são rejeitadas apenas porque não batem com o que tornou-se um dogma excludente, o da competição e da sobrevivência do mais apto.
Podemos comprovar cientificamente que a colaboração é tão importante quanto a competição na regulação do planeta?
Antonio Nobre. A explicação da necessidade inescapável para efeitos regulatórios é dada com uma analogia ao surf. Surfar a onda dá vantagem a quem sabe se colocar e tirar da onda proveito. Mas não muda em nada o funcionamento da própria onda. Se a cada mudança ambiental os organismos e ecossistemas "surfassem" para seu próprio beneficio, -como preconiza a percepção estreita da seleção natural e da sobrevivência do mais apto-, o efeito seria uma incapacidade absoluta para resistir à propria mudança ambiental. As novas formas surgidas com o novo ambiente, estando adaptadas ao novo e excluindo as formas anteriores, não terão qualquer efeito estabilizador. Estabilidade requer opor resistência à mudança, como faz o termostato de um ar condicionado. A competição, importante como mecanismo de segurança (quando falham todos os demais mecanismos de colaboração, ela é salvadora), assume papel restrito nos processos regulatórios, justamente porque é desestabilizadora (o ganhador leva tudo). Quanto mais rico e complexo um sistema, menor o papel da competição e maior o da colaboração. Tem aí um principio organizador básico, análogo ao descrito pelos trabalhos de John Nash no surgimento de equilíbrio entre competição e colaboração (Teoria de Jogos).
Como o establishment reage a esta teoria?
Antonio Nobre. O establishment reage como sempre reagiu, da forma descrita por Thomas Kuhn em seu épico "A estrutura das revoluções científicas". Mas o novo paradigma já está bastante maduro e substanciado, me parece que breve passaremos pelo ponto de inflexão onde os conceitos da seleção natural e da sobrevivência do mais apto serão finalmente creditados por seu valor real, não aquele inflado e dogmático de até recentemente.
Por que o mundo ainda tem tanta dificuldade de ver as relações entre meio ambiente, ciência e tecnologia?
Antonio Nobre. Porque o meio ambiente opera em escalas de espaço (átomos, moléculas, continentes, oceanos, etc.) e tempo (fenômenos quânticos, dinâmicas moleculares, intervalos de milênios, milhões e bilhões de anos) difíceis para visualizar e captar pelos sentidos comuns do ser humano. Acrescente-se aí para a vida o automatismo (tudo funciona sem intervenções humanas) e então a máxima ocidental de que "o coração não sente o que os olhos não veem" explica porque permanecemos inertes diante da grandiosidade destes fenômenos que nos permitiram existir e que continuam a nos suportar. Isso para o senso comum, para os leigos nas sociedades humanas. Mais injustificável é quem lida com ciência e tecnologia, que tem estendido enormemente nossos sentidos, não traduzir para as pessoas normais o que lhes é facultado ver e perceber sobre o ambiente com suas ferramentas. E a razão única para tal dificuldade reside na competição desagregadora, onde cada cabeça "mais apta" isola-se mais e mais em seu campo de domínio, ignorando as demais que lhe desafiam.
A cada encontro internacional, há um consenso de que os movimentos de colaboração necessários para impedir um provável colapso ambiental não evoluem. Quais são os caminhos para mudar esta história?
Antonio Nobre. É urgente que a colaboração surja nas ciências e tecnologias, permitindo uma união do conhecimento, esclarecedora e simplificadora, que
crie uma nova compreensão acessível sobre o mundo e seus intrincados
processos de suporte à vida. Em outro estudo que fiz (O futuro climático
da Amazônia) sugiro um esforço de guerra no combate à principal causa
do descaminho ambiental, a "ignorância". É a ignorância que maneja os
sistemas humanos em escala planetária, nos governos, nas empresas, em
cada pessoa, e ela precisa ceder se queremos impedir o provável colapso.
O melhor caminho para mudar essa historia é reabilitar o senso comum
amplo através da contação de historias reais com o toque lúdico, tocar o
emocional das pessoas com o estimulo ao senso infantil de
maravilhar-se. É preciso despertar nossos corações, de onde saem os
impulsos para a ação. A ciência e a tecnologia moderna nos colocou nas
mãos de microscópios, telescópios, satélites, supercomputadores e uma
infinidade mirabolante de outros instrumentos poderosos, com os quais
podemos fazer nossos olhos finalmente verem tudo que há no mundo,
pequeno e gigantesco, rápido e ultra lento.Antonio Nobre. Como esta ideia norteou a ciência e a nossa concepção de ecossistema? Infelizmente, na progressão explosiva dos últimos cinco séculos, pós-liberação do indigno jugo religioso-inquisitório, a ciência se fragmentou e algumas percepções isoladas e incompletas dos processos naturais hipertrofiaram-se querendo abarcar o todo. A noção implícita de que o processo essencial da seleção natural embutia em si o "enobrecimento do egoísmo" foi um erro grave que bloqueou a visão de outros processos essenciais para o funcionamento do conjunto. Muito bom percebermos o valor intrínseco da seleção natural, mas ruim que esse valor tenha inflado o crescimento de um novo tipo de dogmatismo que não admite nada fora do seu arcabouço conceitual estreito. E aí funcionou de maneira anômala um principio que, em geral, é útil, a navalha de Occam (Guilherme de Ockham: "Se em tudo o mais forem idênticas as várias explicações de um fenômeno, a mais simples é a melhor"). A explicação da seleção natural para a variedade de organismos era sem dúvida melhor do que as explicações anteriores, mas ela não era idêntica em tudo o mais com explicações que viriam depois. Vasto campo de complexidade, invisível antes do surgimento da biologia molecular, permaneceu ignorado no auge do desenvolvimento do Darwinismo. E suspeita-se que parte maior da complexidade bioquímica na base do funcionamento dos sistemas vivos ainda permaneça oculta. Por exemplo, a explicação mais simples, como aquela na base da teoria da evolução baseada apenas nos mecanismos demonstrados da seleção natural, não dá conta de clarificar o papel da vida na regulação do ambiente planetário. Ademais, existem explicações simplíssimas ilustrando o papel central da colaboração na evolução de complexidade, que são rejeitadas apenas porque não batem com o que tornou-se um dogma excludente, o da competição e da sobrevivência do mais apto.
Podemos comprovar cientificamente que a colaboração é tão importante quanto a competição na regulação do planeta?
Antonio Nobre. A explicação da necessidade inescapável para efeitos regulatórios é dada com uma analogia ao surf. Surfar a onda dá vantagem a quem sabe se colocar e tirar da onda proveito. Mas não muda em nada o funcionamento da própria onda. Se a cada mudança ambiental os organismos e ecossistemas "surfassem" para seu próprio beneficio, -como preconiza a percepção estreita da seleção natural e da sobrevivência do mais apto-, o efeito seria uma incapacidade absoluta para resistir à propria mudança ambiental. As novas formas surgidas com o novo ambiente, estando adaptadas ao novo e excluindo as formas anteriores, não terão qualquer efeito estabilizador. Estabilidade requer opor resistência à mudança, como faz o termostato de um ar condicionado. A competição, importante como mecanismo de segurança (quando falham todos os demais mecanismos de colaboração, ela é salvadora), assume papel restrito nos processos regulatórios, justamente porque é desestabilizadora (o ganhador leva tudo). Quanto mais rico e complexo um sistema, menor o papel da competição e maior o da colaboração. Tem aí um principio organizador básico, análogo ao descrito pelos trabalhos de John Nash no surgimento de equilíbrio entre competição e colaboração (Teoria de Jogos).
Como o establishment reage a esta teoria?
Antonio Nobre. O establishment reage como sempre reagiu, da forma descrita por Thomas Kuhn em seu épico "A estrutura das revoluções científicas". Mas o novo paradigma já está bastante maduro e substanciado, me parece que breve passaremos pelo ponto de inflexão onde os conceitos da seleção natural e da sobrevivência do mais apto serão finalmente creditados por seu valor real, não aquele inflado e dogmático de até recentemente.
Antonio Nobre. Porque o meio ambiente opera em escalas de espaço (átomos, moléculas, continentes, oceanos, etc.) e tempo (fenômenos quânticos, dinâmicas moleculares, intervalos de milênios, milhões e bilhões de anos) difíceis para visualizar e captar pelos sentidos comuns do ser humano. Acrescente-se aí para a vida o automatismo (tudo funciona sem intervenções humanas) e então a máxima ocidental de que "o coração não sente o que os olhos não veem" explica porque permanecemos inertes diante da grandiosidade destes fenômenos que nos permitiram existir e que continuam a nos suportar. Isso para o senso comum, para os leigos nas sociedades humanas. Mais injustificável é quem lida com ciência e tecnologia, que tem estendido enormemente nossos sentidos, não traduzir para as pessoas normais o que lhes é facultado ver e perceber sobre o ambiente com suas ferramentas. E a razão única para tal dificuldade reside na competição desagregadora, onde cada cabeça "mais apta" isola-se mais e mais em seu campo de domínio, ignorando as demais que lhe desafiam.
A cada encontro internacional, há um consenso de que os movimentos de colaboração necessários para impedir um provável colapso ambiental não evoluem. Quais são os caminhos para mudar esta história?