José Ruy Gandra
A
bomba hidrológica: a corrente de ventos, desviada pelos Andes, carrega
as nuvens úmidas da Amazônia para fazer chover nas terras férteis do
Centro-Sul brasileiro e no pampa argentino
Na
próxima vez que assistir ao Jornal Nacional, atente para a previsão
meteorológica. Caso a imagem do satélite traga aquela circulação tipo
bumerangue cruzando transversalmente o continente, agradeça. Agradeça
ainda mais caso você viva no sudeste do Brasil ou na Argentina.
Segundo o pesquisador Antonio Donato Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), não fosse pelas chuvas que essas nuvens trazem, em especial no verão, todo o quadrilátero demarcado por Cuiabá, São Paulo, Buenos Aires e a cordilheira dos Andes se tornaria, quase certamente, um deserto.
Para Nobre, isso só não acontece por duas razões: a presença dos Andes, cuja altura redireciona o vapor d’água vindo do Atlântico para Sudeste (formando o tal bumerangue), e a evaporação causada pelas árvores da floresta amazônica, que alimenta essa umidade, permitindo que chegue até os Andes e mais adiante, sem se dissipar pelo caminho.
>> Ameaça global
“A Amazônia é uma bomba hidrológica impressionante”, diz Nobre, que viveu 22 anos na região. “Lança diariamente 20 bilhões de toneladas de água na atmosfera, garantindo que uma área responsável por 70% do PIB sul-americano seja devidamente irrigada.”
O avanço do desmatamento, segundo Nobre, não põe em risco iminente apenas esse sistema que confere à América do Sul sua benvinda peculiaridade climática. “O desmate é responsável, sozinho, por 20% de todas as emissões humanas de gás carbônico”, afirma.
Trata-se, portanto, de uma ameaça global. Entidades internacionais recomendam que 2% do PIB mundial seja imediatamente investido em medidas contra o aquecimento. “Se isso não for feito”, diz Nobre, “em 2020 serão necessários 30% desse mesmo PIB somente para lidar com os custos das perdas ligadas a desastres ambientais.”
Mesmo assim, de acordo com Nobre, nada vem sendo feito efetivamente. “A preservação da floresta não deve se subordinar aos interesses do desenvolvimento e da economia, e sim o contrário”, afirma o pesquisador. “Sem a manutenção desse delicado mas poderoso sistema de equilíbrio global, toda a economia irá fatalmente pro espaço.”
Atuando dentro do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em São José dos Campos, Nobre, 50 anos, agrônomo por formação, especialista em biologia tropical e doutorado em biogeoquímica pela Universidade de New Hampshire, concedeu uma longa entrevista à PIB, cujos principais trechos você lê a seguir.
Nela, o pesquisador explica as singularidades de nosso regime climático, analisa a importância da Amazônia em seu funcionamento, condena a mentalidade autista do agronegócio e, mais ainda, o imobilismo dos governos. E adiciona uma agravante: “Ao desmatar a Amazônia, não queimamos árvores, mas sim uma biblioteca viva de altíssima tecnologia e valor incalculável”.
>> A vida regula o clima
“Hoje a ciência começa a aceitar que o sistema biológico condiciona a atmosfera. Isso é novidade.
A meteorologia sempre considerou a biosfera um fator secundário e a atmosfera, o principal. Mas todo oxigênio que respiramos veio das plantas; não temos gases tóxicos na atmosfera graças a inúmeros organismos que os removem; e a manutenção equilibrada do ciclo da água nos continentes depende diretamente dos organismos.
Sabemos que, num processo sofisticadíssimo que ocorre em nanoescala, no nível das moléculas, a fotossíntese é o mecanismo primordial de estabilização climática da Terra. Na fotossíntese, a energia solar é captada e, através de reações químicas, remove gás carbônico da atmosfera e libera oxigênio.
Foi essa troca de gases que moldou a vida e a evolução dos ambientes no planeta ao longo de seus 4 bilhões de anos. Nesse período, a concentração de gás carbônico em nossa atmosfera passou de 95% para 0,039%.
Para onde foi todo esse CO2? O que aconteceu nesse tempo? Sem um poderoso mecanismo de regulação, teria sido impossível que a Terra hoje tivesse água líquida na superfície e que sua temperatura mantivesse uma variação confortável para a vida, uma raridade em termos cosmológicos.
A única explicação para esse fenômeno é a vida. Todos os organismos vivos têm um sistema sofisticado de equilíbrio e autorregulação. Se fora esquenta, eles esfriam, e vice-versa.
Essa capacidade só a vida tem. E as florestas exercem no sistema planetário um papel decisivo. São o maior órgão terrestre de regulação. Têm mecanismos altamente complexos e eficientes, que outros sistemas humanos, como a agricultura, não são capazes de emular.
Dito isso, olhe o mapa-múndi. Nele, sempre na mesma faixa a 30 graus de latitude, em ambos os hemisférios, estão os desertos. O Saara, o Sonoma, o Kalahari, o Atacama, os da Namíbia e da Austrália.
Por quê? Esse fato deve-se a um fenômeno chamado Circulação de Hadley. A parte equatorial do planeta recebe maior radiação solar, é mais quente, evapora muita água e provoca chuvas. Em outras palavras, o ar sobe na faixa do equador, perde umidade e chove.
Quando desce na faixa dos 30 graus, já seco, ele consome a umidade da superfície e contribui na formação dos desertos. Só há duas exceções a essa regra: o sul da China, região próxima ao Himalaia, e a fatia meridional da América do Sul.
>> O radiador verde
A América do Sul é diferente por dois fatores: os Andes e a floresta amazônica. O ar, que nas zonas equatoriais sempre corre de leste para oeste, encontra a barreira andina, um paredão de 6 mil metros de altura.
Ela impede que o ar rico em vapor d’água vindo do Atlântico siga em frente. Esse ar úmido, então, faz uma curva para sudeste e, no verão, vai despejando sua umidade sobre essas regiões – que, sem os Andes, seriam desérticas e sem vida econômica.
A floresta, o segundo fator, é ainda mais importante. Esse vento só consegue viajar por quase 5 mil quilômetros sobre a América do Sul, com umidade suficiente para formar nuvens e chuvas, porque as árvores da Amazônia recebem suas águas, sob a forma de chuvas, mas devolvem a maior parte à atmosfera através da transpiração.
A Amazônia transpira 20 bilhões de toneladas de água por dia. É muita coisa. O Amazonas, o maior rio da Terra e responsável, sozinho, por 20% de toda água doce que chega aos oceanos, lança 17 bilhões de toneladas diárias de água no Atlântico.
É esse vapor criado pela floresta que acentua e prolonga a circulação úmida na América do Sul. A floresta funciona como um evaporador otimizado, pois suas folhas formam uma área de evaporação muito maior que a da própria superfície no solo.
São 10 metros quadrados de folhas para cada metro quadrado de solo. Elas atuam como um radiador na dispersão da umidade. Sem esse auxílio da floresta e de sua transpiração, a massa de ar vinda do oceano não conseguiria manter sua umidade do Atlântico aos Andes e mais adiante.
Se a Amazônia fosse uma região inteiramente agrícola, a massa de ar entraria no continente e choveria. Como não haveria vegetação densa o suficiente, pois o solo agrícola é mais ralo e exposto, essa água não voltaria para a atmosfera.
Seria absorvida pela terra ou mais provavelmente cairia nos rios, voltando ao Atlântico. Os ventos ficariam cada vez mais secos para dentro do continente, choveria cada vez menos e ocorreria a desertificação no interior.
>> De celeiro a deserto
A influência dessa transpiração da floresta, combinada à presença dos Andes, se manifesta no quadrilátero entre Cuiabá, São Paulo, Buenos Aires e os Andes.
Sem a Amazônia, é muito provável que essa região, responsável por 70% do PIB da América do Sul, se transforme num deserto. Mas isso não ocorreria de imediato.
O primeiro efeito do desmatamento é um desequilíbrio que provoca o excesso alternado de chuvas e de secas. Isso já está acontecendo. Santa Catarina é um bom exemplo. No vale do Itajaí, chuvas mataram pessoas afogadas ou soterradas. Ao mesmo tempo, o oeste do estado experimentava uma seca brutal.
O noroeste do Rio Grande do Sul e o pampa úmido argentino, duas regiões agrícolas riquíssimas, já enfrentam quebras em sua produção. A falta de equilíbrio no sistema regulador é uma das causas da atual crise agrícola argentina. O país enfrentou uma seca incomum, que levou também à falta de água em suas usinas hidrelétricas e, como consequência, à escassez de energia.
Se para a América do Sul a Amazônia é um coração que faz circular a umidade, para o mundo ela é um coração e também um fígado, pois processa e limpa o ar da atmosfera numa escala planetária.
Estudos mostram que a floresta absorve uma parte considerável dos abusos nas emissões de gases que estão na origem do aquecimento global. A Amazônia é uma espécie de seguro da humanidade contra esses abusos, mas não é usada como tal.
>> O agroautismo
Nossa agricultura não parece ser capaz de interagir socialmente. É como um autista savant, aquele que consegue desenvolver extraordinariamente uma única capacidade – mas tem todas as demais comprometidas.
São os campos de soja vigorosos e deslumbrantes, alcançados à custa de todo o equilíbrio biológico circundante. Nosso sistema estimula esse autismo; dá vitamina a ele. Explorar economicamente é o que interessa. O resto é obstáculo.
O Blairo Maggi (governador de Mato Grosso e um dos maiores produtores de soja do mundo) certa vez disse: “As pessoas precisam decidir se querem comida ou árvores”. Esse dilema é falso, pois, sem árvores, você não tem água, e, sem água, não tem comida. Cabeças assim acham que a floresta só ocupa espaço. Isso me parece pura ignorância.
Um tumor cancerígeno faz o melhor que pode em seu desespero para crescer, não sabe que é mau – e certa mentalidade do agronegócio no Brasil é um tumor que precisa ser removido.
Economia e ecologia não são coisas diferentes. É preciso esclarecer que, se a floresta for desmatada, todo um gigantesco e delicadíssimo sistema de equilíbrio desmoronará e, com ele, a atividade econômica.
Os brasileiros têm de saber que, se a água acabar na floresta, logo acabará também em outros lugares, como São Paulo ou Buenos Aires. Esse alerta é papel da ciência, do qual não podemos abdicar.
>> A biomimética
A ecologia é a economia da natureza. Seus princípios e possibilidades tecnológicas podem impulsionar incrivelmente a economia humana. A Amazônia abriga um dos maiores mananciais de alta tecnologia jamais concebidos.
No Primeiro Mundo há uma nova fronteira da engenharia chamada biomimética. Ela procura se inspirar nos processos naturais, a fim de copiá-los e implementá-los em soluções industriais. A natureza tem soluções tecnológicas sofisticadíssimas.
Um estudo da asa da borboleta morfo, aquela grandona, azul-metálico iridescente, descobriu que ela manipula a luz com um cristal orgânico, que é também um amplificador ótico. O mesmo princípio desse cristal pode ser copiado e implementado em fibras óticas para melhorar a transmissão de dados.
A indústria automobilística pesquisa o revestimento das folhas de árvores para criar novas tintas que tornem os carros autolimpantes. Se numa simples asa de borboleta há um sistema tecnológico que vale bilhões de dólares, imagine então na floresta amazônica inteira.
A Nasa, a GE, a Boeing e muitas outras empresas já estão contratando a consultoria de biólogos para se apropriar desses conhecimentos. Quando desmatamos a Amazônia, não queimamos árvores, mas sim liquidamos para sempre uma biblioteca viva de altíssima tecnologia.
>> De proa para o iceberg
Quando os governos se veem diante de um grave perigo, atuam com extrema rapidez.
Quando os japoneses atacaram Pearl Harbour, os Estados Unidos entraram na guerra imediatamente. Quando a organização criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) espalhou a violência em São Paulo, o governo paulista colocou toda a polícia nas ruas.
Segundo o pesquisador Antonio Donato Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), não fosse pelas chuvas que essas nuvens trazem, em especial no verão, todo o quadrilátero demarcado por Cuiabá, São Paulo, Buenos Aires e a cordilheira dos Andes se tornaria, quase certamente, um deserto.
Para Nobre, isso só não acontece por duas razões: a presença dos Andes, cuja altura redireciona o vapor d’água vindo do Atlântico para Sudeste (formando o tal bumerangue), e a evaporação causada pelas árvores da floresta amazônica, que alimenta essa umidade, permitindo que chegue até os Andes e mais adiante, sem se dissipar pelo caminho.
>> Ameaça global
“A Amazônia é uma bomba hidrológica impressionante”, diz Nobre, que viveu 22 anos na região. “Lança diariamente 20 bilhões de toneladas de água na atmosfera, garantindo que uma área responsável por 70% do PIB sul-americano seja devidamente irrigada.”
O avanço do desmatamento, segundo Nobre, não põe em risco iminente apenas esse sistema que confere à América do Sul sua benvinda peculiaridade climática. “O desmate é responsável, sozinho, por 20% de todas as emissões humanas de gás carbônico”, afirma.
Trata-se, portanto, de uma ameaça global. Entidades internacionais recomendam que 2% do PIB mundial seja imediatamente investido em medidas contra o aquecimento. “Se isso não for feito”, diz Nobre, “em 2020 serão necessários 30% desse mesmo PIB somente para lidar com os custos das perdas ligadas a desastres ambientais.”
Mesmo assim, de acordo com Nobre, nada vem sendo feito efetivamente. “A preservação da floresta não deve se subordinar aos interesses do desenvolvimento e da economia, e sim o contrário”, afirma o pesquisador. “Sem a manutenção desse delicado mas poderoso sistema de equilíbrio global, toda a economia irá fatalmente pro espaço.”
Atuando dentro do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em São José dos Campos, Nobre, 50 anos, agrônomo por formação, especialista em biologia tropical e doutorado em biogeoquímica pela Universidade de New Hampshire, concedeu uma longa entrevista à PIB, cujos principais trechos você lê a seguir.
Nela, o pesquisador explica as singularidades de nosso regime climático, analisa a importância da Amazônia em seu funcionamento, condena a mentalidade autista do agronegócio e, mais ainda, o imobilismo dos governos. E adiciona uma agravante: “Ao desmatar a Amazônia, não queimamos árvores, mas sim uma biblioteca viva de altíssima tecnologia e valor incalculável”.
>> A vida regula o clima
“Hoje a ciência começa a aceitar que o sistema biológico condiciona a atmosfera. Isso é novidade.
A meteorologia sempre considerou a biosfera um fator secundário e a atmosfera, o principal. Mas todo oxigênio que respiramos veio das plantas; não temos gases tóxicos na atmosfera graças a inúmeros organismos que os removem; e a manutenção equilibrada do ciclo da água nos continentes depende diretamente dos organismos.
Sabemos que, num processo sofisticadíssimo que ocorre em nanoescala, no nível das moléculas, a fotossíntese é o mecanismo primordial de estabilização climática da Terra. Na fotossíntese, a energia solar é captada e, através de reações químicas, remove gás carbônico da atmosfera e libera oxigênio.
Foi essa troca de gases que moldou a vida e a evolução dos ambientes no planeta ao longo de seus 4 bilhões de anos. Nesse período, a concentração de gás carbônico em nossa atmosfera passou de 95% para 0,039%.
Para onde foi todo esse CO2? O que aconteceu nesse tempo? Sem um poderoso mecanismo de regulação, teria sido impossível que a Terra hoje tivesse água líquida na superfície e que sua temperatura mantivesse uma variação confortável para a vida, uma raridade em termos cosmológicos.
A única explicação para esse fenômeno é a vida. Todos os organismos vivos têm um sistema sofisticado de equilíbrio e autorregulação. Se fora esquenta, eles esfriam, e vice-versa.
Essa capacidade só a vida tem. E as florestas exercem no sistema planetário um papel decisivo. São o maior órgão terrestre de regulação. Têm mecanismos altamente complexos e eficientes, que outros sistemas humanos, como a agricultura, não são capazes de emular.
Dito isso, olhe o mapa-múndi. Nele, sempre na mesma faixa a 30 graus de latitude, em ambos os hemisférios, estão os desertos. O Saara, o Sonoma, o Kalahari, o Atacama, os da Namíbia e da Austrália.
Por quê? Esse fato deve-se a um fenômeno chamado Circulação de Hadley. A parte equatorial do planeta recebe maior radiação solar, é mais quente, evapora muita água e provoca chuvas. Em outras palavras, o ar sobe na faixa do equador, perde umidade e chove.
Quando desce na faixa dos 30 graus, já seco, ele consome a umidade da superfície e contribui na formação dos desertos. Só há duas exceções a essa regra: o sul da China, região próxima ao Himalaia, e a fatia meridional da América do Sul.
>> O radiador verde
A América do Sul é diferente por dois fatores: os Andes e a floresta amazônica. O ar, que nas zonas equatoriais sempre corre de leste para oeste, encontra a barreira andina, um paredão de 6 mil metros de altura.
Ela impede que o ar rico em vapor d’água vindo do Atlântico siga em frente. Esse ar úmido, então, faz uma curva para sudeste e, no verão, vai despejando sua umidade sobre essas regiões – que, sem os Andes, seriam desérticas e sem vida econômica.
A floresta, o segundo fator, é ainda mais importante. Esse vento só consegue viajar por quase 5 mil quilômetros sobre a América do Sul, com umidade suficiente para formar nuvens e chuvas, porque as árvores da Amazônia recebem suas águas, sob a forma de chuvas, mas devolvem a maior parte à atmosfera através da transpiração.
A Amazônia transpira 20 bilhões de toneladas de água por dia. É muita coisa. O Amazonas, o maior rio da Terra e responsável, sozinho, por 20% de toda água doce que chega aos oceanos, lança 17 bilhões de toneladas diárias de água no Atlântico.
É esse vapor criado pela floresta que acentua e prolonga a circulação úmida na América do Sul. A floresta funciona como um evaporador otimizado, pois suas folhas formam uma área de evaporação muito maior que a da própria superfície no solo.
São 10 metros quadrados de folhas para cada metro quadrado de solo. Elas atuam como um radiador na dispersão da umidade. Sem esse auxílio da floresta e de sua transpiração, a massa de ar vinda do oceano não conseguiria manter sua umidade do Atlântico aos Andes e mais adiante.
Se a Amazônia fosse uma região inteiramente agrícola, a massa de ar entraria no continente e choveria. Como não haveria vegetação densa o suficiente, pois o solo agrícola é mais ralo e exposto, essa água não voltaria para a atmosfera.
Seria absorvida pela terra ou mais provavelmente cairia nos rios, voltando ao Atlântico. Os ventos ficariam cada vez mais secos para dentro do continente, choveria cada vez menos e ocorreria a desertificação no interior.
>> De celeiro a deserto
A influência dessa transpiração da floresta, combinada à presença dos Andes, se manifesta no quadrilátero entre Cuiabá, São Paulo, Buenos Aires e os Andes.
Sem a Amazônia, é muito provável que essa região, responsável por 70% do PIB da América do Sul, se transforme num deserto. Mas isso não ocorreria de imediato.
O primeiro efeito do desmatamento é um desequilíbrio que provoca o excesso alternado de chuvas e de secas. Isso já está acontecendo. Santa Catarina é um bom exemplo. No vale do Itajaí, chuvas mataram pessoas afogadas ou soterradas. Ao mesmo tempo, o oeste do estado experimentava uma seca brutal.
O noroeste do Rio Grande do Sul e o pampa úmido argentino, duas regiões agrícolas riquíssimas, já enfrentam quebras em sua produção. A falta de equilíbrio no sistema regulador é uma das causas da atual crise agrícola argentina. O país enfrentou uma seca incomum, que levou também à falta de água em suas usinas hidrelétricas e, como consequência, à escassez de energia.
Se para a América do Sul a Amazônia é um coração que faz circular a umidade, para o mundo ela é um coração e também um fígado, pois processa e limpa o ar da atmosfera numa escala planetária.
Estudos mostram que a floresta absorve uma parte considerável dos abusos nas emissões de gases que estão na origem do aquecimento global. A Amazônia é uma espécie de seguro da humanidade contra esses abusos, mas não é usada como tal.
>> O agroautismo
Nossa agricultura não parece ser capaz de interagir socialmente. É como um autista savant, aquele que consegue desenvolver extraordinariamente uma única capacidade – mas tem todas as demais comprometidas.
São os campos de soja vigorosos e deslumbrantes, alcançados à custa de todo o equilíbrio biológico circundante. Nosso sistema estimula esse autismo; dá vitamina a ele. Explorar economicamente é o que interessa. O resto é obstáculo.
O Blairo Maggi (governador de Mato Grosso e um dos maiores produtores de soja do mundo) certa vez disse: “As pessoas precisam decidir se querem comida ou árvores”. Esse dilema é falso, pois, sem árvores, você não tem água, e, sem água, não tem comida. Cabeças assim acham que a floresta só ocupa espaço. Isso me parece pura ignorância.
Um tumor cancerígeno faz o melhor que pode em seu desespero para crescer, não sabe que é mau – e certa mentalidade do agronegócio no Brasil é um tumor que precisa ser removido.
Economia e ecologia não são coisas diferentes. É preciso esclarecer que, se a floresta for desmatada, todo um gigantesco e delicadíssimo sistema de equilíbrio desmoronará e, com ele, a atividade econômica.
Os brasileiros têm de saber que, se a água acabar na floresta, logo acabará também em outros lugares, como São Paulo ou Buenos Aires. Esse alerta é papel da ciência, do qual não podemos abdicar.
>> A biomimética
A ecologia é a economia da natureza. Seus princípios e possibilidades tecnológicas podem impulsionar incrivelmente a economia humana. A Amazônia abriga um dos maiores mananciais de alta tecnologia jamais concebidos.
No Primeiro Mundo há uma nova fronteira da engenharia chamada biomimética. Ela procura se inspirar nos processos naturais, a fim de copiá-los e implementá-los em soluções industriais. A natureza tem soluções tecnológicas sofisticadíssimas.
Um estudo da asa da borboleta morfo, aquela grandona, azul-metálico iridescente, descobriu que ela manipula a luz com um cristal orgânico, que é também um amplificador ótico. O mesmo princípio desse cristal pode ser copiado e implementado em fibras óticas para melhorar a transmissão de dados.
A indústria automobilística pesquisa o revestimento das folhas de árvores para criar novas tintas que tornem os carros autolimpantes. Se numa simples asa de borboleta há um sistema tecnológico que vale bilhões de dólares, imagine então na floresta amazônica inteira.
A Nasa, a GE, a Boeing e muitas outras empresas já estão contratando a consultoria de biólogos para se apropriar desses conhecimentos. Quando desmatamos a Amazônia, não queimamos árvores, mas sim liquidamos para sempre uma biblioteca viva de altíssima tecnologia.
>> De proa para o iceberg
Quando os governos se veem diante de um grave perigo, atuam com extrema rapidez.
Quando os japoneses atacaram Pearl Harbour, os Estados Unidos entraram na guerra imediatamente. Quando a organização criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) espalhou a violência em São Paulo, o governo paulista colocou toda a polícia nas ruas.
Quando
a atual crise mundial eclodiu, no final do ano passado, uma semana
depois uma série de medidas já estava sendo tomada para enfrentá-la. O
estresse causado ao sistema climático terrestre é muito mais devastador,
e no entanto não gera respostas práticas.
Se cerca de US$ 15 bilhões fossem investidos anualmente nos agricultores, para que conservassem os biomas, em vez de destruí-los, todas as florestas tropicais do mundo poderiam ser salvas. Em vez de desmatar, esses agricultores estariam prestando serviços ambientais, e recebendo por eles.
Zerar o desmatamento da Amazônia, hoje, significaria reduzir em 20% todas as emissões humanas de gás carbônico. Isso teria um valor imenso no mercado de cotas de carbono que vem sendo discutido internacionalmente. Mas nada acontece, e o tempo continua correndo.
O chamado Relatório Stern (coordenado pelo economista inglês Nicholas Stern, ex-vice-presidente do Banco Mundial) recomenda que 2% do PIB mundial seja investido em medidas contra o aquecimento. Se isso não for feito agora, diz o estudo, e a destruição seguir nesse ritmo, em 2020 serão necessários 30% desse mesmo PIB para que continuemos existindo como sistema econômico global.
Como nenhuma medida é tomada, estamos numa situação pior que a dos passageiros do Titanic. Estamos navegando a toda a velocidade na escuridão; só que num barquinho bem mais frágil, com a proa apontada diretamente para o iceberg.
Se cerca de US$ 15 bilhões fossem investidos anualmente nos agricultores, para que conservassem os biomas, em vez de destruí-los, todas as florestas tropicais do mundo poderiam ser salvas. Em vez de desmatar, esses agricultores estariam prestando serviços ambientais, e recebendo por eles.
Zerar o desmatamento da Amazônia, hoje, significaria reduzir em 20% todas as emissões humanas de gás carbônico. Isso teria um valor imenso no mercado de cotas de carbono que vem sendo discutido internacionalmente. Mas nada acontece, e o tempo continua correndo.
O chamado Relatório Stern (coordenado pelo economista inglês Nicholas Stern, ex-vice-presidente do Banco Mundial) recomenda que 2% do PIB mundial seja investido em medidas contra o aquecimento. Se isso não for feito agora, diz o estudo, e a destruição seguir nesse ritmo, em 2020 serão necessários 30% desse mesmo PIB para que continuemos existindo como sistema econômico global.
Como nenhuma medida é tomada, estamos numa situação pior que a dos passageiros do Titanic. Estamos navegando a toda a velocidade na escuridão; só que num barquinho bem mais frágil, com a proa apontada diretamente para o iceberg.
foto capa: Divulgação INPA
ilustração: Tato Araujo