sábado, 28 de dezembro de 2013

Belo Monte: Painel do Leitor da Folha de São Paulo mutila cartas barbaramente



(Nota do Blog): abaixo matéria que enviei, por sugestão do jornalista Marcelo Leite -autor principal da cobertura da FSP sobre Belo Monte-, para a seção Painel do Leitor na Folha de São Paulo. Os editores daquela seção mutilaram meu comentario barbaramente (edição do dia 27/dez/2013 se nao me engano). Que bom que a internet permite recolocar ao alcance de todos a versão original!

 A matéria especial da Folha sobre Belo Monte me impressionou muito. Primeiro a interface, que combinação técnica e artística inusitada e incrível! Depois a narrativa, não menos extraordinária e envolvente. Me vi no canteiro de obras, na volta grande, em Altamira. Por fim, a metáfora, nada é só preto e branco - linear e maniqueísta-, existem sempre múltiplas dimensões nas grandes polemicas. Depois desta matéria tornou-se mais difícil falar de Belo Monte escudando-se em argumentos sectários. Mas para não ficar somente nos elogios, a cobertura sobre o "gigantismo" da obra -a parte civil - me passou um sabor amargo, me remeteu ao ufanismo nacionalista e megalomaníaco da ditadura militar. Para os memes desenvolvimentistas embutidos nos neurônios brasileiros esse lado da matéria é incendiário. Comecei minha carreira profissional justamente dentro das primeiras hidrelétricas Amazônicas, fazendo estudo de impacto ambiental pra inglês ver. Belo Monte me dá aquela sensação de Déjà vu. O problema da matéria, a meu ver, está na falta de comparação. Se fizermos uma comparação da potencia de hidrelétricas com a potencia climática da floresta, veremos que diante da natureza essas estruturas humanas são microscópicas, patéticas. Somente a energia empregada na evaporação de 20 bilhões de toneladas de agua a cada dia na Amazônia - pela transpiração das árvores- é comparável a 50.000 Itapus (ou mais de 200.000 Belo-Montes)!!! Pode parecer uma comparação disparatada, mas não é. Desse motor da grande floresta -esse sim gigantesco- depende o ciclo hidrológico na América do Sul, o que inclui o fornecimento de potencial hidráulico para as principais hidrelétricas do País, Belo Monte incluída. Em pleno regime democrático o modus operandi com relação ao meio ambiente nesta obra –comprovado por inúmeras condenações na justiça- não difere significativamente do trator desenvolvimentista operado pelos militares nos anos de chumbo. Meta mais essa e outras descuidadas abordagens de desenvolvimento no coração da Amazônia, como estão fazendo, e o que resta da floresta irá mais cedo ou mais tarde para o beleléu. E sem floresta acaba a chuva - pra que hidrelétrica?

Antonio Donato Nobre
Pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e do Centro de Ciência do Sistema Terrestre, INPE