O paredão dos 
Andes desvia para o Sul os ventos úmidos da Amazônia, que levam chuva e 
fertilidade ao pampa argentino e ao centro-sul do Brasil. Agora, o 
desmatamento acelerado põe em risco esse delicado sistema 
 
 José Ruy Gandra   
 
  
A
 bomba hidrológica: a corrente de ventos, desviada pelos Andes, carrega 
as nuvens úmidas da Amazônia para fazer chover nas terras férteis do 
Centro-Sul brasileiro e no pampa argentino
 
Na
 próxima vez que assistir ao Jornal Nacional, atente para a previsão 
meteorológica. Caso a imagem do satélite traga aquela circulação tipo 
bumerangue cruzando transversalmente o continente, agradeça. Agradeça 
ainda mais caso você viva no sudeste do Brasil ou na Argentina.
Segundo
 o pesquisador Antonio Donato Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas 
da Amazônia (INPA), não fosse pelas chuvas que essas nuvens trazem, em 
especial no verão, todo o quadrilátero demarcado por Cuiabá, São Paulo, 
Buenos Aires e a cordilheira dos Andes se tornaria, quase certamente, um
 deserto.
Para Nobre, isso só não acontece por duas razões: a 
presença dos Andes, cuja altura redireciona o vapor d’água vindo do 
Atlântico para Sudeste (formando o tal bumerangue), e a evaporação 
causada pelas árvores da floresta amazônica, que alimenta essa umidade, 
permitindo que chegue até os Andes e mais adiante, sem se dissipar pelo 
caminho.
>> Ameaça global
“A
 Amazônia é uma bomba hidrológica impressionante”, diz Nobre, que viveu 
22 anos na região. “Lança diariamente 20 bilhões de toneladas de água na
 atmosfera, garantindo que uma área responsável por 70% do PIB 
sul-americano seja devidamente irrigada.”
O avanço do 
desmatamento, segundo Nobre, não põe em risco iminente apenas esse 
sistema que confere à América do Sul sua benvinda peculiaridade 
climática. “O desmate é responsável, sozinho, por 20% de todas as 
emissões humanas de gás carbônico”, afirma.
Trata-se, portanto, 
de uma ameaça global. Entidades internacionais recomendam que 2% do PIB 
mundial seja imediatamente investido em medidas contra o aquecimento. 
“Se isso não for feito”, diz Nobre, “em 2020 serão necessários 30% desse
 mesmo PIB somente para lidar com os custos das perdas ligadas a 
desastres ambientais.”
Mesmo assim, de acordo com Nobre, nada vem
 sendo feito efetivamente. “A preservação da floresta não deve se 
subordinar aos interesses do desenvolvimento e da economia, e sim o 
contrário”, afirma o pesquisador. “Sem a manutenção desse delicado mas 
poderoso sistema de equilíbrio global, toda a economia irá fatalmente 
pro espaço.”
Atuando dentro do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em São José
 dos Campos, Nobre, 50 anos, agrônomo por formação, especialista em 
biologia tropical e doutorado em biogeoquímica pela Universidade de New 
Hampshire, concedeu uma longa entrevista à PIB, cujos principais trechos
 você lê a seguir.
Nela, o pesquisador explica as singularidades 
de nosso regime climático, analisa a importância da Amazônia em seu 
funcionamento, condena a mentalidade autista do agronegócio e, mais 
ainda, o imobilismo dos governos. E adiciona uma agravante: “Ao desmatar
 a Amazônia, não queimamos árvores, mas sim uma biblioteca viva de 
altíssima tecnologia e valor incalculável”.
>> A vida regula o clima
“Hoje a ciência começa a aceitar que o sistema biológico condiciona a atmosfera. Isso é novidade.
A
 meteorologia sempre considerou a biosfera um fator secundário e a 
atmosfera, o principal. Mas todo oxigênio que respiramos veio das 
plantas; não temos gases tóxicos na atmosfera graças a inúmeros 
organismos que os removem; e a manutenção equilibrada do ciclo da água 
nos continentes depende diretamente dos organismos.
Sabemos que, 
num processo sofisticadíssimo que ocorre em nanoescala, no nível das 
moléculas, a fotossíntese é o mecanismo primordial de estabilização 
climática da Terra. Na fotossíntese, a energia solar é captada e, 
através de reações químicas, remove gás carbônico da atmosfera e libera 
oxigênio.
Foi essa troca de gases que moldou a vida e a evolução 
dos ambientes no planeta ao longo de seus 4 bilhões de anos. Nesse 
período, a concentração de gás carbônico em nossa atmosfera passou de 
95% para 0,039%.
Para onde foi todo esse CO2? O que aconteceu 
nesse tempo? Sem um poderoso mecanismo de regulação, teria sido 
impossível que a Terra hoje tivesse água líquida na superfície e que sua
 temperatura mantivesse uma variação confortável para a vida, uma 
raridade em termos cosmológicos.
A única explicação para esse 
fenômeno é a vida. Todos os organismos vivos têm um sistema sofisticado 
de equilíbrio e autorregulação. Se fora esquenta, eles esfriam, e 
vice-versa.
Essa capacidade só a vida tem. E as florestas exercem
 no sistema planetário um papel decisivo. São o maior órgão terrestre de
 regulação. Têm mecanismos altamente complexos e eficientes, que outros 
sistemas humanos, como a agricultura, não são capazes de emular.
Dito
 isso, olhe o mapa-múndi. Nele, sempre na mesma faixa a 30 graus de 
latitude, em ambos os hemisférios, estão os desertos. O Saara, o Sonoma,
 o Kalahari, o Atacama, os da Namíbia e da Austrália.
Por quê? 
Esse fato deve-se a um fenômeno chamado Circulação de Hadley. A parte 
equatorial do planeta recebe maior radiação solar, é mais quente, 
evapora muita água e provoca chuvas. Em outras palavras, o ar sobe na 
faixa do equador, perde umidade e chove.
Quando desce na faixa 
dos 30 graus, já seco, ele consome a umidade da superfície e contribui 
na formação dos desertos. Só há duas exceções a essa regra: o sul da 
China, região próxima ao Himalaia, e a fatia meridional da América do 
Sul.
>> O radiador verde
A
 América do Sul é diferente por dois fatores: os Andes e a floresta 
amazônica. O ar, que nas zonas equatoriais sempre corre de leste para 
oeste, encontra a barreira andina, um paredão de 6 mil metros de altura.
Ela impede que o ar rico em vapor d’água vindo do Atlântico siga em frente. Esse
 ar úmido, então, faz uma curva para sudeste e, no verão, vai despejando
 sua umidade sobre essas regiões – que, sem os Andes, seriam desérticas e
 sem vida econômica.
A floresta, o segundo fator, é ainda mais 
importante. Esse vento só consegue viajar por quase 5 mil quilômetros 
sobre a América do Sul, com umidade suficiente para formar nuvens e 
chuvas, porque as árvores da Amazônia recebem suas águas, sob a forma de
 chuvas, mas devolvem a maior parte à atmosfera através da transpiração.
A
 Amazônia transpira 20 bilhões de toneladas de água por dia. É muita 
coisa. O Amazonas, o maior rio da Terra e responsável, sozinho, por 20% 
de toda água doce que chega aos oceanos, lança 17 bilhões de toneladas 
diárias de água no Atlântico.
É esse vapor criado pela floresta 
que acentua e prolonga a circulação úmida na América do Sul. A floresta 
funciona como um evaporador otimizado, pois suas folhas formam uma área 
de evaporação muito maior que a da própria superfície no solo.
São 10 metros quadrados
 de folhas para cada metro quadrado de solo. Elas atuam como um radiador
 na dispersão da umidade. Sem esse auxílio da floresta e de sua 
transpiração, a massa de ar vinda do oceano não conseguiria manter sua 
umidade do Atlântico aos Andes e mais adiante.
Se a Amazônia 
fosse uma região inteiramente agrícola, a massa de ar entraria no 
continente e choveria. Como não haveria vegetação densa o suficiente, 
pois o solo agrícola é mais ralo e exposto, essa água não voltaria para a
 atmosfera.
Seria absorvida pela terra ou mais provavelmente 
cairia nos rios, voltando ao Atlântico. Os ventos ficariam cada vez mais
 secos para dentro do continente, choveria cada vez menos e ocorreria a 
desertificação no interior.
>> De celeiro a deserto
A
 influência dessa transpiração da floresta, combinada à presença dos 
Andes, se manifesta no quadrilátero entre Cuiabá, São Paulo, Buenos 
Aires e os Andes.
Sem a Amazônia, é muito provável que essa 
região, responsável por 70% do PIB da América do Sul, se transforme num 
deserto. Mas isso não ocorreria de imediato.
O primeiro efeito do
 desmatamento é um desequilíbrio que provoca o excesso alternado de 
chuvas e de secas. Isso já está acontecendo. Santa Catarina é um bom 
exemplo. No vale do Itajaí, chuvas mataram pessoas afogadas ou 
soterradas. Ao mesmo tempo, o oeste do estado experimentava uma seca 
brutal.
O noroeste do Rio Grande do Sul e o pampa úmido 
argentino, duas regiões agrícolas riquíssimas, já enfrentam quebras em 
sua produção. A falta de equilíbrio no sistema regulador é uma das 
causas da atual crise agrícola argentina. O país enfrentou uma seca 
incomum, que levou também à falta de água em suas usinas hidrelétricas 
e, como consequência, à escassez de energia.
Se para a América do
 Sul a Amazônia é um coração que faz circular a umidade, para o mundo 
ela é um coração e também um fígado, pois processa e limpa o ar da 
atmosfera numa escala planetária.
Estudos mostram que a floresta 
absorve uma parte considerável dos abusos nas emissões de gases que 
estão na origem do aquecimento global. A Amazônia é uma espécie de 
seguro da humanidade contra esses abusos, mas não é usada como tal.
>> O agroautismo
Nossa
 agricultura não parece ser capaz de interagir socialmente. É como um 
autista savant, aquele que consegue desenvolver extraordinariamente uma 
única capacidade – mas tem todas as demais comprometidas.
São os 
campos de soja vigorosos e deslumbrantes, alcançados à custa de todo o 
equilíbrio biológico circundante. Nosso sistema estimula esse autismo; 
dá vitamina a ele. Explorar economicamente é o que interessa. O resto é 
obstáculo.
O Blairo Maggi (governador de Mato Grosso e um dos 
maiores produtores de soja do mundo) certa vez disse: “As pessoas 
precisam decidir se querem comida ou árvores”. Esse dilema é falso, 
pois, sem árvores, você não tem água, e, sem água, não tem comida. 
Cabeças assim acham que a floresta só ocupa espaço. Isso me parece pura 
ignorância.
Um tumor cancerígeno faz o melhor que pode em seu 
desespero para crescer, não sabe que é mau – e certa mentalidade do 
agronegócio no Brasil é um tumor que precisa ser removido.
Economia
 e ecologia não são coisas diferentes. É preciso esclarecer que, se a 
floresta for desmatada, todo um gigantesco e delicadíssimo sistema de 
equilíbrio desmoronará e, com ele, a atividade econômica.
Os 
brasileiros têm de saber que, se a água acabar na floresta, logo acabará
 também em outros lugares, como São Paulo ou Buenos Aires. Esse alerta é
 papel da ciência, do qual não podemos abdicar.
>> A biomimética
A
 ecologia é a economia da natureza. Seus princípios e possibilidades 
tecnológicas podem impulsionar incrivelmente a economia humana. A 
Amazônia abriga um dos maiores mananciais de alta tecnologia jamais 
concebidos.
No Primeiro Mundo há uma nova fronteira da engenharia
 chamada biomimética. Ela procura se inspirar nos processos naturais, a 
fim de copiá-los e implementá-los em soluções industriais. A natureza 
tem soluções tecnológicas sofisticadíssimas.
Um estudo da asa da 
borboleta morfo, aquela grandona, azul-metálico iridescente, descobriu 
que ela manipula a luz com um cristal orgânico, que é também um 
amplificador ótico. O mesmo princípio desse cristal pode ser copiado e 
implementado em fibras óticas para melhorar a transmissão de dados.
A
 indústria automobilística pesquisa o revestimento das folhas de árvores
 para criar novas tintas que tornem os carros autolimpantes. Se numa 
simples asa de borboleta há um sistema tecnológico que vale bilhões de 
dólares, imagine então na floresta amazônica inteira.
A Nasa, a 
GE, a Boeing e muitas outras empresas já estão contratando a consultoria
 de biólogos para se apropriar desses conhecimentos. Quando desmatamos a
 Amazônia, não queimamos árvores, mas sim liquidamos para sempre uma 
biblioteca viva de altíssima tecnologia.
>> De proa para o iceberg
Quando os governos se veem diante de um grave perigo, atuam com extrema rapidez.
Quando
 os japoneses atacaram Pearl Harbour, os Estados Unidos entraram na 
guerra imediatamente. Quando a organização criminosa PCC (Primeiro 
Comando da Capital) espalhou a violência em São Paulo, o governo paulista colocou toda a polícia nas ruas.
Quando
 a atual crise mundial eclodiu, no final do ano passado, uma semana 
depois uma série de medidas já estava sendo tomada para enfrentá-la. O 
estresse causado ao sistema climático terrestre é muito mais devastador,
 e no entanto não gera respostas práticas.
Se cerca de US$ 15 
bilhões fossem investidos anualmente nos agricultores, para que 
conservassem os biomas, em vez de destruí-los, todas as florestas 
tropicais do mundo poderiam ser salvas. Em vez de desmatar, esses 
agricultores estariam prestando serviços ambientais, e recebendo por 
eles.
Zerar o desmatamento da Amazônia, hoje, significaria 
reduzir em 20% todas as emissões humanas de gás carbônico. Isso teria um
 valor imenso no mercado de cotas de carbono que vem sendo discutido 
internacionalmente. Mas nada acontece, e o tempo continua correndo.
O
 chamado Relatório Stern (coordenado pelo economista inglês Nicholas 
Stern, ex-vice-presidente do Banco Mundial) recomenda que 2% do PIB 
mundial seja investido em medidas contra o aquecimento. Se isso não for 
feito agora, diz o estudo, e a destruição seguir nesse ritmo, em 2020 
serão necessários 30% desse mesmo PIB para que continuemos existindo 
como sistema econômico global.
Como nenhuma medida é tomada, 
estamos numa situação pior que a dos passageiros do Titanic. Estamos 
navegando a toda a velocidade na escuridão; só que num barquinho bem 
mais frágil, com a proa apontada diretamente para o iceberg. 
foto capa: Divulgação INPA
ilustração: Tato Araujo