Sérgio Abranches
A
 Rede no momento é mais que o partido: é um teste ácido para a 
democracia e a Justiça Eleitoral. Só será partido e, portanto, sujeito à
 contestação ou beneficiário do apoio popular, nas linhas das divisões 
que o eleitorado vier a assumir, após o seu registro. Seu desempenho 
partidário será, então, um desafio para suas lideranças, filiados e 
eleitores. Hoje, seu registro é um problema de todos que querem uma 
democracia com igualdade de condições e oportunidades e plenamente 
competitiva.
Não
 é preciso militar no campo ambiental, nem ser ambientalista para saber 
que Marina Silva está sofrendo um claro assédio coronelista. Há 
cartórios da Justiça Eleitoral usando práticas de currais eleitorais, 
sob controle de diferentes partidos dominantes, para barrar o registro 
da Rede, seu partido. Enquanto isso, partidos sem identidade ou história
 e apoio social conhecido, são registrados em silêncio. O Solidariedade,
 cuja formação, com muito menos capacidade de mobilização, embora 
contando com base sindical e a liderança de Paulinho da Força, que tenta
 impossível anonimato, tem transitado sem dificuldades similares pelo 
processo de registro na Justiça Eleitoral. Tudo indica que conseguirá o 
registro em tempo. O PEN (Partido Ecológico Nacional), já obteve o seu. O
 Solidariedade, mesmo antes do registro, já entrou no mercado de trocas 
partidárias, mostrando que em nada inovará e nada acrescentará ao 
sistema partidário brasileiro. O PEN é uma sigla vazia. Seu conteúdo 
político será definido pelas lideranças que o assumirem de fato. A Rede 
representa um movimento, tem uma liderança clara e transparente, que não
 nega, nem tenta disfarçar sua atuação na construção partidária, com 
base social e ampla popularidade. Todavia é a sigla com mais 
dificuldades de avançar na obtenção do registrado. Será por isso que 
enfrenta obstáculos?
Todo
 o procedimento autocrático de cartórios notoriamente sob a influência 
política de chefetes ou chefões locais, sem qualquer transparência, 
conta com certa distância complacente do Tribunal Superior Eleitoral. O 
TSE deveria resguardar a lisura, a isonomia de tratamento e a 
transparência do procedimento de registro, que é uma fase crítica do 
processo democrático pré-eleitoral. Ao examinar o recurso da Rede, 
deveria se indagar porque a maioria das assinaturas em apoio à formação 
do partido glosadas pelos cartórios é de pessoas que não votaram nas 
últimas eleições, seja porque não estavam obrigadas, por estarem acima 
da idade do voto compulsório, seja porque não puderam, por estarem 
abaixo da idade de votar naquela data. Foi assim também com os outros? 
Quantas assinaturas foram rejeitadas sem qualquer justificativa no 
processo de registro do PEN ou do Solidariedade? No caso da Rede foram 
em torno de 100 mil. Não seria o caso de rejeições sem justificativa 
aceitável, juridicamente fundamentada, serem revertidas liminarmente 
pelo TSE em assinaturas válidas?
Encontrei-me
 com Marina Silva recentemente em um evento público. Enquanto 
conversávamos, foi abordada para fotos, uma palavra, uma história, como é
 natural, por grande número de pessoas. A maioria acima da idade para o 
voto compulsório ou muito jovem para ter podido votar nas últimas 
eleições. Os cartórios miraram nesses setores numerosos de sua base 
eleitoral, para rejeitar apoiamentos. É no mínimo esquisito.
Marina
 Silva está confiante, mas preocupada. Tem mesmo que estar preocupada. 
Os anais recentes da política brasileira registram enorme retrocesso 
oligárquico e coronelista, sobre o qual já escrevi aqui. Só os tribunais
 superiores, mais comprometidos com a legalidade, a isenção e a 
racionalidade dos atos da Justiça podem controlar e coibir o desmando 
cartorial nos currais eleitorais de numerosos estados da federação. E 
ela deve estar confiante também, a mobilização de suas bases é visível e
 inegável. O sucesso na criação de diretórios estaduais e regionais 
supera o de muitos outros partidos, cujo processo de registro não teve a
 mesma transparência, nem enfrentou as mesmas dificuldades. A Rede opera
 à luz do dia e torna públicas as dificuldades que vem enfrentando, 
muitas, se não inéditas, no mínimo pouco usuais.
A
 maior desvantagem de Marina Silva é sua postura. Não quer usar as 
mesmas armas dos que conspiram contra a democracia eleitoral. “Não 
queremos ficar como eles, queremos manter a diferença”, ela me disse. E 
deve. Mas precisará usar recursos significativos de mobilização e 
pressão para contrapor alguma força à truculência coronelista que 
retornou à prática política brasileira nos últimos anos. Quem quiser 
saber mais sobre essas práticas, recomendo ler o clássico de Victor 
Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto. Com 
as necessárias atualizações de contexto e tecnologia, continua um 
retrato fiel dessas práticas contumazes de anulação das regras 
eleitorais pela discricionariedade, acobertada pela falta de 
transparência.
Não
 sei se a Rede tem ou não o número de assinaturas requeridas pela lei. 
Suspeito que tenha e que parte das rejeições seja espúria. Determinar 
isso com precisão e presteza seria função prioritária do TSE. E por quê?
 Porque é obrigação precípua do TSE garantir a eleição mais livre, 
legítima, representativa e democrática possível. Uma eleição é tão mais 
livre, legítima, democrática e representativa, quanto maiores forem a 
incerteza e a competição. Eliminar uma força que já se provou relevante,
 ter ampla base social, lideranças com alto grau de legitimidade e 
popularidade e elevada participação de pessoas que exercem o voto 
voluntário, portanto, que tendem inercialmente para a alienação 
eleitoral, reduzindo o universo de votantes, significa reduzir a 
competição e a representatividade da eleição.
É
 claro que o fator Marina Silva introduz incerteza no resultado do 
pleito, que até a queda recente da popularidade da presidente Dilma 
Rousseff (que permanece abaixo dos 50%, que são o limite da zona de 
conforto), era dado como apontando para relativamente tranquila 
reeleição da presidente. Também interfere na rivalidade obsoleta entre 
PSDB – hoje um partido sem liderança clara e sem identidade – e PT, um 
partido outrora de bases sindicalistas e populares, que se peemedebizou.
 Tornou-se um partido com espinha dorsal gelatinosa e moldável.
Essa
 desarrumação do tabuleiro eleitoral promovida pela candidatura de 
Marina Silva, com um índice de popularidade superior ao dos candidatos 
com mandato, como Aécio Neves e Eduardo Campos, incomoda. Elimina 
certezas, desfaz arranjos predeterminados, ameaça de cancelamento 
contratos oportunistas mais açodados. E é isso que alimenta o 
cambalacho, a rejeição de assinaturas sem justificativa, de modo 
discricionário e autocrático. No mundo cartorial, tudo pode ser 
justificado: há leis, regras e procedimentos rotinizados, 
burocratizados. Se não há justificativa, não há base em nenhuma lei, 
regulamento ou rotina, logo, o TSE deveria decidir liminarmente que, 
dada a ausência de base, vale a decisão pró-demandante, ou seja a 
aceitação das assinaturas. É o princípio, por analogia, do notório in dubio pro reo.
A
 prevalecer o tratamento desigual para desiguais nos tribunais 
superiores do Brasil, a democracia brasileira sofrerá um duro golpe 
judiciário. Ela já está em crise. É evidente a falta de 
representatividade dos partidos existentes. É nítida a disfuncionalidade
 de muitos procedimentos legislativos. É patente a arbitrariedade de 
decisões ao arrepio da vontade popular, do bom senso e da justiça. São 
todos componentes da democracia, além da transparência e do tratamento 
igual para todos perante a lei. Democracia demanda uma grande dose de 
bom senso dos Três Poderes. Exige que a Justiça se faça com um olho na 
Constituição e na lei e outro no povo de quem deve emanar o poder em 
primeira instância, e seja cega às pressões dos poderosos.
A
 democracia está em cheque em todo o mundo. A política não se atualizou.
 A representação se estiolou. As sociedades avançaram. Temos uma ágora 
social, articulada pelas redes sociais, que debate, inquieta, mobiliza, 
mostra indignação, protesta e constrói caminhos de esperança. Mas não 
temos ainda a ágora política, que dê voz efetiva aos cidadãos, que 
reflita as demandas da ágora social. Teremos que caminhar para ela.
Essa
 marcha para o aprofundamento da democracia não invalida, nem preclui, 
os princípios elementares da democracia representativa, como os direitos
 individuais; a liberdade de expressão, reunião, organização e voto; a 
liberdade de imprensa; a competição com isonomia (igualdade de 
oportunidade e condições) na busca da poliarquia, em contraposição à 
oligarquia vigente e como antídoto máximo à autocracia.
O
 destino da Rede não será um evento trivial. Será um divisor de águas e 
um teste fundamental, ácido mesmo, para a Justiça Eleitoral. Por ele 
saberemos se ela está cumprindo a função de proteger a democracia e 
fazer valer a vontade popular ou se, por complacência ou anuência, está 
dando cobertura às manobras oligárquicas.
Uma vez registrada a Rede, cada um votará como quiser, em quem quiser. Mas até lá, todos que são pela democracia, são pela Rede.
 
