Novas relações sociais começam a superar consumismo, devastação
ambiental e desigualdade. Mas velho poder resiste. Será possível esperar
transição tranquila?
Entrevista a Inês Castilho | Imagem: Arcangelo Ianelli, Ruptura, 1976 (detalhe deslocado)
Duas previsões opostas, porém igualmente verossímeis, são comuns
quando se debatem os sentidos do século 21. Há quem mire, com otimismo,
as grandes mobilizações sociais; a valorização da autonomia e das redes
cidadãs não-hierárquicas; a tentativa de superar a crise da
representação e reinventar a democracia; a expansão da consciência
ambiental. Um olhar mais pessimista chama atenção para a
ultra-concentração de riquezas; o esvaziamento da política, colonizada
pelas grandes corporações (especialmente financeiras); a devastação da
natureza e a procrastinação, pelos governos, das medidas que poderiam
evitar grandes desastres naturais.
Coordenador do Núcleo de Estudos do Futuro (NEF) da PUC-São
Paulo, o economista Ladislau Dowbor parece prestes a dar um passo além
desta disjuntiva. Ao desnudar alguns dos fatores que estão por trás das
incertezas contemporâneas, seus estudos recentes desenham um modelo em
que riscos e de oportunidades não são estanques: estão sobrepostos no
mesmo cenário. Aparece com clareza, então, uma alternativa além do
pessimismo ou do otimismo. Ladislau lembra que, mais uma vez, o futuro
está em aberto – e identifica os possíveis pontos da ruptura.
Esta visão de conjunto desenhou-se, com clareza, num diálogo que o
economista – um dos intelectuais brasileiros mais mergulhados no debate
sobre as crises globais – manteve com a pesquisadora e jornalista Inês Castilho, colaboradora de Outras Palavras. Ele ocorreu no âmbito do estudo qualitativo Política Cidadã, que o instituto Ideafix produziu para o IDS (Instituto Democracia e Sustentabilidade).
Há uma grande novidade civilizatória, explica Ladislau, por trás
de boa parte do que enxergamos como “tendências positivas” da
atualidade. A produção imaterial agora ocupa o centro da Economia. O
valor dos produtos e serviços está cada vez menos nos materiais neles
envolvidos, e mais no conhecimento, cultura e criatividade que
permitiram gerá-los. Nenhum destes fatores, explica o professor, é
regido pela “lógica da escassez” em que se baseia a teoria econômica
convencional. Significa, em outras palavras, que sobre eles não pesa o
princípio da propriedade – algo central ao capitalismo. Se divido um
prato de comida, ou uma fábrica, resta-me apenas uma parte do que antes
possuía. Mas ideias, inovações, talentos e afetos multiplicam-se, quando
compartilhados.
Esta enorme mudança de paradigma, prossegue Ladislau, está
promovendo imensas transformações. O conhecimento e a informação podem
circular livremente, graças a iniciativas como a Wikipedia; a sites,
blogs e redes sociais; ou movimentos como a Primavera Científica e as
grandes bibliotecas abertas de universidades norte-americanas e
chinesas.
Uma economia baseada no imaterial e no conhecimento exige muito
menos intervenções sobre a natureza. Além disso, prossegue Ladislau,
“casa muito bem com serviços sofisticados (Saúde, Educação, Cultura,
Esporte, Lazer, Segurança) e com sistemas participativos,
descentralizados, gestão local, políticas urbanas e redes”.
Conjugados, estes dois fatores insinuam uma utopia já em
construção. Numa sociedade em que o principal fator de produção (o
conhecimento) não é propriedade privada, mas bem-comum, seria
perfeitamente possível redistribuir constantemente a riqueza. Imagine,
por exemplo, uma renda cidadã paga a cada ser humano independentemente
de trabalho, e capaz de assegurar vida digna. Associe esta garantia à
possibilidade de dar sentido social a seus talentos e criatividade,
participando de uma rede de prestadores de serviços públicos –
educadores, profissionais de saúde, operadores do sistema de transporte
coletivo, cuidadores de idosos ou produtores de audiovisual, por
exemplo.
Por que, então, estas tendências não se tornam dominantes?
Ladislau chama atenção para a inércia das velhas relações de poder e da
economia que foi hegemônica nos séculos passados. Como desencadear
políticas públicas que restrinjam o uso do carro individual e
desmobilizem, portanto, boa parte da produção automobilística? De que
forma desalojar, do aparelho de Estado, as construtoras de grandes obras
rodoviárias e projetos faraônicos? Ainda mais difícil: como desmontar
os mecanismos financeiros que capturam a riqueza social e a concentram
nas mãos de 1% da sociedade, ou ainda menos?
Na encruzilhada em que estamos, qual das duas tendências
prevalecerá? Ambas têm tanta força que, em diálogos mais recentes (como
no lançamento do projeto Primaveras,
em 24/10), Ladislau chegou a formular uma terceira hipótese. As
transformações históricas exigem, muitas vezes, grandes fraturas. Foram
necessárias duas guerras mundiais, e o fantasma da União Soviética, para
que surgisse na Europa e América do Norte o Estado de Bem-estar social –
hoje moribundo. Será necessária a catástrofe climática para que uma
Economia do Bem-Comum e do Compartilhamento torne-se hegemônica? Ou
seremos capazes de tramar rupturas mais humanas e suaves? O diálogo
entre Ladislau Dowbor e Inês Castilho vem a seguir (A.M.)
Gostaria que o senhor falasse do seu trabalho sobre os megatrends, as grandes tendências atuais do planeta, e do Núcleo de Estudos do Futuro da PUC-SP.
Trabalho com a convergência das crises, fatores que antes eram
avaliados de maneira independente, como por exemplo as tendências das
populações, analisadas por demógrafos, as climáticas, por oceanógrafos e
assim por diante. Somos sete bilhões de pessoas no planeta, 80 milhões a
mais a cada ano, o que significa mais 220 mil pratos de comida na mesa a
cada dia: qual é o impacto disso? Os impactos são cada vez mais
visíveis, e exigem estudos permanentes. Estamos contaminando a água,
tanto os rios, lagos e lençóis freáticos, como até o Golfo do México, o
Báltico e certas regiões do Mediterrâneo, que já estão mortas.
Contaminamos os solos por excesso de quimização, de agrotóxicos. As
mudanças climáticas são estudadas nas suas diversas manifestações.
Não menos importante, as dimensões sociais: a pobreza, as migrações
devido aos desastres climáticos, os impactos econômicos da desigualdade.
Temos um bilhão de desnutridos, 1,5 bilhão sem acesso a água limpa.
Estamos destruindo o planeta em proveito de uma minoria.
Há ainda o problema do caos econômico que está sendo gerado – não só o financeiro, mas o mercado mundial de commodities,
a especulação com o petróleo e o descontrole nas áreas de comércio de
armas, de produtos farmacêuticos, dos produtos químicos. Na ausência de
governo mundial, de sistemas multilaterais de controle, gerou-se o caos
especulativo.
O cenário é mais sombrio do que se imagina?
Uma pesquisa da Austrália perguntou aos cientistas por que os fatos
se mostram mais graves, no geral, do que as previsões apresentadas nas
várias reuniões sobre a questão ambiental – Estocolmo em 1972, Clube de
Roma [conhecido pelo relatório Os Limites do Crescimento, de 1972],
Eco-92 no Rio de Janeiro, Johanesburgo em 2002. Eles responderam que
tentam reduzir os números para ganhar credibilidade, porque as pessoas
se assustam. A cada reunião reajustam-se as cifras para cima, cresce a
compreensão de que a janela de tempo de que dispomos é limitada.
E também porque existe um sistema mundial de construção de opinião pública por grandes empresas de relações públicas.
Elas se especializaram em criar uma boa imagem das grandes corporações,
como a da British Petroleum depois do desastre do Golfo do México; ou a
campanha das empresas particulares de saúde dos EUA para tentar travar a
aprovação de uma lei de saúde pública; as grandes campanhas para dizer
que o fumo não gera câncer; ou ainda para convencer as populações de que
limitar o acesso a armas de fogo seria uma limitação à liberdade. Vale
tudo. São imensas campanhas, gerando o chamado “negacionismo”.
A campanha para dizer que não há aquecimento global faz parte dessas grandes iniciativas articuladas. Tem um belíssimo livro, Climate Cover-Up: The Crusade to Deny Global Warming, de James Hoggan. Ele explica como funcionam as campanhas de construção de opinião pública, hoje uma grande indústria.
Temos aqui na PUC-SP um pequeno Núcleo de Estudos do Futuro que trabalha sobre esses processos e também se articula com outras instituições. Na linha dos megatrends, ou
macrotendências, promovemos estudos sobre dinâmicas de longo prazo, e
também mudanças metodológicas como sobre o PIB, ou estudos setoriais
como o livro sobre energias renováveis no Brasil. Disponibilizamos esses
textos online, em regime Creative Commons.
A grande mídia estaria articulada com a construção dessas visões da realidade?
A grande mídia está visceralmente ligada a quem paga a publicidade.
As grandes empresas de publicidade costumam se identificar com os
interesses das grandes corporações – que são as que pagam a publicidade.
Trata-se em geral de grandes empresas, as padarias não fazem propaganda
nesse nível. Os setores financeiro, farmacêutico, automobilístico são
típicos. O custo é colocado no produto que a gente paga. Assim, esse
dinheiro financia as empresas de publicidade, uma grande indústria
internacional, que por sua vez financia a mídia.
Isso se reflete na área editorial: primeiro porque a mídia nunca vai
falar mal das corporações que a financiam; segundo porque se mantém
presa a uma programação atrativa à média da população – já que os custos
da publicidade são definidos pela quantidade de espectadores e
leitores. O circuito se fecha: não se informa sobre os sistemas
econômicos e os problemas e coisas desagradáveis. Em compensação,
enche-se a televisão de PMs perseguindo bandidos no morro e coisas do
gênero. Vai-se assim gerando uma indústria da burrice e uma indústria do
medo.
Uma pesquisa dos Estados Unidos diz como aumenta o sentimento de
insegurança das pessoas, independentemente do nível de criminalidade, em
razão do uso da segurança pública como matéria-prima para atrair
leitores ou espectadores de televisão. A solução organizacional e
institucional e a forma de financiamento do processo deformam o nosso
acesso à informação.
Em que medida as novas mídias tornam mais livre o acesso ao conhecimento?
Em vários níveis. A mudança importante é que o processo se inverte, a
filosofia muda. As coisas circulam pela qualidade, e não porque os
Mesquita, Civita, Marinho ou Frias querem que as pessoas pensem assim ou
assado. As informações circulam pela demanda, e não pelo que vão render
de publicidade. Um bom artigo é repassado nas redes porque as pessoas
gostaram, e quando gostamos de algo a reação imediata é compartilhar
esse gosto. A tendência é a intensificação da leitura definida pela
demanda, e muito menos pela oferta forçada a um leitor ou telespectador
passivo. Tem gente, como eu, que disponibiliza toda a sua produção científica
online. A tiragem típica de uma revista científica em uma universidade é
de 800 exemplares, e a leitura é mínima. A partir do meu site, centenas
de textos científicos são baixados diariamente. Como estão na
internet, estão permanentemente disponíveis, não é noticiário de momento
jogado no lixo, como jornal de ontem. E são utilizados em Angola e
outras regiões onde não há dinheiro para comprar livros, nem
disponibilidade nas bibliotecas.
Além de assegurar muito mais conhecimento na base da sociedade, o
conhecimento circula em função da qualidade. Por exemplo: Joan Martínez
Alier publicou na Universidade de Barcelona um artigo extremamente
competente sobre os impactos ambientais da empresa americana
Chevron-Texaco no Equador. Recebo esse artigo porque várias pessoas
leram e disseram: “é excelente, o Ladislau precisa ler”. Leio e mando
para um monte de gente, porque é excelente. Isso em nível individual.
Existem hoje milhões de blogs – estou batalhando para que na PUC todos
os professores tenham o seu blog e a gente construa uma comunidade
online. A resistência é grande, há uma mudança cultural pela frente.
Em nível institucional, um exemplo: o MIT- Massachusetts Institute of
Technology criou a partir de 2003 o OCW-Open Course Ware. Todo o
trabalho dos professores, mais de dois mil cursos, está disponível
online gratuitamente. No ano seguinte já a China conectou nesse sistema
as suas 12 principais universidades: todo cientista chinês, ao criar um
produto científico – um curso, um livro –, disponibiliza-o online no
sistema e recebe um pagamento do governo. É uma solução institucional e
organizacional interessante: milhões de chineses têm acesso à ciência
gratuitamente, online. E quando se tem acesso à ciência se cria mais
ciência, porque inspira e dá ideias. Hoje temos muitos países conectados
ao OCW, várias instituições no Brasil – se você entrar no site do OCW
Consortium, que articula mundialmente esse conjunto, vai ter os
países e as instituições. Na China se chama CORE, China Open Resources
for Education. Enquanto isso, na PUC, USP e outras universidades
brasileiras ainda trabalhamos com pastas de professores e xerox de
capítulos isolados. É pré-histórico.
Voltando à questão das novas mídias…
É muito mais do que mídia alternativa. É o fato de que as pessoas
disponibilizam conhecimento segundo a relevância efetiva que tem para
elas e buscam de maneira temática as informações de que necessitam.
Isso, em outro nível, gera um sistema de newsletters que começa
a concorrer efetivamente. Carta Maior é recebida por centenas de
milhares de pessoas, temos o Envolverde, Mercado Ético, IHU, inúmeros
grupos que redistribuem e fazem circular informação inteligente. E temos
informação tradicional que se adaptou, como o The Guardian, no qual
você pode encontrar informação internacional extremamente atualizada,
gratuitamente, a partir do celular ou tablet, sem complicações de
senhas, pagamentos, cadastros. É um serviço público a partir da esfera
privada.
Os que se aferram à mídia antiga, e ao controle político e comercial
da mídia, declaram guerra a estas formas abertas de acesso. Você liga o
rádio e ouve: “seja ético” – o que é uma bobagem. Ser feliz sozinho é
deprimente. Quando ouço uma música bonita penso: vou mandar para fulano.
Criminalizar isso é patológico: o Brasil é de uma hipocrisia quase
escandalosa, ao inverter a noção de ética. O prejudicado não é o músico,
que só tem a lucrar com a divulgação. São os grandes intermediários, os
donos da chamada indústria cultural, que não criam nada mas travam o
acesso. O copyright é legítimo na forma como surgiu: uma editora que
produz um livro não quer que outra editora aproveite o eventual sucesso
comercial. Mas criminalizar o uso não comercial é inclusive uma burrice
econômica, além da deformação do conceito de ética.
E existe agora esse fantástico avanço do tagging: o endereço e o
código de cada documento. Estamos em um nível que, se quero estudar desemprego jovem em periferias metropolitanas,
coloco esses termos no Google ou em qualquer outro buscador e tenho
centenas de artigos sobre o que acontece nas periferias de Beijing,
Xangai ou Moscou – e posso compor essas visões em uma articulação nova
sobre a base do conhecimento acumulado. Fazer articulações inovadoras
sobre a base de conhecimento acumulado chama-se ciência. Isso é inovar.
Neste sentido, o acesso aberto online é muito mais do que a gratuidade, é
a abertura e flexibilidade de cruzamento de informações e avanços
científicos de qualquer parte do planeta, de qualquer área científica,
que gera a presente explosão de inovações. Não à toa milhares de
cientistas americanos geraram o movimento Science Spring, primavera
científica, na linha da primavera árabe, e boicotam as revistas
indexadas. Chega de intermediários que cobram pedágio sobre as inovações
dos outros.
A inovação é um processo colaborativo: ninguém inova sozinho. Tem um livro muito bonito, Cognitive Capital,
em que o autor Clay Shirky lembra que se não fossem as universidades
terem desenvolvido os microprocessadores, os chips etc, um Bill Gates
ainda estaria trabalhando com tubos catódicos – aqueles antigos de
televisão. A inovação é uma maré que levanta todos os barcos, só que
alguns querem cobrar pedágio sobre as inovações de todos.
Então, esse talvez seja o megatrend que atravessa todo o conjunto: o conhecimento se desmaterializa. Quando escrevo a letra a,
preciso gastar tinta e papel; mas o digital é uma combinação de zeros e
uns que pode ser feita com luz acesa ou apagada, polo magnético
positivo ou negativo, intensidade maior ou menor de fótons – estou nas
ondas eletromagnéticas. Instala-se um sistema de satélites
geoestacionários ao redor do planeta que retransmitem esse conhecimento –
e o planeta passa a ser banhado em conhecimento. Esses satélites ficam a
36 mil km de altitude, uma altitude da qual podem acompanhar exatamente
o movimento da Terra – e tem-se a cobertura completa do planeta em
conhecimento.
O que está acontecendo é que o conhecimento não está mais na cabeça
do professor, está no ambiente, ou na nuvem. Isso significa que a
educação tem que passar a ser articuladora, organizadora de
conhecimento, muito mais do que lecionadora. Esse fluxo de conhecimento
online leva à ruptura do fatiamento: isso é química, aquilo é física, e
um não se mete no outro – isso está indo para o brejo. As escolas, as
universidades com seus diplomas estão se tornando um conjunto de
estruturas desesperadamente desatualizadas, relativamente a todas essas
transformações possíveis.
E qual é a escola necessária?
A escola necessária é muito menos lecionadora e muito mais
articuladora de conhecimento. Seymour Pappert escreveu A Máquina das
Crianças, The Children’s Machine, um livro sobre as inovações
educacionais na era do computador, em 1993. Conta ali a história de uma
professora de informática que, sentindo-se cada vez mais sem jeito
porque os alunos estavam indo mais rápido que ela, num momento de crise
tem um ataque de bom senso e diz: “meninos, vocês claramente estão indo
mais rápido que eu. Mas sei organizar conhecimento e sei discutir com
vocês como usar esses instrumentos. Então vou parar de dar aula e passar
a ser uma assessora organizacional para vocês construírem novos
conhecimentos através desse instrumento.” Isso é a nova escola. Se você
lê José Pacheco, da Escola da Ponte, a visão é essa.
É uma escola-referência?
É uma escola-referência. Pegue os Recursos Educacionais Abertos
(REA), ou o Projeto Folhas, da secretaria de Educação do estado do
Paraná: não tem mais livros-textos na aula. Eles selecionaram
professores voluntários, dispostos a elaborar textos com o que acham que
as crianças querem aprender, pensando junto com elas. Deram ano
sabático para eles poderem se dedicar, e cada texto é elaborado por
esses professores junto com os alunos, numa produção online. Eles contam
com núcleos universitários de apoio para as dúvidas técnicas, e
triangulam isso permanentemente com a secretaria de Educação. Vão assim
construindo de forma colaborativa, e incluindo os eixos de interesse dos
alunos. Quando aparece uma bobagem, é corrigida na hora: não dá
escândalo, a Folha de São Paulo não pode fazer uso político de um erro
no livro-texto. E mais, quando surge uma nova pesquisa o professor recebe uma notinha
no e-mail, dizendo: “atualize tal coisa no livro.” Os professores vivem
a educação, participam do que estão ensinando. E o sentimento do aluno é
de que está trabalhando online, com coisas relevantes. Ele
aprende a trabalhar por problema. Um texto sobre água, por exemplo: água
é vida, é lazer, água é meio de transporte, irrigação, cultura e
dinâmica ambiental. Podemos, sim, ir além das disciplinas, do
conhecimento fatiado.
É uma revolução, e está acontecendo – sempre com muita resistência,
da mesma maneira que na área comercial as grandes corporações resistem.
Estou batalhando aqui na PUC para adotarem o OCW – o que seria óbvio. É
patético que ainda tenhamos que tirar xerox de um capítulo, e não do
livro inteiro, porque não pode. Para o aluno, que tem uma bagagem
pequena, é ruim ler um capítulo isolado. Assim trabalhamos, em pleno
século XXI, quando outros países já estão em outra fase: nesses poucos
anos, só no OCW-MIT, mais de 50 milhões de textos foram baixados.
Imagine a contribuição ao conhecimento planetário. E os professores
passaram a se sentir mais úteis, sem esperar “pontinhos” por publicação.
Isso configura uma revolução na economia?
O que acontece é que todo o referencial está mudando. Por exemplo: o
que estou falando para você não tira nada de mim, e pode acrescentar
algo de valor a você. Mais: falando, eu penso, “não tinha percebido tal
coisa”. E você vai recriar o que eu disser. Essa máquina aqui [um gravador digital]
deve ter 3% de matéria-prima e trabalho físico, 97% é conhecimento
incorporado – design, pesquisa etc. No mundo, hoje, 3/4 do valor dos
produtos é conhecimento incorporado. Quanto mais se generaliza conhecimento, mais se enriquece a humanidade. Pense no conceito dos economistas – de que economia é a alocação ótima de recursos escassos.
Como perceber a economia quando o recurso deixa de ser escasso, e além
disso pode ser retransmitido livremente, instantaneamente, sem custos,
pois as ondas eletromagnéticas são da natureza? E com custos de
transação praticamente nulos? E não é uma inundação, o conhecimento pode
circular pelo planeta e ser acessado de maneira inteligente por meio de
algoritmos que permitem foco e seleção precisos. Esse é o tamanho da
revolução da chamada economia do conhecimento. O conhecimento é um fator
de produção cujo consumo não reduz o estoque.
E começamos a assistir ao uso das redes sociais para a mobilização política. Como vê isso?
O pano de fundo mais amplo para toda essa mobilização, além do twitter
e das manifestações, é que os pobres hoje não são mais como os pobres
de antigamente. Quando de meu primeiro trabalho, como jornalista do
Jornal do Comércio do Recife, na área rural, pobre era sim, sinhô pra tudo, resignado, analfabeto. Hoje ninguém mais está dizendo sim, sinhô.
Passando por África, bem no interior, encontrei um descalço, indo a
pé, com seu turbante. Tinha havido uma ruptura de chuvas – uma seca,
falta de água para a colheita seguinte. Perguntei: “como vocês vão fazer
com a safra?” Ele olhou para mim com tranquilidade e disse:
“quero saber o que vocês vão fazer.” Viu meu carro, que sou branco, da
capital… São muitos os informados, sabem que podem ter acesso a uma
saúde decente para os filhos, direitos de cidadania. É um despertar
prodigioso.
Há algumas cifras de referência que são úteis: somos sete bilhões de
habitantes no planeta, dos quais quatro bilhões são “pessoas que não têm
acesso aos benefícios da globalização”– como diz o Banco Mundial,
educadamente, pois não gosta de dizer “pobres”. Um bilhão dessas pessoas
passa fome, e 180 milhões são crianças. Destas, entre 10 e 11 milhões
são reduzidas à morte, todo ano. São dados recentes da Unicef e da FAO.
Não estamos matando, estamos deixando morrer, isso porque temos os
recursos, os conhecimentos, as tecnologias.
Estamos vendo morrer 12 milhões de pessoas no Chifre da África, de AIDS já
morreram 25 milhões – e estamos discutindo o valor das patentes. É
insustentável. Em paralelo, há facilidade de adquirir informações que
mudam a atitude das pessoas. Esses 2/3 da população mundial reduzidos à
miséria estão em grande parte nas cidades, não mais isolados no campo.
No Brasil, 96% dos domicílios têm tevê. Celular, então…
Mesmo considerando que a tevê informa mal, deforma?
Sem dúvida informa mal – mas as coisas chegam, circulam. Digamos que,
com essa expansão do acesso ao conhecimento e acesso inteligente das
mensagens, as pessoas podem traduzir o seu desespero individual na
compreensão de que se trata de um processo social e não de sua própria
incapacidade. Os pobres estão começando a compreender. Um padre
latino-americano me falou certa vez: “se ajudo um pobre, dizem que sou
santo; se pergunto por que razão ele é pobre, dizem que sou comunista.”
Achei interessante…
De um lado temos esse imenso desafio ambiental – as situações
críticas que estamos provocando; e de outro o desafio social – que está
explodindo: até os índios Aymara estão se mobilizando. E tem um terceiro
eixo, o caos financeiro que estão gerando, a desorganização do sistema
produtivo. São tão gananciosos que querem fazer dinheiro com dinheiro,
não sabem sequer financiar de maneira inteligente o processo produtivo,
para ser remunerados com ele.
Estamos começando a entender as sinergias. Por exemplo, o permafrost
da Sibéria, aquele gelo acumulado há séculos sobre toda a Sibéria, que
não derretia no verão, só em parte, mas se mantinha congelado e branco, e
portando refletia o calor – derreteu com o aquecimento global. São
milhões de quilômetros quadrados hoje escuros, que absorvem, a invés de
refletir o calor – gera-se um feedback do processo de aquecimento.
Começamos a entender como interagem os diversos processos. É um exemplo a
mais. Hoje entendemos a seriedade das situações, porque tudo está sendo
estudado, e porque nos últimos anos e nas últimas décadas se fechou a
fronteira estatística do planeta. Sabemos o que está acontecendo.
Como assim?
Não há mais “buraco negro” – regiões da África em que não se sabia
quanta população há, por exemplo. Está tudo mapeado. Com o cruzamento
dessas informações a gente consegue entender: estamos destruindo a água,
que já é chamada de ouro azul. Em 200 anos teremos liquidado com o
petróleo, que se acumulou em 200 milhões de anos. O petróleo fácil acaba
nos próximos 20 anos. Liquidar com o petróleo, uma preciosidade que
deve servir às gerações futuras da humanidade, para andar de moto e
jet-ski ou ficar parado nas avenidas… haja bom senso!
Temos a liquidação da cobertura florestal do planeta – agora o eixo
principal do desmatamento está na Indonésia. O Brasil conseguiu uma
vitória fantástica, com Marina Silva e depois com Carlos Minc, que foi
reduzir de 28 mil km² para 7 mil km² o desmatamento anual da Amazônia.
Continua sendo um desastre, mas foi uma vitória. O governo Lula foi o
primeiro a não colocar ministros do meio ambiente decorativos.
Pegando segmento por segmento, a gente constata os desastres, como
por exemplo o da destruição da biodiversidade. Passamos a entender que
as cadeias alimentares são todas conectadas, uma colabora com a outra,
uma vive da outra – e fomos cortando uma por uma. No plano dos oceanos,
como estamos emitindo mais dióxido de carbono, os oceanos absorvem mais e
se tornam mais ácidos; com isso, fica reduzida a capacidade de formação
óssea de tudo o que exige cálcio, como as conchas e os corais.
Tem um livro belíssimo do Fred Pearce, When Rivers Run Dry,
Quando os ricos secam, em que ele conversa com grandes agricultores
indianos. Eles têm bombas que puxam 12 metros cúbicos de água por hora, a
350 metros de profundidade, muito mais que a capacidade de reposição do
sistema de chuvas local; o argumento é: “se não for eu, vai ser outro”.
A pedido do governo africano, fui falar com uma empresa de pesca que
estava exaurindo os recursos pesqueiros da África Ocidental. O argumento
foi o mesmo: “meu amigo, tenho 100 milhões de dólares empatados em
pesca industrial, tenho que recuperar o meu, e, francamente, se não for
eu…”. Há uma corrida para ver quem chega primeiro, antes que acabe. Em
nome do liberalismo econômico.
Será possível construir uma governança global para cuidar do planeta?
Estamos frente a uma mudança necessária de governança, o processo
decisório tem que mudar. Globalmente. Na sua hierarquia completa, nos
seus problemas planetários, cada problema planetário sendo enfrentado em
cada cidade.
Em São Paulo andamos de carro a 14 km/h, em primeira e segunda. O
paulistano perde 2h40m por dia em deslocamento no trânsito. O transporte
individual sai imensamente caro, polui e as pessoas não se movem.
Estive agora na China: Xangai tem 420 km de metrô. O trajeto diário
escola-trabalho-casa, todo mundo no mesmo horário, é chutado para
debaixo da terra, por eletricidade, que não polui. Estive em Beijin,
Xangai e outras cidades, vi poucas motos movidas a gasolina: é tudo
elétrico. Aqui no Brasil essa moto não entra por interesses das empresas
tradicionais, japonesas e outras. O equivalente de uma Biz, só que
elétrica, custa na China 350 reais. Um motorzinho elétrico, uma
bateria, o resto é lataria e borracha. E não polui. A moto no nosso
trânsito emite o equivalente a 6 carros.
O grande vetor dessa mudança necessária é o acesso ao conhecimento e à
informação. Por que as pessoas aceitam pagar 160% de juros do cheque
especial ao ano, no Santander? Porque elas não sabem que na Espanha o
mesmo cheque especial, até 5 mil euros, custa 0% por 6 meses. As pessoas
ignoram, por exemplo, que quando você compra vitamina C numa caixinha, o
conteúdo efetivo de ácido ascórbico custou à empresa apenas três
centavos. O resto é embalagem, publicidade – “uma tampinha que faz
‘poc’” – daí que apenas 1/3 da população tenham acesso à vitamina C.
A base produtiva dos países está mudando. Antigamente eram bens
essencialmente materiais, hoje o principal eixo de atividade econômica
não é indústria, não é agricultura – atividades por excelência do século
XX. A gente sabe o que é agricultura e indústria, todo o resto chamamos
de serviços, e dentro de serviços o que se vai encontrar são as
políticas sociais: saúde, educação, cultura, segurança, habitação,
esporte, lazer. Que são densos em mão de obra, em interações pessoais, e
portanto densos em organização social.
O maior setor econômico dos Estados Unidos, hoje, 17% do PIB, é
saúde. As atividades estão se deslocando para essa área, que funciona de
maneira diferente: não se põe saúde em container, não tem concorrência
da China. O IPad é feito na China, mas a educação, não.
Quais são os sistemas que funcionam no Brasil? Pastoral da Criança,
Programa de Saúde da Família – porque política social é contato, é
professor com aluno, são sistemas em rede, horizontais. Há um
deslocamento planetário dos empregos, das atividades econômicas para os
chamados bens de valor imaterial, e o imaterial casa muito bem com
sistemas participativos descentralizados, gestão local, políticas
urbanas, sistemas em rede. Isso significa que os movimentos sociais têm
como crescer, não porque a gente é de esquerda e gosta de Ong, mas
porque funciona. Não há uma organização no Brasil que se compare, em
competitividade, com a Pastoral da Criança: com R$ 1,70 por criança/mês,
atingiram 50% de redução de mortalidade infantil, 80% de redução de
hospitalizações. Os planos de saúde comerciais ficam indignados com a
eficiência do terceiro setor, os velhos interesses buscam criminalizar
os movimentos sociais.
Não podemos olhar o século XXI com o olhar do século XX. Há um
deslocamento intersetorial de onde estão os empregos e as atividades. O
que leva à sociedade em rede, a Manuel Castells, a todas essas
compreensões da reestruturação da sociedade.
E isso potencializa a mobilização política?
Isso gera uma base econômica para a sociedade articulada.
Quando se produz tênis Nike, vai para fábrica, volta para casa e não
organiza nada; despacha por conteiner, vende nas lojas, nos shoppings.
Quando faz sistemas sociais, você articula a sociedade e a torna forte.
Isso gera uma apropriação da política pela base da sociedade.
Uma coisa interessante: a Suécia, que é muito adiantada nesses
processos, tem uma taxa de impostos elevada, de 60% – a nossa é baixa,
de 35%. No entanto, de toda a massa de dinheiro dos impostos, de recurso
público, 72% são administrados em nível local, diretamente com as
comunidades. É uma política apropriada pela base, tem um aprofundamento
da democracia, como em Boaventura dos Santos.
Gostaria de recomendar o meu pequeno livro Poder Local, da
Brasiliense, e meu estudo As políticas sociais e transformação da
sociedade, que ajudam a entender essa dinâmica. Está tudo no meu blog. No
ensaio Democracia Econômica, também online, faço um painel de 20 eixos
de grandes transformações. É um livro pequeno. Aliás, fiz um grande, A
Reprodução social, e aí os alunos disseram: “professor, livro que fica
de pé?!”. Nunca tinha pensado nesse critério.
O senhor é otimista em relação ao futuro?
Sou um pessimista ativo, digamos, faço tudo para as coisas
melhorarem. Não acredito que haja pessoas boas e pessoas más – todos
temos dimensões boas e más. Trata-se de criar instituições que tirem o
melhor de nós. Há espaço para isso: estou vendo a multiplicação das
organizações da sociedade civil, o surgimento da mídia alternativa, a
conscientização sobre os desafios planetários, a indignação com a
desigualdade, o funcionamento das políticas redistributivas. Só que uma
coisa são as dinâmicas que melhoram os processos, e outra é a janela de
tempo que temos – o petróleo está acabando, os mares estão contaminados,
os rios nem se fala, as florestas estão acabando, a biodiversidade vai
para o brejo e o clima está explodindo.
Haverá tempo?
É complicado, porque são processos de inércia muito profunda. Tome a
imagem do Titanic: o cara vê o iceberg a 2 km, que é longe; mas 2 km
para o Titanic já era, porque até ele começar a mudar de rumo, não dá
tempo. Se começarmos a mudar um conjunto de emissões de dióxido de
carbono hoje, até 2040 não mudou nada, as condições já estão dadas.
O Lester Brown, que é o melhor estudioso desses problemas, trabalha
com a visão de que não sabemos onde vai se dar a ruptura. Como estão se
exaurindo os aquíferos, muitos países, particularmente no Oriente Médio,
já não têm mais grãos, porque não têm água para os cultivos, e então se
tornaram importadores. Conforme vão se acelerando as contaminações e a
liquidação dos aquíferos, haverá uma bolha alimentar. Já existe no
planeta um bilhão de pessoas passando fome, e pode haver uma explosão
muito mais violenta. Há necessidade de mudar o paradigma energético:
estamos investindo mais em aeroportos, enquanto a Europa já saiu do
aeroporto e está indo para os trens, está reduzindo a velocidade.
É difícil saber onde vai se gerar uma ruptura sistêmica e quais as
conexões intersistêmicas dessas rupturas. A atitude é a da chamada
precaução: tudo o que gera uma sociedade mais informada é legal, tudo o
que articula, organiza a sociedade e lhe dá instrumentos de controle é
bom, tudo que tira as patas das corporações de dentro do governo é bom. O
que conscientiza, o que gera sistemas educacionais, o que gera um
sistema aberto de acesso ao conhecimento, reduz patentes e copyright –
são coisas que efetivamente podem funcionar, melhoram a resiliência do
conjunto.