quinta-feira, 27 de junho de 2013

Sonhos de calor humano

20/06/2013 - 03h00

Na sexta-feira passada, estreou o último filme de Richard Linklater, "Antes da Meia-Noite", que eu estava aguardando. Mas, enquanto as ruas pegam fogo, é difícil escrever sobre o amor.

As manifestações que se espalharam (e seguem se espalhando) por São Paulo e por outras cidades do país me impressionaram pela rapidez com a qual o protesto, supostamente motivado pelo aumento das passagens de ônibus, tornou-se expressão de outras insatisfações, profundas e cruciais --contra a má qualidade e a má gestão do que é público, contra a insegurança de nossas ruas, contra a corrupção, contra o mistério nacional que resulta em produtos caros e salários baixos, contra os políticos com sua falta de competência e seu excesso de promessas, contra o desperdício da Copa que vem aí, contra a lentidão e a ineficácia da Justiça, que parece que late e nunca morde etc.

Domingo, num café de família, verifiquei, aliás, que as passeatas da semana passada não eram mais (se é que foram no começo) a manifestação de uma geração ou de uma classe social (e ainda menos de um partido).

Todos parecem cansados de uma cantilena ufanista que quase nos adormeceu: o discurso do Brasil que dá certo, que cresce (?), que está no caminho, que resistiu à crise enquanto os outros se deram pior, que acabou com a miséria (?) etc.

Levantando a cabeça atordoada pela propaganda, a gente pergunta: isso aqui é mesmo tudo o que conseguimos ser, como sociedade?

As manifestações da semana são frutos de um descontentamento bem justamente brasileiro. Ao mesmo tempo, elas pertencem a uma voz popular que se expressa, mundo afora, há tempo --e não só desde Seattle, em 1999.

Paradoxalmente, foi assistindo ao filme de Linklater que me pareceu entender por que somos (e não estamos) insatisfeitos com as sociedades nas quais vivemos.

Linklater filmou uma trilogia: no primeiro filme, "Antes do Amanhecer" (1995), Jesse e Céline descem do trem onde se encontraram para passear por Viena, até eles terem que voltar, no dia seguinte, cada um para seu lugar. No segundo, "Antes do Pôr do Sol" (2004), Jesse está promovendo, em Paris, o livro que ele escreveu sobre seu encontro em Viena com Céline; Céline vai ao lançamento, e eles se reencontram. Em "Antes da Meia-Noite", agora em cartaz, Jesse e Céline se juntaram no fim do filme anterior, tiveram duas filhas e estão de férias na Grécia: o charme das conversas passadas se transformou num pesadelo, em que uma oposição estéril, abstrata e inexplicável parece ser o destino a longo prazo de qualquer conversa de casal. Ou seja, o amor é o encanto de um encontro, um sonho: quando ele se realiza como convivência, ele pode durar, mas será facilmente cômico e sempre insuficiente.

Ora, essa verdade do amor talvez valha para qualquer projeto de convivência social. A sociedade que nos parece certa, que desejamos, existe na mágica do encontro e do sonho (o momento da manifestação, da militância). Como acontece com o amor, a realização dessa sociedade é sempre insatisfatória --claro, às vezes ela é um pesadelo absoluto e totalitário, outras vezes ela é parecida com aqueles casamentos que continuam porque ninguém acredita que a coisa possa melhorar e porque ninguém está a fim de ficar sozinho.

Ao longo de alguns séculos, o indivíduo se tornou para nós mais importante do que a comunidade.

 Esse período teve seu ápice no começo da modernidade. Paradoxalmente, logo quando o indivíduo passou a encabeçar nossos valores, a gente começou a idealizar o amor romântico como doação perfeita de cada um ao outro.

Da mesma forma, quando começamos a inventar as regras e as formas de uma sociedade de indivíduos separados e autônomos, logo naquele momento começamos a sonhar com o abraço de comunidades unidas e fraternas.

Ou seja, quanto mais prezamos o indivíduo, tanto mais sonhamos com o amor e o ideal comunitário.
Esse paradoxo nos define. Estamos em conflito permanente entre nossa aspiração individual e nossos sonhos amoroso e comunitário. Em matéria de amor, a consequência parece chata (nunca dá certo).

Mas em matéria de sociedade, sorte nossa: de vez em quando, podemos nos acomodar, mas nunca somos satisfeitos com a sociedade que conseguimos construir.
Melhor assim.
Contardo Calligaris Contardo Calligaris, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas na versão impressa de "Ilustrada".

Qual baderna?

27/06/2013 - 03h00

 
Em agosto de 1792, Maria Antonieta devia achar que os que se juntavam na frente das Tuileries eram baderneiros ignorantes.

Em dezembro de 1773, o governador inglês da província de Massachusetts devia pensar a mesma coisa dos "filhos da liberdade", que se disfarçavam de índios, subiam nos navios, jogavam o chá no mar e não queriam pagar os impostos.

Na época, Samuel Adams explicou que, mesmo se esses homens fossem apenas vândalos descontrolados, eles seriam, de fato, os defensores dos direitos básicos do povo das colônias.
A maioria dos paulistanos (e, suponho, dos brasileiros) pensa como Samuel Adams e deseja que as manifestações continuem, por uma razão que está muito além da tarifa dos ônibus: a relação do poder público com os cidadãos do Brasil é, sistematicamente, há muito tempo, de descaso e desrespeito, se não de abuso.

A escola e a saúde públicas são o destino resignado dos desfavorecidos. A insegurança se tornou uma condição existencial, tanto no espaço público quanto dentro da própria casa de cada um. O atraso da Justiça garante impunidades iníquas.

Claro, nossa arrecadação per capita é menos de um terço da dos EUA, por exemplo. Ou seja, talvez tenhamos os serviços públicos que podemos nos permitir.

Convenhamos, seria mais fácil aceitar essa triste realidade 1) se a corrupção não fosse endêmica e capilar, especialmente na administração pública, 2) se os governantes baixassem o tom ufanista de nossos supostos progressos e sucessos, 3) se a administração pública não fosse cronicamente abusiva e desrespeitosa dos cidadãos e de seus direitos.

Além disso, o dinheiro no Brasil compra uma cidadania VIP, na qual não só escola, saúde e segurança são serviços particulares, mas a própria relação com a administração pública é filtrada por um exército de facilitadores e despachantes.

A sensação de injustiça é exacerbada pela constatação de que muitos representantes procuram ser eleitos para ganhar acesso à dita cidadania VIP. Por isso, hoje, circulam aos borbotões, na internet, propostas de reforma política em que, por exemplo, 1) os membros do Legislativo e do Executivo seriam obrigados a recorrer, para eles mesmos e para seus filhos, aos serviços da educação e da saúde públicas, 2) os congressistas não teriam nenhum regime privilegiado de aposentadoria, 3) os congressistas não poderiam votar o aumento de seus próprios salários etc.

Para piorar, os representantes parecem se preocupar pouco com os compromissos de seu mandato e muito com sua própria permanência nos privilégios do poder. Por isso, por exemplo, eles compõem alianças que desrespeitam e humilham seus próprios eleitores.

Nesse contexto espantoso, é patética a indignação com os "baderneiros" e mesmo com a margem de delinquentes comuns que se agregaram às manifestações.

O poder, quando não é efeito de graça divina, vem dos próprios cidadãos e é condicional: só posso reconhecer e respeitar a autoridade que me reconhece e me respeita. Uma autoridade que me desrespeita merece uma violência equivalente à que ela exerce contra mim.

Além disso, é bom não perder o senso das proporções. "Olhe, olhe!", grita um repórter, enquanto a tela mostra alguém que foge de uma loja saqueada levando algo no ombro. Tudo bem, estou olhando e não estou gostando, mas minha indignação é mais antiga e por saques muito maiores.

Outro repórter pensa nos coitados que perderão o avião, em Cumbica, por causa dos manifestantes que bloqueiam o acesso ao aeroporto. Mas o verdadeiro desrespeito é o de nunca ter construído uma linha de trem entre São Paulo e o maior aeroporto do país.

O ministro Antonio Patriota se declarou indignado com o vandalismo contra o Palácio do Itamaraty. Com um pouco de humor negro, eu poderia suspeitar que os apedrejadores talvez tenham precisado um dia dos serviços de um consulado no exterior. Mas, deixemos. Apenas pergunto: se esses forem vândalos, então o que são, por exemplo, os latifundiários desmatadores da Amazônia?

Enfim, à presidenta Dilma gostaria de dizer: não acredito que os "baderneiros" das últimas semanas tenham envergonhado o Brasil --nem mesmo quando alguns depredaram o patrimônio público.

Presidenta, você sabe isto mais e melhor do que muitos de nós: o que envergonha o Brasil é uma outra baderna, bem mais violenta, que dura há 500 anos e que gostaríamos que parasse.
Contardo Calligaris Contardo Calligaris, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas na versão impressa de "Ilustrada".

quarta-feira, 26 de junho de 2013

José Padilha: Os parasitas

25/06/2013 - 03h30

Existe um campo da biologia, chamado de relações ecológicas, que estuda os diferentes tipos de interação entre organismos vivos. Uma das mais interessantes é entre parasitas e hospedeiros. Os parasitas evoluem para sugar a energia vital dos hospedeiros e a usam em proveito próprio. Já os hospedeiros evoluem no sentido contrário, buscando resistir aos parasitas. É uma guerra evolutiva.
Os protestos no Brasil podem ser vistos sobre essa ótica. A população brasileira sustenta vários parasitas, que vão de uma classe política corrupta a uma polícia brutal. Quase toda a estrutura do Estado opera de forma parasitária, usurpando dos brasileiros parte significativa de seu trabalho e energia, na forma de corrupção e de impostos em excesso.

Não deixa de ser revelador o fato de os protestos terem começado como uma manifestação contra um aumento nas tarifas de ônibus. Afinal, todo brasileiro bem informado sabe que, embutido no preço do ônibus, quase sempre há a caixa de campanha, o por fora que é acertado com as empresas de ônibus --a parcela dos parasitas.

Não me surpreende que os protestos tenham um lado violento. A relação parasita-hospedeiro é sempre desse tipo. O que acontece em nossos hospitais, presídios, delegacias e gabinetes de políticos é também uma violência, mata muita gente. O que, evidentemente, não justifica a violência dos hospedeiros, mas certamente explica em parte de onde ela vem.

Outra relação ecológica interessante, e também importante para se entender o Brasil, é a da simbiose. Ela ocorre quando dois ou mais organismos interagem de forma a se beneficiar mutuamente.
No Brasil, a classe política dominante e os grandes grupos econômicos que fornecem bens e serviços ao Estado tendem a se relacionar dessa forma. Políticos criam demanda por grandes obras, montam licitações de forma a viabilizar estouros orçamentários. Grandes empreiteiros falsificam concorrências e emplacam orçamentos absurdos. Os hospedeiros pagam a conta.

Essa é a essência da nossa ecologia: somos hospedeiros, constantemente predados por grupos econômicos e partidos políticos que descobriram uma estratégia simbiótica de se retroalimentar às nossas custas.

O que vai acontecer agora? Se formos buscar inspiração na biologia, quando o hospedeiro reage, o parasita tem que se adaptar para sobreviver. A primeira tentativa nesse sentido foi a da camuflagem, com a presidente Dilma dando a deixa para a classe política: vamos elogiar os manifestantes, como se não fizéssemos parte dos processos parasitários contra os quais eles se insurgem.

Outros parasitas se fingem de mortos, para ver se os hospedeiros os esquecem, apostando que as manifestações não terão real influência na estrutura de poder do país. Finalmente, há os parasitas cínicos, que vão tentar se juntar aos hospedeiros e surfar na onda das manifestações, apresentando-se como alternativa.

Todas as estratégias têm boa chance de sucesso, dado que as manifestações não são propositivas. Mesmo assim, elas nos dão alguma esperança, porque mostram que, quando os hospedeiros se manifestam, conseguem o que querem. Foi assim com Collor e está sendo assim com a tarifa dos ônibus. Resta saber se existem forças na sociedade capazes de fornecer aos hospedeiros alguma estratégia de mudança em que possam se apoiar.

JOSÉ PADILHA, 45, cineasta, é diretor de "Ônibus 174", "Tropa de Elite" e "Tropa de Elite 2"

terça-feira, 25 de junho de 2013

Encanto e espanto

07/06/2013 - 03h30

FSP Marina Silva
 
Por esses dias, o "meio ambiente" de tantas viagens não me foi favorável: entrando e saindo em aeronaves e salas climatizadas ou espaços com grande número de pessoas, acabei por contrair uma forte gripe. Tive que ver pela internet o debate, no Dia Mundial do Meio Ambiente, sobre as implicações das emissões de CO² terem atingido a marca histórica de 400 partes por milhão, anunciando mais aumento na temperatura da Terra.

No debate, o cientista Antonio Nobre nos encantou e também nos espantou com sua poética e detalhada exposição. A descrição científica dos processos que sustentam e promovem a vida no planeta revelam o quanto é ilusória a ideia de infinitude e onipotência humanas quando nossa atmosfera, o clima, a biodiversidade e a fertilidade dos solos se sustentam numa complexa e frágil rede de relações e condições físicas, químicas e biológicas.

O assombro é maior quando vemos que existem novas e dramáticas evidências do aquecimento e das mudanças climáticas nos últimos anos.

Céticos ou apenas interessados em não enxergar, os condutores da política e da economia guiam-se uns aos outros e empurram a humanidade para o desastre.

No mesmo dia, nossa presidente Dilma se esmerou, numa solenidade burocrática, para fazer seu protocolar discurso sobre a data. Anunciou dados antigos sobre o desmatamento, ignorando indicadores recentes que revelam aumento e descontrole do desmatamento na floresta amazônica e na mata atlântica.

Anunciou planos de mitigação das mudanças no clima prontos há quase um ano e que preveem aumento das emissões até 2020, e não redução. Também usou as hidrelétricas a fio d'água, necessárias para "reduzir" o tamanho dos lagos, para justificar a injustificável opção do governo pelas poluentes e caras termelétricas ao excluir as eólicas do próximo leilão, em agosto.

A superficialidade dos discursos oficiais contrasta com a dramaticidade do aumento da frequência de eventos climáticos extremos, como enchentes no Amazonas e seca no Nordeste. Não precisamos denunciar o retrocesso na política ambiental, a realidade o faz.

Outro dia, em Porto Alegre, um militante me mostrou seu cartaz com a frase "respeitar o meio ambiente é amar ao próximo". Fiquei pensando na resposta emocional que está na base dos nossos posicionamentos sociais, políticos e econômicos. Nas campanhas, todos são tão emocionados! Depois ficam céticos, pragmáticos, burocráticos... enfáticos, só em fazer mais do mesmo.

Não desejo a ninguém os rigores e a fúria de um ambiente maltratado. O que desejo e recomendo a todos é uma boa e científica dose de encanto e espanto, para que assim, quem sabe, possamos acordar.
 

Carta aberta do Movimento Passe Livre

À Presidenta Dilma Rousseff,

Ficamos surpresos com o convite para esta reunião. Imaginamos que também esteja surpresa com o que vem acontecendo no país nas últimas semanas. Esse gesto de diálogo que parte do governo federal destoa do tratamento aos movimentos sociais que tem marcado a política desta gestão. Parece que as revoltas que se espalham pelas cidades do Brasil desde o dia seis de junho tem quebrado velhas catracas e aberto novos caminhos.


O Movimento Passe Livre, desde o começo, foi parte desse processo. Somos um movimento social autônomo, horizontal e apartidário, que jamais pretendeu representar o conjunto de manifestantes que tomou as ruas do país. Nossa palavra é mais uma dentre aquelas gritadas nas ruas, erguidas em cartazes, pixadas nos muros. Em São Paulo, convocamos as manifestações com uma reivindicação clara e concreta: revogar o aumento. Se antes isso parecia impossível, provamos que não era e avançamos na luta por aquela que é e sempre foi a nossa bandeira, um transporte verdadeiramente público. É nesse sentido que viemos até Brasília.

O transporte só pode ser público de verdade se for acessível a todas e todos, ou seja, entendido como um direito universal. A injustiça da tarifa fica mais evidente a cada aumento, a cada vez que mais gente deixa de ter dinheiro para pagar a passagem. Questionar os aumentos é questionar a própria lógica da política tarifária, que submete o transporte ao lucro dos empresários, e não às necessidades da população. Pagar pela circulação na cidade significa tratar a mobilidade não como direito, mas como mercadoria. Isso coloca todos os outros direitos em xeque: ir até a escola, até o hospital, até o parque passa a ter um preço que nem todos podem pagar. O transporte fica limitado ao ir e vir do trabalho, fechando as portas da cidade para seus moradores. É para abri-las que defendemos a tarifa zero.

Nesse sentido gostaríamos de conhecer o posicionamento da presidenta sobre a tarifa zero no transporte público e sobre a PEC 90/11, que inclui o transporte no rol dos direitos sociais do artigo 6o da Constituição Federal. É por entender que o transporte deveria ser tratado como um direito social, amplo e irrestrito, que acreditamos ser necessário ir além de qualquer política limitada a um determinado segmento da sociedade, como os estudantes, no caso do passe livre estudantil. Defendemos o passe livre para todas e todos!

Embora priorizar o transporte coletivo esteja no discurso de todos os governos, na prática o Brasil investe onze vezes mais no transporte individual, por meio de obras viárias e políticas de crédito para o consumo de carros (IPEA, 2011). O dinheiro público deve ser investido em transporte público! Gostaríamos de saber por que a presidenta vetou o inciso V do 16º artigo da Política Nacional de Mobilidade Urbana (lei nº 12.587/12) que responsabilizava a União por dar apoio financeiro aos municípios que adotassem políticas de priorização do transporte público. Como deixa claro seu artigo 9º, esta lei prioriza um modelo de gestão privada baseado na tarifa, adotando o ponto de vista das empresas e não o dos usuários. O governo federal precisa tomar a frente no processo de construção de um transporte público de verdade. A municipalização da CIDE, e sua destinação integral e exclusiva ao transporte público, representaria um passo nesse caminho em direção à tarifa zero.

A desoneração de impostos, medida historicamente defendida pelas empresas de transporte, vai no sentido oposto. Abrir mão de tributos significa perder o poder sobre o dinheiro público, liberando verbas às cegas para as máfias dos transportes, sem qualquer transparência e controle. Para atender as demandas populares pelo transporte, é necessário construir instrumentos que coloquem no centro da decisão quem realmente deve ter suas necessidades atendidas: os usuários e trabalhadores do sistema.

Essa reunião com a presidenta foi arrancada pela força das ruas, que avançou sobre bombas, balas e prisões. Os movimentos sociais no Brasil sempre sofreram com a repressão e a criminalização. Até agora, 2013 não foi diferente: no Mato Grosso do Sul, vem ocorrendo um massacre de indígenas e a Força Nacional assassinou, no mês passado, uma liderança Terena durante uma reintegração de posse; no Distrito Federal, cinco militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) foram presos há poucas semanas em meio às mobilizações contra os impactos da Copa do Mundo da FIFA. A resposta da polícia aos protestos iniciados em junho não destoa do conjunto: bombas de gás foram jogadas dentro de hospitais e faculdades; manifestantes foram perseguidos e espancados pela Polícia Militar; outros foram baleados; centenas de pessoas foram presas arbitrariamente; algumas estão sendo acusadas de formação de quadrilha e incitação ao crime; um homem perdeu a visão; uma garota foi violentada sexualmente por policiais; uma mulher morreu asfixiada pelo gás lacrimogêneo. A verdadeira violência que assistimos neste junho veio do Estado – em todas as suas esferas.

A desmilitarização da polícia, defendida até pela ONU, e uma política nacional de regulamentação do armamento menos letal, proibido em diversos países e condenado por organismos internacionais, são urgentes. Ao oferecer a Força Nacional de Segurança para conter as manifestações, o Ministro da Justiça mostrou que o governo federal insiste em tratar os movimentos sociais como assunto de polícia. As notícias sobre o monitoramento de militantes feito pela Polícia Federal e pela ABIN vão na mesma direção: criminalização da luta popular.

Esperamos que essa reunião marque uma mudança de postura do governo federal que se estenda às outras lutas sociais: aos povos indígenas, que, a exemplo dos Kaiowá-Guarani e dos Munduruku, tem sofrido diversos ataques por parte de latifundiários e do poder público; às comunidades atingidas por remoções; aos sem-teto; aos sem-terra e às mães que tiveram os filhos assassinados pela polícia nas periferias. Que a mesma postura se estenda também a todas as cidades que lutam contra o aumento de tarifas e por outro modelo de transporte: São José dos Campos, Florianópolis, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Goiânia, entre muitas outras.

Mais do que sentar à mesa e conversar, o que importa é atender às demandas claras que já estão colocadas pelos movimentos sociais de todo o país. Contra todos os aumentos do transporte público, contra a tarifa, continuaremos nas ruas! Tarifa zero já!

Toda força aos que lutam por uma vida sem catracas!

Movimento Passe Livre São Paulo

24 de junho de 2013

domingo, 23 de junho de 2013

Simbolismo compartilhado na revolta mundial da juventude











"...não se trata de pobreza, dizem os manifestantes, é sobre a corrupção, a natureza vergonhosa da democracia, a política de conchavos e uma elite preparada para agarrar a maior parte da riqueza gerada pelo desenvolvimento econômico."

"it is not about poverty, say protesters, it is about corruption, the sham nature of democracy, clique politics and an elite prepared to grab the lion's share of the wealth generated by economic development."

"Assim como em 1989, quando descobrimos que as pessoas na Europa do Leste preferiram a liberdade individual ao comunismo, hoje o capitalismo está tornando-se identificado com a dominação de elites imunes à justiça ​​"

Just as in 1989, when we found that people in East Europe preferred individual freedom to communism, today capitalism is becoming identified with the rule of unaccountable elites”


 
Shared symbolism of global youth unrest

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Aprendizado essencial

21/06/2013 - 03h30

FSP Marina Silva
 
Ninguém deveria estar surpreso, sabíamos que iria ocorrer. A internet ajuda a mudar tudo: a cultura, os negócios, as comunicações. Por que só a política não seria afetada?

Carlos Nepomuceno diz que três fatores ajudaram a transformar o mundo: a impressão em papel, a Revolução Francesa e a independência dos EUA. Eles compuseram a realidade de dois séculos e nos trouxeram até aqui, mas são insuficientes para configurar um mundo com 7 bilhões de pessoas e uma ferramenta que quebra as estruturas convencionais para intermediar a informação, a internet.

Tenho falado, aqui mesmo na Folha, daquilo a que chamo movimentos de borda. Eles se afastam do centro político estagnado, das instituições enrijecidas, das disputas por dinheiro e poder. Neles predomina um ativismo autoral, não mais dirigido por partidos ou lideres carismáticos. A presença destes é residual e produz incômoda sensação de oportunismo. Não há comando único, há relação horizontal e lideranças móveis: hoje lidero, amanhã sou liderado; hoje sou arco, amanhã sou flecha.
Esse ativismo não tem porto, carrega sua âncora e estaciona onde quer. Basta ver quantos sites temporários há na internet, usados numa mobilização ou num momento.

O essencial é perceber o que está latente. Não são os 20 centavos no Brasil, as árvores da praça na Turquia, ou qualquer demanda simbólica visível. O que está em pauta é a democratização da democracia. As pessoas não querem ser meros espectadores, lugar em que foram colocadas pelos partidos que detêm o monopólio da política. Querem ser protagonistas, reconectar-se com a potência transformadora do ato político.

Deve-se reconhecer esse desejo e respeitar o sujeito político que surge. Muitos se apressaram em desqualificar os novos movimentos, os abaixo-assinados, a campanha de defesa das florestas, a solidariedade aos índios, o "Fora Renan". Agora se esforçam para descobrir uma forma de interlocução, mas mantendo a ansiedade de liderar, usurpar, controlar.

Não basta dar 20 centavos para tirar o incômodo da sala. O que está havendo é significativo: no país do futebol, durante a Copa das Confederações, as pessoas protestam contra o custo dos estádios e dizem que queremos nosso dinheiro em saúde e educação.

O Brasil pode aprender a fazer diferente: nem transição eterna e lenta nem ruptura brusca, mas o diálogo produtivo e criativo da democracia ampliada. Temor de vandalismo? Ora, cultivemos uma cultura de paz. Prefiro sentir-me representada pelas pessoas que estão nas ruas, dizendo o que não querem, a exigir que tenham projetos definidos.

Não há salvadores da pátria, há homens e mulheres que trabalham juntos. Que seja este nosso aprendizado essencial, nossa maior mudança.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

A arte do impossível

Marcelo Coelho

"Se vocês não nos deixam sonhar, nós não deixamos vocês dormir", dizia um cartaz na passeata
Havia cartazes sobre quase tudo, e bandeiras das mais variadas, na manifestação de anteontem em São Paulo. Por vezes, não passavam de uma folha de papel de tamanho um pouco maior, sem sinal de representar alguma luta coletiva.

Alguém simplesmente pegava o papel e escrevia o que pensava. "Não são os 20 centavos", dizia um cartaz. Com certeza.

O aumento das tarifas de ônibus, de 6,6%, estava no programa --e, conforme o ano que se tome como base, pode ser qualificado como inferior (ou não) aos índices inflacionários.

Não se reuniriam tantos milhares de pessoas, entre estudantes e gente de cabelo branco, entre garotões de classe alta e adolescentes da periferia, se a PM não tivesse dado o seu "show" de truculência na semana anterior.

Imagino que com a passeata se quis mostrar, acima de tudo, o espírito desarmado da grande maioria --e sua capacidade de fazer, como tantas vezes aconteceu no Brasil, protestos de massa com fraternidade e alegria.

Assim, algumas pessoas acompanharam a passeata com flores brancas nas mãos. A roupa branca, cujo uso se recomendara nas convocações, não chegou a constituir um sucesso. Na parede de um prédio, projetaram-se imagens de Gandhi.

Não foi, entretanto, apenas um protesto contra a violência policial, como não foi só contra o aumento dos ônibus. O governador Alckmin e o prefeito Haddad foram xingados à vontade, é claro. Mas havia outro espírito movendo aqueles milhares de pessoas.

"Se vocês não nos deixam sonhar, nós não deixamos vocês dormir", dizia um cartaz. Ideias desse tipo, com trocadilhos interessantes ou mesmo palavras de ordem genéricas, como a de que "o país acordou", brotavam de todos os lados, um pouco ao estilo de maio de 1968 na França.

Apareceram coisas díspares: cartazes com escritos em inglês ("ônibus free", algo assim) ao lado de bordões verde-amarelos antiquíssimos ("verás que um filho teu não foge à luta"). Pouco importa.
Quiseram as circunstâncias que PT e PSDB se equalizassem no repúdio dos manifestantes. O aumento do ônibus e a violência da PM tiveram um poder que, passe o trocadilho, valeria chamar de "alquímico".

Estava latente a sensação de que os dois grandes rivais da política brasileira se equivalem, cada qual com seus mensalões, sua tecnocracia paralisada, suas promessas cínicas, sua sensatez, seu realismo.
Para que tudo ficasse mais claro, Haddad e Alckmin estavam juntos em Paris. Todo prefeito sabe que, diga-se o que se disser, chega a hora de aumentar o ônibus. Todo governador sabe que, diga-se o que se disser, chega a hora de usar as balas de borracha.

Não me sai da cabeça a foto de Haddad selando, aos sorrisos, seu pacto com Paulo Maluf, na campanha eleitoral. Todos seguem a esfuziante frase com que Fernando Henrique sagrou seu pragmatismo: "A política é a arte do possível".

Pode ser, e tem de ser, a arte do impossível também. É isso o que milhares de manifestantes estavam mostrando na segunda-feira.

De alguma forma, vai-se esgotando a legitimidade de um pragmatismo, de um aliancismo, de um cinismo, de um petismo, de um peessedebismo que nada têm a oferecer em termos de valores e de ideais.

Por isso mesmo, "não são os vinte centavos" o que está em jogo. O pragmatismo que leva a tantas alianças políticas com a direita passa a ser contestado, principalmente pelos mais jovens. São aqueles que também dizem, na internet, que o pastor Feliciano não os representa.

Havia cartazes de cunho bastante "liberal" ou "neo-Fiesp" na passeata. Mensagens contra a corrupção e em defesa de um bom uso do "dinheiro dos meus impostos" eram comuns. De todos os cartazes, entretanto, o de que mais gostei estava sendo levado por uma moça e tinha linguagem chula. Dizia apenas: "Copa é o caralho".

Talvez seja uma boa síntese do momento. É que, a começar dos políticos do PT, vive-se numa espécie de comemoração permanente --o país está ótimo, vivemos um momento extraordinário, construímos estádios e todos estão felizes.

Abaixo a Copa do Mundo, talvez quisesse dizer a moça do cartaz: pelo menos, expressou sua impaciência diante da sorridente enganação geral. É esse sorriso, feito da insensibilidade, do cinismo e do oportunismo de décadas, que a passeata pretende tirar do rosto dos governantes.

coelhofsp@uol.com.br

Manifestações: a falência da representação

20/06/2013 - 03h00

FSP José Luiz Portela

Muita gente diz não entender ainda o que está acontecendo. Não é fácil, pois o movimento é heterogêneo. Não tem a simplicidade nem a linearidade das causas únicas. Há muita coisa lá dentro. Tanto em reivindicações, como em sentimentos.
Demorou, veio em turbilhão, com tudo junto, misturado. Porém, uma coisa é certa: as manifestações marcam a falência do modelo de representação em vigor. Nenhum político é alçado à condição de símbolo. Sem exceção. Nenhum partido nem parlamento. Nenhum representante legitimamente eleito representa o Brasil das ruas.
Vivemos em uma democracia representativa. Partidos foram feitos para representar correntes de pensamento. Aqui, eles existem aos borbotões. O Supremo Tribunal Federal aceitou o modelo "partidos às pencas"; uma equivocada interpretação de que isso seria a democracia. Partidos sem representação alguma, sem votos em várias eleições, que ficam na praça negociando espaços por conta de TV e que recebem fundo partidário.
E, com todos eles, 83% dos jovens são apartidários.
Democracia não é quantidade de partidos. É a quantidade de cidadãos que se sentem representados. Ninguém se sente.
Algo está muito errado. E é o sistema de representação. Com todos os penduricalhos que foram sendo apensados ao longo do tempo, enquanto os líderes políticos repousavam na certeza de que não haveria qualquer questionamento.

Alan Marques - 02.mai.2013/Folhapress
Plenário do Senado Federal vazio
Plenário do Senado Federal vazio
As pessoas cansaram-se de suportar tantas coisas. Cansaram de ser impotentes. E quem deveria lhes dar potência são os respectivos representantes.
O primeiro e principal erro é o sistema proporcional, que separa o eleitor do eleito e aproxima o candidato do agente financiador. Seja ele bom ou mau. Mas é ao financiador que o eleito presta contas. E tenta renovar a confiança. Para se eleger novamente.
A regra do jogo está errada. A melhor solução ao alcance é o voto distrital, que estabelece uma eleição majoritária em cada distrito e obriga o candidato a conviver com seus eleitores, prestar conta para se reeleger.
Outro grande problema que temos engolido é a propaganda política. Em tese, serviria para o eleitor conhecer os candidatos e efetuar a escolha.
É um meio. Passou a ser um fim. Para terem tempo de televisão, os candidatos fazem qualquer coisa para se aliarem a outros partidos. Composições esdrúxulas, encontros constrangedores são a marca da pré-campanha. Tudo isso para entregar, depois, o sacrossanto tempo de propaganda a marqueteiros, que se enriquecem transformando em emoção aquilo que a pesquisa manda o candidato dizer. Pasteurizando as propostas.
Programas de governo, que deveriam ser os fatores a distinguir os candidatos, transformam-se em commodities. E aritmética. Ganha quem faz mais isso ou mais aquilo. É tudo mais do mesmo, com números meio diferentes.

Christophe Simon/AFP
Manifestante convida população a ir para a rua durante protesto contra o aumento do preço das passagens no Rio
Manifestante convida população a ir para a rua durante protesto contra o aumento do preço das passagens no Rio
A verdade é que esse modelo furado faliu. Ninguém no poder fez a lição de casa: bancar com coragem a reforma política. Ela é a mãe de todas as reformas. Porque determina como será o sistema representativo. Quanto melhor ele for, mais os eleitores encontram canais para fazerem valer suas opiniões.
Ganha quem representa melhor a maioria. Atualmente, quase ninguém se sente representado. Eleitos vão e vêm em suas declarações. O Congresso Nacional assiste a tudo em silêncio por não saber como se encaixar na onda de inconformismo que caberia a ele expressar.
As manifestações têm muito a demonstrar, mas, duas coisas, desde logo, ficam claras:
- Recuperamos um tempo perdido. A indignação voltou. E mostrou que vale a pena lutar pelo que se acredita.
- O sistema de representação faliu. Precisamos rapidamente de outro. Precisamos de uma reforma política.

Exaustão

20/06/2013 - 03h30
  
FSP Eliane Cantanhêde

BRASÍLIA - Condenados pelo Supremo têm mandato de deputado e, não bastasse, viram membros da Comissão de Constituição e Justiça.

Um pastor de viés racista e homofóbico assume nada mais, nada menos que a presidência da Comissão de Direitos Humanos na Câmara.

Um político que saíra da presidência do Senado pela porta dos fundos volta pela da frente e se instala solenemente na mesma cadeira da qual havia sido destronado.

O arauto da moralidade no Senado nada mais era do que abridor de portas de um bicheiro famoso. E o Ministério Público, terror dos corruptos, é ameaçado pelo Congresso de perder o papel de investigação.

A chefe de gabinete da Presidência em SP usa o cargo e as ligações a seu bel-prazer, enquanto a ex-braço direito da Casa Civil, afastada por suspeita de tráfico de influência, monta uma casa bacana para fazer, possivelmente... tráfico de influência.

Um popular ex-presidente da República viaja em jatos de grandes empreiteiras, intermediando negócios com ditaduras sangrentas e corruptas.

Um ex-ministro demitido não apenas em um, mas em dois governos, tem voz em reuniões estratégicas do ex e da atual presidente, que "aceitaram seu pedido de demissão".

Ministros que foram "faxinados" agora nomeiam novos ministros e até o vice de um governador tucano vira ministro da presidente petista.

Na principal capital do país, incendeiam-se dentistas, mata-se à toa. Na cidade maravilhosa, os estupros são uma rotina macabra.

Enquanto isso, os juros voltam a subir, impostos, tarifas e preços de alimentos estão de amargar. E os serviços continuam péssimos.

É por essas e outras que a irritação popular explode sem líderes, partidos, organicidade. Graças à internet e à exaustão pelo que está aí.

A primeira batalha foi ganha com o recuo dos governos do PT, do PSDB e do PMDB no preço das passagens. Mas, claro, a guerra continua.