sábado, 28 de dezembro de 2013

Belo Monte: Painel do Leitor da Folha de São Paulo mutila cartas barbaramente



(Nota do Blog): abaixo matéria que enviei, por sugestão do jornalista Marcelo Leite -autor principal da cobertura da FSP sobre Belo Monte-, para a seção Painel do Leitor na Folha de São Paulo. Os editores daquela seção mutilaram meu comentario barbaramente (edição do dia 27/dez/2013 se nao me engano). Que bom que a internet permite recolocar ao alcance de todos a versão original!

 A matéria especial da Folha sobre Belo Monte me impressionou muito. Primeiro a interface, que combinação técnica e artística inusitada e incrível! Depois a narrativa, não menos extraordinária e envolvente. Me vi no canteiro de obras, na volta grande, em Altamira. Por fim, a metáfora, nada é só preto e branco - linear e maniqueísta-, existem sempre múltiplas dimensões nas grandes polemicas. Depois desta matéria tornou-se mais difícil falar de Belo Monte escudando-se em argumentos sectários. Mas para não ficar somente nos elogios, a cobertura sobre o "gigantismo" da obra -a parte civil - me passou um sabor amargo, me remeteu ao ufanismo nacionalista e megalomaníaco da ditadura militar. Para os memes desenvolvimentistas embutidos nos neurônios brasileiros esse lado da matéria é incendiário. Comecei minha carreira profissional justamente dentro das primeiras hidrelétricas Amazônicas, fazendo estudo de impacto ambiental pra inglês ver. Belo Monte me dá aquela sensação de Déjà vu. O problema da matéria, a meu ver, está na falta de comparação. Se fizermos uma comparação da potencia de hidrelétricas com a potencia climática da floresta, veremos que diante da natureza essas estruturas humanas são microscópicas, patéticas. Somente a energia empregada na evaporação de 20 bilhões de toneladas de agua a cada dia na Amazônia - pela transpiração das árvores- é comparável a 50.000 Itapus (ou mais de 200.000 Belo-Montes)!!! Pode parecer uma comparação disparatada, mas não é. Desse motor da grande floresta -esse sim gigantesco- depende o ciclo hidrológico na América do Sul, o que inclui o fornecimento de potencial hidráulico para as principais hidrelétricas do País, Belo Monte incluída. Em pleno regime democrático o modus operandi com relação ao meio ambiente nesta obra –comprovado por inúmeras condenações na justiça- não difere significativamente do trator desenvolvimentista operado pelos militares nos anos de chumbo. Meta mais essa e outras descuidadas abordagens de desenvolvimento no coração da Amazônia, como estão fazendo, e o que resta da floresta irá mais cedo ou mais tarde para o beleléu. E sem floresta acaba a chuva - pra que hidrelétrica?

Antonio Donato Nobre
Pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e do Centro de Ciência do Sistema Terrestre, INPE

sábado, 21 de dezembro de 2013

Ausência do Momento Presente

Estamos vivendo em uma cultura totalmente hipnotizados pela ilusão do tempo, em que o chamado momento presente é sentido como nada além de uma infinitesimal linha fina entre um passado todo-poderoso causador e um futuro absorventemente importante. Não temos presente. Nossa consciência é quase completamente preocupada com a memória e a expectativa. Não nos damos conta de que nunca houve, há, nem haverá qualquer outra experiência do que a experiência presente. Estamos, portanto, sem contato com a realidade. Nós confundimos o mundo como falado, descrito e medido com o mundo que realmente é. Estamos enfermos com um fascínio pelas ferramentas úteis de nomes e números, de símbolos, sinais, concepções e idéias.

Alan Watts

sábado, 14 de dezembro de 2013

Em um mundo empestado de ladrões e exxpertos...

"Eu não me importo que eles roubaram a minha idéia. Eu me importo que eles não tenham qualquer ideia própria"

Nikola Tesla

Pensando nos pactos de mediocridade...

"Tudo o que foi grande no passado foi ridicularizado, condenado, combatido, reprimido - apenas para emergir da luta ainda mais poderoso, ainda mais triunfante."

Nikola Tesla

Corpo humano: galáxia ambulante de sistemas celulares...

"Cada pessoa deveria considerar seu corpo como um dom inestimável, recebido de um a quem ama acima de tudo, uma maravilhosa obra de arte, de beleza indescritível e mistério além da compreensão humana, e tão delicado que uma palavra, um suspiro, um olhar, ou melhor, até um pensamento pode danificá-lo."

Nikola Tesla

Lá onde o vento faz a curva

O paredão dos Andes desvia para o Sul os ventos úmidos da Amazônia, que levam chuva e fertilidade ao pampa argentino e ao centro-sul do Brasil. Agora, o desmatamento acelerado põe em risco esse delicado sistema
José Ruy Gandra
A bomba hidrológica: a corrente de ventos, desviada pelos Andes, carrega as nuvens úmidas da Amazônia para fazer chover nas terras férteis do Centro-Sul brasileiro e no pampa argentino

Na próxima vez que assistir ao Jornal Nacional, atente para a previsão meteorológica. Caso a imagem do satélite traga aquela circulação tipo bumerangue cruzando transversalmente o continente, agradeça. Agradeça ainda mais caso você viva no sudeste do Brasil ou na Argentina.

Segundo o pesquisador Antonio Donato Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), não fosse pelas chuvas que essas nuvens trazem, em especial no verão, todo o quadrilátero demarcado por Cuiabá, São Paulo, Buenos Aires e a cordilheira dos Andes se tornaria, quase certamente, um deserto.

Para Nobre, isso só não acontece por duas razões: a presença dos Andes, cuja altura redireciona o vapor d’água vindo do Atlântico para Sudeste (formando o tal bumerangue), e a evaporação causada pelas árvores da floresta amazônica, que alimenta essa umidade, permitindo que chegue até os Andes e mais adiante, sem se dissipar pelo caminho.


>> Ameaça global
“A Amazônia é uma bomba hidrológica impressionante”, diz Nobre, que viveu 22 anos na região. “Lança diariamente 20 bilhões de toneladas de água na atmosfera, garantindo que uma área responsável por 70% do PIB sul-americano seja devidamente irrigada.”

O avanço do desmatamento, segundo Nobre, não põe em risco iminente apenas esse sistema que confere à América do Sul sua benvinda peculiaridade climática. “O desmate é responsável, sozinho, por 20% de todas as emissões humanas de gás carbônico”, afirma.

Trata-se, portanto, de uma ameaça global. Entidades internacionais recomendam que 2% do PIB mundial seja imediatamente investido em medidas contra o aquecimento. “Se isso não for feito”, diz Nobre, “em 2020 serão necessários 30% desse mesmo PIB somente para lidar com os custos das perdas ligadas a desastres ambientais.”

Mesmo assim, de acordo com Nobre, nada vem sendo feito efetivamente. “A preservação da floresta não deve se subordinar aos interesses do desenvolvimento e da economia, e sim o contrário”, afirma o pesquisador. “Sem a manutenção desse delicado mas poderoso sistema de equilíbrio global, toda a economia irá fatalmente pro espaço.”

Atuando dentro do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em São José dos Campos, Nobre, 50 anos, agrônomo por formação, especialista em biologia tropical e doutorado em biogeoquímica pela Universidade de New Hampshire, concedeu uma longa entrevista à PIB, cujos principais trechos você lê a seguir.

Nela, o pesquisador explica as singularidades de nosso regime climático, analisa a importância da Amazônia em seu funcionamento, condena a mentalidade autista do agronegócio e, mais ainda, o imobilismo dos governos. E adiciona uma agravante: “Ao desmatar a Amazônia, não queimamos árvores, mas sim uma biblioteca viva de altíssima tecnologia e valor incalculável”.


>> A vida regula o clima
“Hoje a ciência começa a aceitar que o sistema biológico condiciona a atmosfera. Isso é novidade.

A meteorologia sempre considerou a biosfera um fator secundário e a atmosfera, o principal. Mas todo oxigênio que respiramos veio das plantas; não temos gases tóxicos na atmosfera graças a inúmeros organismos que os removem; e a manutenção equilibrada do ciclo da água nos continentes depende diretamente dos organismos.

Sabemos que, num processo sofisticadíssimo que ocorre em nanoescala, no nível das moléculas, a fotossíntese é o mecanismo primordial de estabilização climática da Terra. Na fotossíntese, a energia solar é captada e, através de reações químicas, remove gás carbônico da atmosfera e libera oxigênio.

Foi essa troca de gases que moldou a vida e a evolução dos ambientes no planeta ao longo de seus 4 bilhões de anos. Nesse período, a concentração de gás carbônico em nossa atmosfera passou de 95% para 0,039%.

Para onde foi todo esse CO2? O que aconteceu nesse tempo? Sem um poderoso mecanismo de regulação, teria sido impossível que a Terra hoje tivesse água líquida na superfície e que sua temperatura mantivesse uma variação confortável para a vida, uma raridade em termos cosmológicos.

A única explicação para esse fenômeno é a vida. Todos os organismos vivos têm um sistema sofisticado de equilíbrio e autorregulação. Se fora esquenta, eles esfriam, e vice-versa.

Essa capacidade só a vida tem. E as florestas exercem no sistema planetário um papel decisivo. São o maior órgão terrestre de regulação. Têm mecanismos altamente complexos e eficientes, que outros sistemas humanos, como a agricultura, não são capazes de emular.

Dito isso, olhe o mapa-múndi. Nele, sempre na mesma faixa a 30 graus de latitude, em ambos os hemisférios, estão os desertos. O Saara, o Sonoma, o Kalahari, o Atacama, os da Namíbia e da Austrália.

Por quê? Esse fato deve-se a um fenômeno chamado Circulação de Hadley. A parte equatorial do planeta recebe maior radiação solar, é mais quente, evapora muita água e provoca chuvas. Em outras palavras, o ar sobe na faixa do equador, perde umidade e chove.

Quando desce na faixa dos 30 graus, já seco, ele consome a umidade da superfície e contribui na formação dos desertos. Só há duas exceções a essa regra: o sul da China, região próxima ao Himalaia, e a fatia meridional da América do Sul.


>> O radiador verde

A América do Sul é diferente por dois fatores: os Andes e a floresta amazônica. O ar, que nas zonas equatoriais sempre corre de leste para oeste, encontra a barreira andina, um paredão de 6 mil metros de altura.

Ela impede que o ar rico em vapor d’água vindo do Atlântico siga em frente. Esse ar úmido, então, faz uma curva para sudeste e, no verão, vai despejando sua umidade sobre essas regiões – que, sem os Andes, seriam desérticas e sem vida econômica.

A floresta, o segundo fator, é ainda mais importante. Esse vento só consegue viajar por quase 5 mil quilômetros sobre a América do Sul, com umidade suficiente para formar nuvens e chuvas, porque as árvores da Amazônia recebem suas águas, sob a forma de chuvas, mas devolvem a maior parte à atmosfera através da transpiração.

A Amazônia transpira 20 bilhões de toneladas de água por dia. É muita coisa. O Amazonas, o maior rio da Terra e responsável, sozinho, por 20% de toda água doce que chega aos oceanos, lança 17 bilhões de toneladas diárias de água no Atlântico.

É esse vapor criado pela floresta que acentua e prolonga a circulação úmida na América do Sul. A floresta funciona como um evaporador otimizado, pois suas folhas formam uma área de evaporação muito maior que a da própria superfície no solo.

São 10 metros quadrados de folhas para cada metro quadrado de solo. Elas atuam como um radiador na dispersão da umidade. Sem esse auxílio da floresta e de sua transpiração, a massa de ar vinda do oceano não conseguiria manter sua umidade do Atlântico aos Andes e mais adiante.

Se a Amazônia fosse uma região inteiramente agrícola, a massa de ar entraria no continente e choveria. Como não haveria vegetação densa o suficiente, pois o solo agrícola é mais ralo e exposto, essa água não voltaria para a atmosfera.

Seria absorvida pela terra ou mais provavelmente cairia nos rios, voltando ao Atlântico. Os ventos ficariam cada vez mais secos para dentro do continente, choveria cada vez menos e ocorreria a desertificação no interior.


>> De celeiro a deserto
A influência dessa transpiração da floresta, combinada à presença dos Andes, se manifesta no quadrilátero entre Cuiabá, São Paulo, Buenos Aires e os Andes.

Sem a Amazônia, é muito provável que essa região, responsável por 70% do PIB da América do Sul, se transforme num deserto. Mas isso não ocorreria de imediato.

O primeiro efeito do desmatamento é um desequilíbrio que provoca o excesso alternado de chuvas e de secas. Isso já está acontecendo. Santa Catarina é um bom exemplo. No vale do Itajaí, chuvas mataram pessoas afogadas ou soterradas. Ao mesmo tempo, o oeste do estado experimentava uma seca brutal.

O noroeste do Rio Grande do Sul e o pampa úmido argentino, duas regiões agrícolas riquíssimas, já enfrentam quebras em sua produção. A falta de equilíbrio no sistema regulador é uma das causas da atual crise agrícola argentina. O país enfrentou uma seca incomum, que levou também à falta de água em suas usinas hidrelétricas e, como consequência, à escassez de energia.

Se para a América do Sul a Amazônia é um coração que faz circular a umidade, para o mundo ela é um coração e também um fígado, pois processa e limpa o ar da atmosfera numa escala planetária.

Estudos mostram que a floresta absorve uma parte considerável dos abusos nas emissões de gases que estão na origem do aquecimento global. A Amazônia é uma espécie de seguro da humanidade contra esses abusos, mas não é usada como tal.


>> O agroautismo
Nossa agricultura não parece ser capaz de interagir socialmente. É como um autista savant, aquele que consegue desenvolver extraordinariamente uma única capacidade – mas tem todas as demais comprometidas.

São os campos de soja vigorosos e deslumbrantes, alcançados à custa de todo o equilíbrio biológico circundante. Nosso sistema estimula esse autismo; dá vitamina a ele. Explorar economicamente é o que interessa. O resto é obstáculo.

O Blairo Maggi (governador de Mato Grosso e um dos maiores produtores de soja do mundo) certa vez disse: “As pessoas precisam decidir se querem comida ou árvores”. Esse dilema é falso, pois, sem árvores, você não tem água, e, sem água, não tem comida. Cabeças assim acham que a floresta só ocupa espaço. Isso me parece pura ignorância.

Um tumor cancerígeno faz o melhor que pode em seu desespero para crescer, não sabe que é mau – e certa mentalidade do agronegócio no Brasil é um tumor que precisa ser removido.

Economia e ecologia não são coisas diferentes. É preciso esclarecer que, se a floresta for desmatada, todo um gigantesco e delicadíssimo sistema de equilíbrio desmoronará e, com ele, a atividade econômica.

Os brasileiros têm de saber que, se a água acabar na floresta, logo acabará também em outros lugares, como São Paulo ou Buenos Aires. Esse alerta é papel da ciência, do qual não podemos abdicar.


>> A biomimética

A ecologia é a economia da natureza. Seus princípios e possibilidades tecnológicas podem impulsionar incrivelmente a economia humana. A Amazônia abriga um dos maiores mananciais de alta tecnologia jamais concebidos.

No Primeiro Mundo há uma nova fronteira da engenharia chamada biomimética. Ela procura se inspirar nos processos naturais, a fim de copiá-los e implementá-los em soluções industriais. A natureza tem soluções tecnológicas sofisticadíssimas.

Um estudo da asa da borboleta morfo, aquela grandona, azul-metálico iridescente, descobriu que ela manipula a luz com um cristal orgânico, que é também um amplificador ótico. O mesmo princípio desse cristal pode ser copiado e implementado em fibras óticas para melhorar a transmissão de dados.

A indústria automobilística pesquisa o revestimento das folhas de árvores para criar novas tintas que tornem os carros autolimpantes. Se numa simples asa de borboleta há um sistema tecnológico que vale bilhões de dólares, imagine então na floresta amazônica inteira.

A Nasa, a GE, a Boeing e muitas outras empresas já estão contratando a consultoria de biólogos para se apropriar desses conhecimentos. Quando desmatamos a Amazônia, não queimamos árvores, mas sim liquidamos para sempre uma biblioteca viva de altíssima tecnologia.


>> De proa para o iceberg
Quando os governos se veem diante de um grave perigo, atuam com extrema rapidez.

Quando os japoneses atacaram Pearl Harbour, os Estados Unidos entraram na guerra imediatamente. Quando a organização criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) espalhou a violência em São Paulo, o governo paulista colocou toda a polícia nas ruas.

Quando a atual crise mundial eclodiu, no final do ano passado, uma semana depois uma série de medidas já estava sendo tomada para enfrentá-la. O estresse causado ao sistema climático terrestre é muito mais devastador, e no entanto não gera respostas práticas.

Se cerca de US$ 15 bilhões fossem investidos anualmente nos agricultores, para que conservassem os biomas, em vez de destruí-los, todas as florestas tropicais do mundo poderiam ser salvas. Em vez de desmatar, esses agricultores estariam prestando serviços ambientais, e recebendo por eles.

Zerar o desmatamento da Amazônia, hoje, significaria reduzir em 20% todas as emissões humanas de gás carbônico. Isso teria um valor imenso no mercado de cotas de carbono que vem sendo discutido internacionalmente. Mas nada acontece, e o tempo continua correndo.

O chamado Relatório Stern (coordenado pelo economista inglês Nicholas Stern, ex-vice-presidente do Banco Mundial) recomenda que 2% do PIB mundial seja investido em medidas contra o aquecimento. Se isso não for feito agora, diz o estudo, e a destruição seguir nesse ritmo, em 2020 serão necessários 30% desse mesmo PIB para que continuemos existindo como sistema econômico global.

Como nenhuma medida é tomada, estamos numa situação pior que a dos passageiros do Titanic. Estamos navegando a toda a velocidade na escuridão; só que num barquinho bem mais frágil, com a proa apontada diretamente para o iceberg.


foto capa: Divulgação INPA

ilustração: Tato Araujo

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Código Florestal, começar de novo

*Antonio Donato Nobre


Para introduzir este artigo, relato uma singular vivência que tive em meados de 2011 com estudantes de agronomia na UNEMAT em Nova Xavantina, nordeste do estado de Mato Grosso. Era uma semana científica, fui lá a convite da professora Vanessa Theodoro para apresentar minhas visões sobre desenvolvimento no campo, o papel da floresta no ciclo da água, a importância disso tudo para a agricultura e a controvérsia em torno do Código Florestal que ainda crepitava. Durante os debates, uma professora de biologia comentou sobre o ridículo de certas placas afixadas nas porteiras de fazendas na região: Proibido caçar e pescar.“ – “Ora”, exaltou-se, “caçar e pescar o que se os próprios fazendeiros acabaram com tudo?” Ao desabafo da professora seguiu-se uma sonora vaia dos alunos, a maior parte filhos de agricultores e pecuaristas.

Vi naquele pequeno conflito um microcosmo da controvérsia sobre o código florestal que engolfara a sociedade. Vi também uma oportunidade para explorar caminhos do diálogo. Ocorreu-me contar a historia daquele rei da antiguidade que não gostava de receber notícias ruins, mandando matar todo mensageiro portador de más novas; e de como o seu reinado durou pouco tempo. Perguntei aos alunos se eles, ali na zona rural, também não gostavam de más noticias, se desejariam que a mensagem da professora de biologia não lhes chegasse, que ela morresse (!).

Depois de rirem da piada, recordei-lhes que mais de 80% dos brasileiros vivem em cidades e repartem com a professora de biologia simpatia e respeito pela natureza.  Assim, a má noticia para o mundo rural era que, na opinião do povo urbano, os fazendeiros eram os principais responsáveis pela destruição da natureza. E essa noticia certamente trazia consequências adversas para os interesses de todos os que tiram seu sustento ou ganham com a produção da terra. Terminei com um apelo: não deveríamos antes dialogar, encontrar caminhos de colaboração inteligente e sinergia entre a cidade e o campo? Todos concordaram.

Em 2011, no auge das discussões em torno da polêmica alteração do código florestal pelo congresso, a comunidade cientifica propôs um dialogo para aperfeiçoar uma nova lei florestal que fosse balanceada, justa e respeitosa, no interesse do bem comum e iluminada pelo conhecimento. Como exemplo de que o diálogo suportado pelo conhecimento era possível e vantajoso, o próprio grupo de trabalho de especialistas montado conjuntamente pelas duas mais importantes organizações de ciência no País – a Sociedade Brasileiras para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) – continha representantes das contrastantes visões sobre o tema, com mais da metade do grupo vindo da EMBRAPA. No estudo exaustivo de centenas de trabalhos da literatura científica que trata do tema, o grupo constatou que agricultura e proteção ambiental tinham rico potencial de se complementar no uso e preservação inteligente da paisagem e que, portanto, não havia motivo para conflito.

Coerentes com o diálogo que haviam proposto e com os achados dos especialistas, a SBPC e ABC, ao apresentarem publicamente seu estudo, pediram um período de dois anos para uma melhor elaboração da nova lei, de tal forma que o saber cientifico pudesse ser diligentemente absorvido na atividade legislativa. Ao invés disso, e usando de subterfúgios e chantagens, o Congresso apresentou à Nação uma lei que desprezava a ciência e afrontava a vontade majoritária da população, manifesta em pesquisas de opinião.

Pressionada pela indignação popular, a Presidente impôs alguns vetos que atenderam minimamente às recomendações científicas, removendo o que de pior havia sido colocado no simulacro de lei produzido pelo Congresso. Não obstante, olhado em conjunto, mesmo com os vetos presidenciais, a nova lei florestal não melhorou os principais pontos de reinvindicação alardeados para a alteração do código de 1965, como a segurança jurídica por exemplo. E piorou muito os demais pontos, para a agricultura e para a conservação e valorização ambiental, tanto que vários estudiosos tem igualado seu efeito àquele da desregulamentação despudorada dos mercados financeiros que levou à quebra generalizada em 2008, iniciada em Wall Street.

Dois anos após sua publicação – no tempo que a ciência havia solicitado para turbinar uma lei que teria saído eficaz, séria e responsável – a nova lei Frankenstein das florestas tem o setor imobilizado, pois as dificuldades de aplicação somente aumentaram em relação à lei anterior.

Se o diálogo construtivo na busca de harmonia e sinergia em torno do código florestal pode acontecer entre agricultores e ambientalistas, como exemplificam projetos associativos do tipo do Y Ykatu Xingu para recuperação de matas ciliares; ou no âmbito econômico e intelectual, como exemplificam iniciativas empresariais e da comunidade cientifica, porque não pode ocorrer no âmbito maior e mais impactante da atividade legislativa?

Paradoxalmente, nosso Congresso não tem demonstrado compromisso com uma ação em consonância com a vontade dos eleitores. Infelizmente, parece que o problema da construção de leis em dissonância com os interesses da sociedade não é desvio ou privilegio da nossa democracia. Recentemente Paul Krugman relatou afirmação de Thomas Mann e Norman Ornstein em seu livro “It’s even worse than it looks” (“É ainda pior do que parece”) que um dos partidos no sistema norte-americano tornou-se “uma força insurgente e fora de centro — ideologicamente extremista; desdenhosa do regime social e político que nos foi legado; avessa a compromissos; resistente ao entendimento convencional dos fatos, provas e ciência; e desrespeitosa da legitimidade de sua oposição política“.

No caso do Brasil, os representantes políticos no Congresso, responsáveis pela gestação e aprovação da nova lei das florestas, pertencem a vários partidos, mas em seu conjunto seguem lógica similar a esta descrita para o  partido extremista norte-americano. Aqui o manto ideológico unificador destes políticos parece ter sido seu interesse privado, ligado à propriedade de grandes extensões de terras.

Uma certeza resta deste processo: para funcionar como deve, o Código Florestal terá que ser reconstruído. Com o conhecimento cientifico e tecnologias disponíveis hoje é possível desenvolver uma lei florestal moderna, compreensível, efetiva, justa, juridicamente incontroversa e inteligente.  Uma lei que logre ao mesmo tempo estimular vigorosamente a produção agrícola saudável, enquanto preserva as riquezas da biodiversidade e garante os indispensáveis serviços ambientais dos ecossistemas.
Para tanto basta a sociedade escolher melhor seus representantes na próxima legislatura, colocando claramente sua demanda e depois cobrando um novo Código Florestal iluminado pelo conhecimento.  Sempre é tempo para começar de novo.


*Pesquisador sênior do INPA e pesquisador visitante no Centro de Ciência do Sistema Terrestre do INPE, onde coordena o grupo de modelagem de terrenos. Participou no Grupo de Trabalho do código florestal, patrocinado pela SBPC e ABC, tendo relatado o livro produzido.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Qual deles você escolheria?























Um dia um velho índio norte americano conversava com seu neto.

Ele disse: " dois lobos lutando dentro de todos nós - o lobo do medo e do ódio, e o lobo do amor e da paz".

O neto ouviu, e em seguida olhou para seu avô e perguntou: "Qual deles vai ganhar?"

O avô respondeu: "Aquele que você alimentar."

terça-feira, 5 de novembro de 2013

O Clube dos 99...

Era uma vez um rei muito rico.
Tinha tudo. Dinheiro, poder, conforto, centenas de súditos.
Ainda assim não era feliz.

Um dia, cruzou com um de seus criados, que assobiava alegremente enquanto esfregava o chão com uma vassoura. Ficou intrigado. Como ele, um soberano supremo do reino, poderia andar tão cabisbaixo enquanto um humilde servente parecia desfrutar de tanto prazer?

-       “Por que você está tão feliz?”, perguntou o rei.

-       “Majestade, sou apenas um serviçal. Não necessito muito. Tenho um teto para abrigar minha família e uma comida quente para aquecer nossas barrigas”.

O rei não conseguia entender. Chamou então o conselheiro do reino, a pessoa em que mais confiava.

-       “Majestade, creio que o servente não faça parte do Clube 99

-       “Clube 99? O que é isso?”

-       “Majestade, para compreender o que é o Clube 99, ordene que seja deixado um saco com 99 moedas de ouro na porta da casa do servente”.

E assim foi feito.

Quando o pobre criado encontrou o saco de moedas na sua porta, ficou radiante. Não podia acreditar em tamanha sorte. Nem em sonhos tinha visto tanto dinheiro.

Esparramou as moedas na mesa e começou a contá-las.

-”…96, 97, 98… 99.”

Achou estranho ter 99. Achou que poderia ter derrubado uma, talvez. Provavelmente eram 100. Mas não encontrou nada. Eram 99 mesmo.
Por algum motivo, aquela moeda que faltava ganhou uma súbita importância.

Com apenas mais uma moeda de ouro, uma só, ele completaria 100.
Um número de 3 dígitos! Uma fortuna de verdade.
Ficou obcecado por completar seu recente patrimônio com a moeda que faltava.

Decidiu que faria o que fosse preciso para conseguir mais uma moeda de ouro. Trabalharia dia e noite. Afinal, estava muito muito muito perto de ter uma fortuna de 100 moedas de ouro. Seria um homem rico, com 100 moedas de ouro.

Daquele dia em diante, a vida do servente mudou.

Passava o tempo todo pensando em como ganhar uma moeda de ouro. Estava sempre cansado e resmungando pelos cantos. Tinha pouca paciência com a família que não entendia o que era preciso para conseguir a centésima moeda de ouro. Parou de assobiar enquanto varria chão.

O rei percebeu essa mudança súbita de comportamento e chamou seu conselheiro.

-       “Majestade, agora o servente faz, oficialmente, parte do Clube 99.

E continuou:

-        “O Clube 99 é formado por pessoas que têm o suficiente para serem felizes, mas mesmo assim não estão satisfeitas. Estão constantemente correndo atrás desse 1 que lhes falta. Vivem repetindo que se tiverem apenas essa última e pequena coisa que lhes falta, aí sim poderão ser felizes de verdade. Majestade, na realidade é preciso muito pouco para ser feliz. Porém, no momento em que ganhamos algo maior ou melhor, imediatamente surge a sensação que poderíamos ter mais. Com um pouco mais, acreditamos que haveria de fato, uma grande mudança. Só um pouco mais. Perdemos o sono, nossa alegria, nossa paz e machucamos as pessoas que estão a nossa volta. E o pouco mais, sempre vira… um pouco mais. O pouco mais é o preço do nosso desejo.”

E concluiu:

--- “Isso, Majestade… é o Clube dos 99"

fábula enviada por M. Paulete Martins para o grupo de yoga. Grato Paulete!


sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Lição aprendida

01/11/2013 - 03h00

Encontro muitos jovens que expressam um forte desejo de mudança na política, na economia, na sociedade. Acolho a todos, como mantenedora de utopias (título que pretensiosamente me dei), mas sempre esclareço: mudanças não nascem de repente, o novo não brota do nada. A biologia ensina que todo organismo se firma preservando alguma estrutura anterior.

Aprendi essa lição ao longo da vida e um de meus professores foi o ex-presidente Lula, que decerto não esqueceu os emocionantes dias de sua campanha nas eleições de 2002. Na turbulência causada pela iminência de sua vitória, lançou a "Carta aos Brasileiros", expressando o compromisso de manter as conquistas do Plano Real e as bases da estabilidade econômica herdadas de seu antecessor, Fernando Henrique. Deu uma lição de grandeza política que procurei aprender, não apenas "decorar".

Lula manteve na equipe econômica pessoas como Joaquim Levy e Marcos Lisboa, nomeou o tucano Henrique Meirelles para o Banco Central -- a quem deu status de ministro--, manteve contato com economistas que seu partido acusava de "neoliberais" e fez de Delfim Netto uma espécie de conselheiro.

A conservação da estabilidade econômica propiciou avanços nos programas sociais. Um documento intitulado "A Agenda Perdida", elaborado por um grupo suprapartidário de economistas e pesquisadores, forneceu subsídios para muitas ações do governo de Lula, que também buscou referências nos planos anteriores de combate à miséria, incluindo as experiências da prefeitura de Campinas, do governo de Cristovam Buarque no DF e as propostas da comissão de combate à pobreza, que propus no Senado para aperfeiçoar o fundo de combate à pobreza antes proposto por ACM.

Lula e FHC tiveram sabedoria de aproveitar as bases já assentadas nos períodos anteriores para avançar. Sendo coerentes com essa lição, além de dar crédito a esses líderes, que deixaram suas marcas, devemos dar um passo adiante: desfulanizar as conquistas que o Brasil obteve com eles. A estabilidade econômica e a inclusão social não são de autoria exclusiva de Lula e FHC. Foram e continuam sendo exigências da sociedade, mostras da evolução do povo brasileiro após conquistar a democracia --outra conquista da qual ninguém pode arrogar-se dono ou autor.

Por isso, digo aos mais jovens: conheçam a história, para evitar que seja reescrita. Honrem as realizações das gerações anteriores. Mas não sejam meros "continuadores", pois a democracia, a economia e os direitos sociais devem ser aperfeiçoados e inseridos num novo modo de desenvolvimento, sustentável, adequado aos tempos presentes e futuros.

O passado ensina. O futuro inspira.

Marina Silva Marina Silva, ex-senadora, foi ministra do Meio Ambiente no governo Lula e candidata ao Planalto em 2010. Escreve às sextas na versão impressa da Página A2.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O planeta não precisa de mais "pessoas de sucesso"


O planeta precisa desesperadamente de mais pacificadores, curadores, restauradores, contadores de histórias e amantes de todo tipo. 

Precisa de pessoas que vivam bem nos seus lugares. 

Precisa de pessoas com coragem moral dispostas a aderir à luta para tornar o mundo habitável e humano..., 

... e essas qualidades têm pouco a ver com o sucesso tal como a nossa cultura o tem definido." 

Dalai Lama

Por que os 'black blocks' ajudam governos

gilberto dimenstein

29/10/2013 - 08h46  DE SÃO PAULO

Os 'black blocks' justificam sua violência como arma contra governos e os poderosos _ daí atacarem prédios públicos e o que eles presumem ser símbolos do poder econômico.


Na prática, porém, eles se prestam como ajudantes dos poderosos, especialmente dos governantes. Por mais estranho que isso possa soar.

Basta ver a pesquisa Datafolha divulgada no domingo _ e não restará dúvida sobre o efeito involuntário desse grupo.

A pesquisa mostrou como a violência se confunde com as manifestações pacíficas por melhores condições de vida _ e, com as imagens da selvageria, as manifestações perdem apoio. De resto, muita gente deixa de protestar pacificamente para não se meter em confusão.

Quem ganha com isso?


Os poderosos, claro. 

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Opinião: 'Black bloc' visa chamar atenção de um Estado ausente

17/10/2013 - 03h45

ESTHER SOLANO e RAFAEL ALCADIPANI

ESPECIAL PARA A FOLHA

O "black bloc" acontece nas ruas. Esta afirmação aparentemente elementar nos motivou a sair de nossos cômodos ambientes universitários e ir para a rua buscar compreender este complexo fenômeno social que tantos desafios institucionais e tanta estupefação têm ocasionado na sociedade.

Nossa rotina de pesquisa consiste em acompanhar muito de perto as manifestações, observar, perguntar, conversar com pessoas que utilizam a tática "black bloc", policiais e membros da imprensa. Das conversas que tivemos, e das observações que realizamos, ficou claro que para estes jovens a violência simbólica funciona como uma forma de se expressar socialmente, um elemento provocador que tem o intuito de captar a atenção de um Estado percebido como totalmente ausente.

O uso da violência simbólica também serve, na versão deles, para induzir a sociedade a refletir sobre a necessidade de uma mudança sistêmica: "protesto pacifico não adianta nada, só com violência que o governo enxerga nossa revolta", "a intenção é transgredir, incomodar, deixar visibilidade, chamar para um debate".

A ação direta se faz contra símbolos de um sistema político-corporativo que eles reconhecem como perverso.

Os jovens que utilizam a tática "black bloc" dizem usar uma violência teatral que chama a atenção para o que eles caracterizam como o verdadeiro vandalismo. Tal vandalismo seria uma ordem das coisas que engole o cidadão numa tirania continua.

Exemplos de frases que retratam isso são: "a causa do 'black bloc' agir é o descaso público. As pessoas estão sendo torturadas psicologicamente pelo cotidiano", "não somos vândalos, vândalo é o Estado que deixa as pessoas horas esperando na fila do SUS".

SUJEITOS POLÍTICOS

Estes jovens com os quais viemos conversando em São Paulo estão na faixa etária entre 17 e 25 anos.
São de classe média baixa, a maioria trabalha, alguns formados ou se formando em universidades particulares, embora já dialogamos também com alguns alunos da USP. Alguns acumulam leituras teóricas sobre anarquismo. A maioria deles consegue formular, refletir e dialogar fluidamente sobre a precariedade do Estado e da situação atual do Brasil. Pensam-se como sujeitos políticos com uma mensagem de melhoria do país. Todavia, eles não formam uma organização homogênea. Já presenciamos discussões, durante as manifestações, entre aqueles que são a favor de uma violência mais focada, estritamente simbólica, e aqueles que defendem uma ação mais pesada. Notamos divergências entre aqueles que são contra agredir policiais porque, na sua reflexão, o inimigo central é o Estado, e aqueles de cujas falas destila-se uma raiva profunda contra a corporação policial. Uma frase que explica isso foi dita uma vez por um jovem para quem "nem todo o mundo pensa igual embora se vista igual".

FETICHE MIDIÁTICO

Um dos aspectos que surge como central na nossa pesquisa é o papel da mídia neste fenômeno. É muito simbólico ver a enorme quantidade de jornalistas que aparecem nas ruas sempre que a tática é utilizada.
"Black bloc" virou um fetiche, uma construção midiática. Notamos isso ao perceber o quanto os órgãos de imprensa estão falando e escrevendo sobre o "black bloc".

Enquanto isso, pouco se fala a respeito das taxa de homicídios nas periferias ou o número de mortes no trânsito. Tais violências se naturalizaram no cotidiano brasileiro. O "black bloc" desmascarou esta lógica dual de tratar a violência.

Talvez o fenômeno mais preocupante até agora seja a polarização entre a Polícia Militar e os defensores da tática. O Estado, guardião da propriedade pública e privada, guardião da ordem, emprega uma ação policial cada vez mais dura e um aparato legal cada vez mais criminalizador. A consequência pode ser o aumento da presença da tática "black bloc" nas ruas, num efeito de reação. Como eles nos dizem:

"Quanto mais repressão, mais revolta".

Uma parte dos jovens com quem conversamos já foi detida durante as manifestações. Cabe agora saber se eles continuarão saindo às ruas mesmo com a ameaça de voltar para a delegacia, desta vez como reincidentes. E mesmo com a ameaça da lei de associação criminosa. A pergunta essencial que cabe, como sociedade, é por que estes jovens, que desprezam a rigidez hierárquica partidária, que não se sentem representados pelo atual modelo político e econômico, enxergam a violência como única possibilidade de expressão?


ESTHER SOLANO é professora de relações internacionais da Unifesp. RAFAEL ALCADIPANI é professor de estudos organizacionais da FGV-EASP 

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Teste de pragmatismo

Neopopulismo dá espaço a uma opção 'sonhática' mais razoável

12 de outubro de 2013 | 17h 36
Mônica Manir - O Estado de S. Paulo

Indeferida, Marina Silva enganchou sua rede no PSB. E agora estão todos a especular se Eduardo Campos continua no topo da chapa ou se entregará a vaga de presidenciável à nova parceira. Na cabeceira da mesa da sala, Carlos Guilherme Mota sorve o café feito por ele. Diz que parece um café turco, porque consegue ver o pó no fundo. Mas não parece preocupado em ler a sina de uma aliança que chacoalhou o cenário político brasileiro. Está mais ansioso por perfilar os personagens em cena e levantar uniões que pouco contribuíram para modernizar a sociedade brasileira. "Vivemos um clima de barbárie, com as categorias sociais embrulhadas num vazio mental."

No verso de uma folha, o historiador tica o que deseja pontuar: grã-burguesia deseducada, partidos sem ideologia, nacional-desenvolvimentismo precário, crise do regime democrático. Traça setas, liga uma coisa a outra, num raciocínio enciclopédico sapecado de referências. No verso do papel, ele circula um trecho da quarta edição de História do Brasil - Uma Interpretação, que assina com a mulher, Adriana Lopez. A nova versão, atualizada, sai em julho pela Editora 34. Carlos Guilherme quase entrega o unhappy end. Tem a ver com o fim de um ciclo histórico após a visita de Lula a Maluf durante a campanha de Fernando Haddad para a Prefeitura de São Paulo, algo envolvendo "república de coalizões estapafúrdias". Depois daquele encontro, escreve ele, ficaram para trás as esperanças de efetiva e sólida renovação político-social. Já sobre o enlace Marina-Campos, o historiador quer abrir um capítulo. Na entrevista a seguir, feita no seu apartamento na Oscar Freire, "nossa 5ª Avenida com casa grande e senzala", ele arrisca os primeiros parágrafos.

A aliança de Marina Silva com Eduardo Campos foi chamada de ‘golpe de mestre’. O senhor concorda com essa avaliação?

CARLOS GUILHERME MOTA - Marina não me parece ter uma biografia ligada a golpes. Não faz parte do perfil e da trajetória dela. E não estou seguro se caberia na de Eduardo Campos, porque ele tem uma genealogia respeitável. Ninguém é neto de Miguel Arraes impunemente, assim como ninguém é neto de Tancredo Neves impunemente. Então respeite-se a visão avoenga da história. No caso da Marina, ela foi braço direito, cria, amiga e interlocutora de Chico Mendes. Ou seja, descarto essa hipótese do golpe.

Como chamaríamos então essa aproximação surpreendente?

CARLOS GUILHERME MOTA - Vivemos e assistimos à crise de um regime em que as parcerias fazem parte do jogo político. Elas se dão num patamar inesperado, mas são, do ponto de vista histórico, bastante apreciáveis. Marina tem a tradição de movimentar e pensar as classes populares. Campos esboça contornos de projeto nacional - e que não vem dele apenas. Ele está num Estado importante, fala da principal capital do Nordeste, cuja tradição histórica vem de 1817, 1818, 1824, 1848, depois a Revolução de 30, depois todo o movimento das ligas camponesas. Vem de um clima histórico-cultural que, além de Jarbas Vasconcelos, contou com seu avô, mas também com Gregório Bezerra. Enfim, ele sabe que tem história embaixo dele, com a qual não precisa concordar nem a ela aderir. E ele também tem interlocutores, alguns deles pernambucanos de muito valor, como Roberto Freire, afora sua circulação bem razoável no meio empresarial, inclusive em São Paulo.

Mas quem vai encabeçar a chapa para presidente no ano que vem? Um aceitaria o outro encabeçando?

CARLOS GUILHERME MOTA - Falar em rixa nessa altura, uma semana depois do anúncio da aliança, acho que fica um pouco absurdo. Eles estão numa aposta. O que vai acontecer, nenhum dos dois sabe, nem nós. Eu poderia ter imaginado dificuldades no relacionamento entre Collor e Itamar, por exemplo. Ou entre Serra e Índio da Costa. Quando falamos de junções, acho que o Serra fez um programa de índio de fato, e depois fica perguntando por que não deu certo. O Tancredo com o Sarney, outra junção estranha. O Lula procurando o Maluf na casa de Maluf, não o Maluf na casa de Lula. E Fernando Henrique com o Marco Maciel, um professor de direito civil com certa compostura, que não se exporia a ser vaiado em Frankfurt, como o foi o grande poeta Michel Temer. Mas Marco Maciel tinha como contrapeso o ACM. Então, do que estamos falando exatamente? Marina e Campos são pessoas dignas. Do que se pode verificar, não existem manchas nas respectivas biografias. Já o caso do Caiado mostra que há choques anafiláticos, e nós vamos assistir a muitos outros assim. Mas não entre Marina e Campos, possivelmente.

A opção de Marina foi essencialmente pragmática?

CARLOS GUILHERME MOTA - Mais que pragmática: maquiavélica. E como fugir de um maquiavelismo tendo em vista o que tem acontecido com os outros partidos, com exceção do PSOL, daqueles mais à esquerda, inclusive de certos militantes do PT que querem acabar com a política de balcão? Nesse quadro, não estamos falando de política de balcão, nem de uma terceira via. Uma terceira via mais nítida seria ela se juntar ao PPS. Mas seguramente ela fez essa análise com muita mais cuidado do que imaginamos.

Acha que a aparente fragilidade dela, de alguma forma, chama votos?

CARLOS GUILHERME MOTA - O que temo na Marina é sua saúde messiânica, sobretudo quando ela olha para o céu. Ao mesmo tempo, durante a campanha em que obteve 20 milhões de votos, mais de uma vez ela disse que a questão religiosa estava à parte. Marina vai ter de se mostrar pragmática nisso e em outras questões, como as células-tronco, o aborto, porque os marqueteiros do outro lado vão provocá-la.

Se os marqueteiros a provocarem, seus clientes também serão provocados...

CARLOS GUILHERME MOTA - Aí todos estarão no fio da navalha. Esse, de fato, não seria um problema da Marina apenas. De qualquer forma, não seria muito pedir afirmação de laicidade do PSB.

Falando em marqueteiros, João Santana aposta na reeleição de Dilma já no primeiro turno devido à ‘antropofagia dos anões’. O que acha dessa previsão?

CARLOS GUILHERME MOTA - Em primeiro lugar, o João Santana deve entender dos anões porque esteve, ombro a ombro, com os aloprados. Em segundo, não consigo imaginá-lo como estadista à altura para estar no Aeroporto de Congonhas, num dia de crise, com Lula e Dilma pensando a República. Não vejo nele título para falar em nome da República, nem nele nem em nenhum marqueteiro. Numa sociedade em que há manipulação de massas, em que se tira dos documentos a ideia de luta de classes, o que é isso? É conversa de marqueteiro. Ficamos preocupados com a espionagem, e não com essa atuação nociva? Uma cultura que vive dos marqueteiros é uma cultura falida nas instituições principais, que são as escolas, os hospitais, as universidades, a Justiça.

Aécio Neves se apresentou como líder da oposição no Brasil. Ele o é, de fato?

CARLOS GUILHERME MOTA - Para ter uma liderança, precisa ter uma voz nacional bem formada, e ele tem alguma. Mas precisaria ter mais estrada. E precisaria ter um quadro de interlocutores em várias áreas. Não se ouve falar de equipe, senão dele sozinho, um pouco borboleteando por aí. E mesmo o legado da herança de Tancredo não é bem usado.

Ele não tem um bom marketing?

CARLOS GUILHERME MOTA - Seguramente, não tem. Mas acho que não é questão de marketing. Falta um interlocutor. O Juscelino, por exemplo, tinha o Pedro Nava, o Santiago Dantas, o Eduardo Portella, o Darcy Ribeiro, o Celso Furtado, uma constelação para pensar o Brasil. Com quem o Aécio de fato conversa?

Aécio quer a Presidência?

CARLOS GUILHERME MOTA - É uma pergunta tão profunda que só a namorada dele, agora esposa, pode responder. Eu não sei.

A política brasileira, no geral, é mais pragmática que programática?

CARLOS GUILHERME MOTA - Alguns conceitos das revoluções liberais, e mesmo socialistas, não atravessarão o Atlântico, já dizia Raimundo Faoro. Elas não chegarão ao Brasil. O liberalismo sempre foi uma ideia fora do lugar, como mostrou o Roberto Schwarz. Os socialismos que aqui chegaram, chegaram pela via stalinista em algum canto, depois superficialmente no pós-68 e não se adensaram em comunidades. O próprio PT hoje é um partido sem ideologia, como diz o Lincoln Secco, historiador petista muito competente e muito sério, militante inclusive.

O PT perdeu a ideologia ou tem outra hoje?

CARLOS GUILHERME MOTA - É a ideologia do neopopulismo, do nacional-desenvolvimentismo de araque. O projeto nacional-desenvolvimentista implica um plano em que o eixo econômico esteja bem definido. Não me parece que esteja definido, com um projeto histórico-cultural a ele associado e um projeto social que saia das prebendas e do assistencialismo.

E os demais partidos?

CARLOS GUILHERME MOTA - Os partidos já foram mais ideológicos e com melhor nível. Quando se discutia nacionalismo, havia nacionalismo de direita e de esquerda. Ou mesmo o trabalhismo, que não foi essa água de barrela em que se transformou o PT. Mas eu gostaria de colocar isso na moldura maior do esgotamento, da mesmice e do oportunismo de dois partidos: o PT e o PSDB. Eles polarizaram e polarizam para desmobilizar. O PSDB já veio desmobilizado porque conseguiu fazer as jogadas erradas nas horas erradas. E, com isso, o Fernando Henrique ficou falando sozinho. Você pode encontrar um Álvaro Dias no Paraná, mais três ou quatro que preciso fazer um esforço para lembrar, mas o esvaziamento é algo mortal para um partido. De outro lado tem o PT, de um autoritarismo desmobilizador, como diria o Michel Debrun, em cima dessa palavra horrenda que é o carisma. Se Lula sair candidato, Dilma dificilmente aguenta. E talvez o maior baque dessa aliança entre Marina e Campos tenha sido para Lula. Eu posso imaginar, no seu ABC, como deve ter sido descobrir que não era o grão-senhor do jogo.

Há carismas positivos?

CARLOS GUILHERME MOTA - Qualquer carisma é negativo para quem quer montar uma sociedade civil moderna e nova. Inclusive não posso ser simpático ao carisma da Marina, dentro da minha lógica. A sociedade precisa de líderes civis que se imponham pela formação, pela competência, pela capacidade de ver o conjunto, no sentido de aprofundar as relações democráticas. O carisma infantiliza. Pode-se dizer que o Bill Clinton tinha carisma? Não, era uma pessoa muito bem formada. O carisma do Obama tende a zero. É só um homem bem formado, casado com uma mulher bem formada. Merkel apenas sabe o que quer.

Que sociedade civil é a brasileira?

CARLOS GUILHERME MOTA - É uma cidadania machucada, com uma grã-burguesia deseducada. Em outros países, com aqueles financiamentos de universidades, de museus, de hospitais, a alta burguesia dá referência civilizadora. Não fica andando nesses Pajeros de vidro preto jogando latinhas de Coca na rua. Vivemos um clima de barbárie, com as categorias sociais embrulhadas, sem projetos sociais políticos e sociais claros. Não é uma sociedade sem terra, sem teto. É sem história e facilmente paternalizada. Há outra coisa grave nesse quadro: o vazio mental. Ele pode ser preenchido com qualquer coisa. Não por acaso se dá o avanço dos pentecostais. Onde estão as universidades formando quadros para a rede de escolas públicas? Estão no silêncio, no corporativismo, na ascensão da classe C de certa época que virou classe B nos quadros universitários. "Ganhei, subi, acomodei." Há uma nova classe média satisfeita na universidade, apesar dos salários não tão confortáveis. O ganho é em status, um statusinho.

As manifestações de rua estão mais para sonháticas ou para pragmáticas?


CARLOS GUILHERME MOTA - Eu traduziria "sonhar" por construir novas utopias. É preciso procurar novas utopias, porque sem isso nenhuma sociedade anda. Mas as manifestações de rua mostram que nossos conceitos não têm dado conta de explicar o que está acontecendo. Dizer que a água transbordou do leito do rio é precário. Tirando a espuma, o que tem embaixo é saúde, educação, transporte, segurança e ética. Tivemos o desfecho cambaio do mensalão e um propinoduto do PSDB não explicado até agora. Como a opinião pública pode reagir positivamente? Em outros países, em outros momentos, os advogados foram mobilizados para grandes causas. Na Revolução Francesa, nas revoluções inglesas do século 17, eles chegavam para malhar o regime antigo e construir um novo. Na época do Roosevelt, na crise de 29, os advogados criaram uma legislação nova. Aqui os advogados, cada vez que vêm, é para reforçar uma visão de D. João IV no século 17: "Nós devemos aprimorar a arte de protelar". No mundo luso-brasileiro, temos a tradição de nunca resolver a questão. E mais, dizia ele: "Governar é nomear". Enfim, não estamos bem na fotografia. 

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Outros tempos


Nos últimos anos, o exagero numa disputa política bipolar, em que cada lado se considera o bem absoluto na luta contra o mal absoluto, contaminou toda a sociedade brasileira e gerou um ambiente de discórdia no qual a mais simples divergência é julgada e condenada como uma grave traição. O debate político tornou-se estéril, pois todos gritam e ninguém escuta.

Qualquer atitude, decisão ou proposta é imediatamente vista como uma reação emocional, de ataque e defesa. Se alguém tem um projeto, uma ideia, um questionamento, é porque está atacando um dos lados, "rompeu" com o outro, está se vingando.

É grave quando essa bipolaridade penetra em serviços e procedimentos que deveriam ser públicos e isentos e os fazem sucumbir ao antigo preceito antirrepublicano: aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei. Dessa forma, o regime democrático é enfraquecido por dentro.

Mas, como diz o poeta, "amanhã há de ser outro dia". Podemos recuperar a política como atividade idealista, meio de realizar utopias, ambiente de disputas leais na busca de novos consensos capazes de unir (sem ter que fundir) os ideais da nação.

É necessário que cada um, principalmente as forças que se forjaram na bipolaridade, busque um realinhamento interno e uma revisão de seus princípios. Vale o que foi dito, nos últimos dias, por uma importante liderança do PT, o governador Tarso Genro: a disputa não é em torno do passado, mas voltada para o futuro.

É necessário, também, compreender que lutar pela democracia sob uma ditadura é bem diferente de defender a democracia na democracia. Pensemos em pessoas com histórico de luta pela democracia, como a presidente Dilma. Não seria ofensivo pedir-lhe que proceda de modo democrático? A democracia, nesse caso, é pressuposto básico, não temos que agir temendo que ela nos seja negada.
Da mesma forma, talvez seja inútil esperar atitude democrática de quem depende do autoritarismo e das decisões autocráticas, pois só nesse ambiente pode prosperar sua política ou seus negócios. Porém, mesmo a estes deve-se dar o benefício da dúvida e a margem para uma mudança que é sempre possível pois, como temos visto tantas vezes, o tempo e a vida são bons professores.

De todo modo, o Brasil fez nas ruas e faz todos os dias um apelo que precisa ser escutado: recolher as armas. O tempo mudou. De nada adianta soltar os cachorros, comer o fígado e outras expressões de uma política feita com ódio. Quanto a beijar e abraçar, é bom quando é sincero.
Houve um tempo em que vivíamos insultados sob a ditadura. É hora de nos sentirmos respeitados em nossa democracia.


Marina Silva Marina Silva, ex-senadora, foi ministra do Meio Ambiente no governo Lula e candidata ao Planalto em 2010. Escreve às sextas na versão impressa da Página A2.