quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Ainda não sabemos de onde veio a Seca de 2014


Antonio Donato Nobre

Vivendo no meio de climatologistas, fiquei surpreso com a certeza transmitida pelo artigo Seca não veio da Amazônia, na revista Época. 

A seca de 2014 não foi prevista por nenhum modelo climático. Depois disso, ao longo do ano, o grupo de previsão climática, que reúne especialistas de varias instituições, absteve-se de emitir previsões sobre a progressão da seca em varias regiões do Brasil. Ao longo de 2014 todos climatologistas que conheço declararam-se pasmos com essa seca fortíssima, e seu silencio no período atesta. Não me parece razoável crer que as primeiras chuvas de fevereiro irrigaram os modelos climáticos com uma capacidade que eles demonstraram não ter até o final de janeiro.

Existem nas observações do clima registros de secas fortes para o Sudeste. O que surpreendeu e assustou em 2014, além da intensidade e duração sem precedentes, foi o virtual desaparecimento da ZCAS (Zona de Convergência do Atlântico Sul). Essa condição rendeu incapazes os modelos numéricos, até para previsões de curto prazo. Por estas características inusitadas do fenômeno climático, vários colegas cogitam tratar-se já das primeiras manifestações de mudanças climáticas associadas ao aquecimento global.

A publicação do meu relatório (O Futuro Climático da Amazônia), iniciado muito antes, coincidiu com a seca de 2014. Nele é reportada a existência de base científica sólida para suportar a importância da ligação hidro-meteorológica da Amazônia com o Sudeste (Marengo et al. 2004 Journal of Climate; Arraut et al., 2012 J. of Climate; Spracklen et al., 2012 Nature; Makarieva et al., 2014, etc.). Embasada por essa ciência podemos afirmar que a umidade amazônica não chegou em São Paulo em 2014, e não conheço ninguém responsável que disputaria tal fato. Também indisputáveis são as observações feitas “na Amazônia” que conectam o desmatamento com a redução de umidade atmosférica.

A matéria da Época* passa uma imagem não acurada e sem base em artigos publicados, de que o que se passa no Sudeste não teria nada a ver com a Amazônia. Não sabemos ainda como os vários fatores interagiram para produzir a seca, mas mesmo que venham a demonstrar haver havido em 2014 apenas um impedimento meteorológico externo à propagação da umidade amazônica, ainda assim foi a umidade amazônica que não chegou

A relação do suprimento de serviços ambientais da floresta amazônica com a sorte hidrológica de regiões a jusante dos rios aéreos de lá procedentes é cientificamente embasada e auto-evidente. O bom senso sugere todo cuidado com esse recurso.


*Assim expressei para o repórter da Época:
“O fato solido é que a umidade Amazônica -que usualmente alimenta a maior parte das chuvas que caem no sudeste-, durante 2014 e janeiro ultimo não chegou aqui. Sim, a falta da umidade Amazônica é um dos fatores principais que explicam a seca. Porem, ainda não sabemos os números que explicam essa não propagação dessa umidade Amazônica. O que se observou foi uma massa de ar quente e seco que estacionou sobre a região sudeste, e que parece haver impedido tanto a entrada das massas de ar úmido da Amazônia, quanto as mais secas frentes frias que vem do sul do continente.”
  Assim apareceu na matéria:
 "Procurado por ÉPOCA, Nobre endossou que o desmatamento lá é a principal razão para a falta de chuvas cá."

Mencionei o desmatamento na minha afirmação?

Referencias


Arraut, J.M., Nobre, C., Barbosa, H.M.J., Obregon, G., Marengo, J., 2012. Aerial Rivers and Lakes: Looking at Large-Scale Moisture Transport and Its Relation to Amazonia and to Subtropical Rainfall in South America. J. Clim. 25, 543–556

Makarieva A.M., Gorshkov V.G., Sheil D., Nobre A.D., Bunyard P., Li B.-L. (2014)  Why does air passage over forest yield more rain? Examining the coupling between rainfall, pressure, and atmospheric moisture content.
Journal of Hydrometeorology, 15, 411-426.

Marengo, J., Soares, W., Saulo, C., Cima, M., 2004. Climatology of the low-level jet east of the Andes as derived from the NCEP-NCAR reanalyses: Characteristics and temporal variability. J. Clim. 17, 2261–2280.

Spracklen, D.V., Arnold, S.R., Taylor, C.M., 2012. Observations of increased tropical rainfall preceded by air passage over forests. Nature 489, 282–5.