Martin Wolf, FSP
15/01/2014 - 11h58
Os fracassos das elites políticas, econômicas e intelectuais da Europa criaram o desastre que se abateu sobre seus povos entre 1914 e 1945. Sua ignorância e seus preconceitos foram o que permitiu a catástrofe: ideias falsas e maus valores estavam em ação. Entre eles, a crença atávica em que não só impérios eram magníficos e lucrativos, como também a guerra algo glorioso e controlável. Foi como se uma vontade coletiva de suicídio se apoderasse dos líderes de grandes nações.
Sociedades complexas dependem de suas elites para, se não fazer tudo certo, ao menos evitar os erros mais grotescos. Quando as elites fracassam, a ordem política tem alta probabilidade de ruir, como aconteceu com as potências derrotadas na Primeira Guerra Mundial. Os impérios russo, alemão e austríaco desapareceram, deixando como legado sucessores fracos, por sua vez sucedidos por despotismos.
A Primeira Guerra Mundial também destruiu as fundações da economia do século 19: o livre comércio e o padrão ouro. Tentativas de restaurá-las resultaram em ainda mais fracassos por parte das elites, desta vez norte-americanas tanto quanto europeias. A Grande Depressão fez muito para criar as condições políticas que resultaram na Segunda Guerra Mundial. A Guerra Fria, um conflito entre democracias e uma ditadura gerada pela Primeira Guerra Mundial, veio a seguir.
Os terríveis resultados causados pelo fracasso das elites não surpreendem. Existe um trato implícito entre as elites e o povo: as primeiras recebem os privilégios e as vantagens do poder e da propriedade; o segundo, em troca, recebe segurança e, na era moderna, certa dose de prosperidade. Se as elites fracassam, correm o risco de substituição. E a substituição de elites econômicas, burocráticas e intelectuais fracassadas é sempre repleta de riscos. Mas, em uma democracia, a substituição das elites pelo menos é rápida e limpa. Em um despotismo, ela em geral acontece lentamente e quase sempre de forma sangrenta.
Não se trata apenas de História. A lição continua válida hoje. Se alguém busca lições diretas da Primeira Guerra Mundial para o nosso mundo, as encontra não na Europa contemporânea, mas no Oriente Médio, na fronteira entre a Índia e o Paquistão e nos complicados relacionamentos entre a China e seus vizinhos. Existem possibilidades de erros letais de cálculo em todos esses casos, ainda que as ideologias do militarismo e do imperialismo estejam, hoje, felizmente muito menos presentes do que há um século.
Hoje, os Estados poderosos aceitam a ideia de que a paz é mais conducente à prosperidade do que os ilusórios espólios da guerra. Mas isso infelizmente não significa que o Ocidente esteja imune a fracassos das elites. Pelo contrário: está convivendo com eles. No entanto, esses fracassos resultam em uma paz mal gerida, e não em guerra.
FRACASSOS
Eis três fracassos visíveis.
Primeiro, as elites econômicas, financeiras, intelectuais e políticas no geral entenderam incorretamente as consequências de uma liberalização financeira acelerada. Alimentadas por fantasias sobre mercados financeiros autorreguláveis, elas não só permitiram mas encorajaram uma imensa e, para o setor financeiro, lucrativa aposta na expansão do endividamento.
As elites que definem políticas econômicas não apreciaram devidamente os incentivos que estavam em jogo e, acima de tudo, o risco de um colapso sistêmico. Quando este aconteceu, os frutos do colapso se provaram desastrosos em diversas dimensões: economias despencaram, o desemprego disparou e a dívida pública explodiu. As elites que definem políticas econômicas ficaram desacreditadas por não terem impedido o desastre.
A elite financeira ficou desacreditada devido à necessidade de resgatá-la. A elite política ficou desacreditada por sua prontidão em bancar o resgate. A elite intelectual -os economistas - ficou desacreditada por seu fracasso em antecipar a crise ou em chegar a acordo sobre o que fazer quanto a ela depois que eclodiu.
O resgate foi necessário. Mas a crença de que os poderosos sacrificaram os contribuintes em benefício dos culpados pela situação mesmo assim procede.
Segundo, nas últimas três décadas vimos o surgimento de uma elite econômica e financeira globalizada. Seus membros estão cada vez mais distanciados dos países dos quais provêm. No processo, a cola que mantém unida qualquer democracia - a noção de cidadania - se enfraqueceu. A distribuição muito estreita dos ganhos do crescimento econômico amplifica esse desdobramento.
Ou seja, vivemos cada vez mais sob uma plutocracia. Certo grau de plutocracia é inevitável em democracias construídas, tal como deveriam, sobre economias de mercado.
Mas a questão é sempre de grau. Se a massa das pessoas perceber suas elites financeiras como regiamente recompensadas por um desempenho medíocre, e como interessadas apenas no que é bom para elas, mas ainda assim mantendo a expectativa de resgate quando as coisas saem errado, os vínculos se rompem. Podemos estar vivendo o início desse processo de afastamento em longo prazo.
Terceiro, ao criar o euro, os europeus levaram seu projeto para além dos limites práticos, e fizeram dele algo de muito mais importante para as pessoas: o euro controla o destino de seu dinheiro. Não havia nada de mais provável do que fricções entre os europeus sobre a forma pela qual seu dinheiro estava sendo administrado, ou malversado. A crise financeira provavelmente inevitável agora resultou em uma série de dificuldades ainda não resolvidas.
As dificuldades econômicas das economias abaladas pela crise são evidentes: imensas recessões, desemprego extraordinariamente alto, emigração em massa e pesadas cargas de dívida. Tudo isso é bem conhecido. Mas é a desordem constitucional da zona do euro que não vem recebendo a ênfase merecida. Dentro da zona do euro, o poder agora se concentra nas mãos dos governos dos países credores, especialmente a Alemanha, e em um trio de burocracias não eletivas - a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Os povos dos países adversamente afetados não têm influência sobre qualquer desses organismos. Esse divórcio entre poder e prestação de contas ataca o cerne de qualquer possibilidade de governança democrática. A crise da zona do euro não é só econômica. É também constitucional.
Nenhum desses fracassos se equipara, de forma alguma, à insensatez generalizada de 1914. Mas são sérios o suficiente para causar dúvidas sobre as nossas elites. O resultado é o nascimento de um populismo iracundo em todo o Ocidente, em geral o populismo xenófobo da direita. A característica dos populistas de direita é que chutam quem está por baixo. Se as elites continuarem fracassando, continuaremos a assistir à ascensão dos populistas iracundos. As elites precisam trabalhar melhor. Caso não o façam, a raiva pode nos subjugar.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
É comentarista chefe de Economia no jornal britânico "Financial
Times". É membro honorário do Instituto de Política Econômica de Oxford e
professor honorário da Universidade de Nottingham. Participa do Fórum
de Davos desde 1999 e do Conselho Internacional de Mídia desde 2006. É
doutor em letras pela Universidade de Nottingham e doutor em economia
pela London School of Economics (LSE)