sábado, 28 de dezembro de 2013

Belo Monte: Painel do Leitor da Folha de São Paulo mutila cartas barbaramente



(Nota do Blog): abaixo matéria que enviei, por sugestão do jornalista Marcelo Leite -autor principal da cobertura da FSP sobre Belo Monte-, para a seção Painel do Leitor na Folha de São Paulo. Os editores daquela seção mutilaram meu comentario barbaramente (edição do dia 27/dez/2013 se nao me engano). Que bom que a internet permite recolocar ao alcance de todos a versão original!

 A matéria especial da Folha sobre Belo Monte me impressionou muito. Primeiro a interface, que combinação técnica e artística inusitada e incrível! Depois a narrativa, não menos extraordinária e envolvente. Me vi no canteiro de obras, na volta grande, em Altamira. Por fim, a metáfora, nada é só preto e branco - linear e maniqueísta-, existem sempre múltiplas dimensões nas grandes polemicas. Depois desta matéria tornou-se mais difícil falar de Belo Monte escudando-se em argumentos sectários. Mas para não ficar somente nos elogios, a cobertura sobre o "gigantismo" da obra -a parte civil - me passou um sabor amargo, me remeteu ao ufanismo nacionalista e megalomaníaco da ditadura militar. Para os memes desenvolvimentistas embutidos nos neurônios brasileiros esse lado da matéria é incendiário. Comecei minha carreira profissional justamente dentro das primeiras hidrelétricas Amazônicas, fazendo estudo de impacto ambiental pra inglês ver. Belo Monte me dá aquela sensação de Déjà vu. O problema da matéria, a meu ver, está na falta de comparação. Se fizermos uma comparação da potencia de hidrelétricas com a potencia climática da floresta, veremos que diante da natureza essas estruturas humanas são microscópicas, patéticas. Somente a energia empregada na evaporação de 20 bilhões de toneladas de agua a cada dia na Amazônia - pela transpiração das árvores- é comparável a 50.000 Itapus (ou mais de 200.000 Belo-Montes)!!! Pode parecer uma comparação disparatada, mas não é. Desse motor da grande floresta -esse sim gigantesco- depende o ciclo hidrológico na América do Sul, o que inclui o fornecimento de potencial hidráulico para as principais hidrelétricas do País, Belo Monte incluída. Em pleno regime democrático o modus operandi com relação ao meio ambiente nesta obra –comprovado por inúmeras condenações na justiça- não difere significativamente do trator desenvolvimentista operado pelos militares nos anos de chumbo. Meta mais essa e outras descuidadas abordagens de desenvolvimento no coração da Amazônia, como estão fazendo, e o que resta da floresta irá mais cedo ou mais tarde para o beleléu. E sem floresta acaba a chuva - pra que hidrelétrica?

Antonio Donato Nobre
Pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e do Centro de Ciência do Sistema Terrestre, INPE

sábado, 21 de dezembro de 2013

Ausência do Momento Presente

Estamos vivendo em uma cultura totalmente hipnotizados pela ilusão do tempo, em que o chamado momento presente é sentido como nada além de uma infinitesimal linha fina entre um passado todo-poderoso causador e um futuro absorventemente importante. Não temos presente. Nossa consciência é quase completamente preocupada com a memória e a expectativa. Não nos damos conta de que nunca houve, há, nem haverá qualquer outra experiência do que a experiência presente. Estamos, portanto, sem contato com a realidade. Nós confundimos o mundo como falado, descrito e medido com o mundo que realmente é. Estamos enfermos com um fascínio pelas ferramentas úteis de nomes e números, de símbolos, sinais, concepções e idéias.

Alan Watts

sábado, 14 de dezembro de 2013

Em um mundo empestado de ladrões e exxpertos...

"Eu não me importo que eles roubaram a minha idéia. Eu me importo que eles não tenham qualquer ideia própria"

Nikola Tesla

Pensando nos pactos de mediocridade...

"Tudo o que foi grande no passado foi ridicularizado, condenado, combatido, reprimido - apenas para emergir da luta ainda mais poderoso, ainda mais triunfante."

Nikola Tesla

Corpo humano: galáxia ambulante de sistemas celulares...

"Cada pessoa deveria considerar seu corpo como um dom inestimável, recebido de um a quem ama acima de tudo, uma maravilhosa obra de arte, de beleza indescritível e mistério além da compreensão humana, e tão delicado que uma palavra, um suspiro, um olhar, ou melhor, até um pensamento pode danificá-lo."

Nikola Tesla

Lá onde o vento faz a curva

O paredão dos Andes desvia para o Sul os ventos úmidos da Amazônia, que levam chuva e fertilidade ao pampa argentino e ao centro-sul do Brasil. Agora, o desmatamento acelerado põe em risco esse delicado sistema
José Ruy Gandra
A bomba hidrológica: a corrente de ventos, desviada pelos Andes, carrega as nuvens úmidas da Amazônia para fazer chover nas terras férteis do Centro-Sul brasileiro e no pampa argentino

Na próxima vez que assistir ao Jornal Nacional, atente para a previsão meteorológica. Caso a imagem do satélite traga aquela circulação tipo bumerangue cruzando transversalmente o continente, agradeça. Agradeça ainda mais caso você viva no sudeste do Brasil ou na Argentina.

Segundo o pesquisador Antonio Donato Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), não fosse pelas chuvas que essas nuvens trazem, em especial no verão, todo o quadrilátero demarcado por Cuiabá, São Paulo, Buenos Aires e a cordilheira dos Andes se tornaria, quase certamente, um deserto.

Para Nobre, isso só não acontece por duas razões: a presença dos Andes, cuja altura redireciona o vapor d’água vindo do Atlântico para Sudeste (formando o tal bumerangue), e a evaporação causada pelas árvores da floresta amazônica, que alimenta essa umidade, permitindo que chegue até os Andes e mais adiante, sem se dissipar pelo caminho.


>> Ameaça global
“A Amazônia é uma bomba hidrológica impressionante”, diz Nobre, que viveu 22 anos na região. “Lança diariamente 20 bilhões de toneladas de água na atmosfera, garantindo que uma área responsável por 70% do PIB sul-americano seja devidamente irrigada.”

O avanço do desmatamento, segundo Nobre, não põe em risco iminente apenas esse sistema que confere à América do Sul sua benvinda peculiaridade climática. “O desmate é responsável, sozinho, por 20% de todas as emissões humanas de gás carbônico”, afirma.

Trata-se, portanto, de uma ameaça global. Entidades internacionais recomendam que 2% do PIB mundial seja imediatamente investido em medidas contra o aquecimento. “Se isso não for feito”, diz Nobre, “em 2020 serão necessários 30% desse mesmo PIB somente para lidar com os custos das perdas ligadas a desastres ambientais.”

Mesmo assim, de acordo com Nobre, nada vem sendo feito efetivamente. “A preservação da floresta não deve se subordinar aos interesses do desenvolvimento e da economia, e sim o contrário”, afirma o pesquisador. “Sem a manutenção desse delicado mas poderoso sistema de equilíbrio global, toda a economia irá fatalmente pro espaço.”

Atuando dentro do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em São José dos Campos, Nobre, 50 anos, agrônomo por formação, especialista em biologia tropical e doutorado em biogeoquímica pela Universidade de New Hampshire, concedeu uma longa entrevista à PIB, cujos principais trechos você lê a seguir.

Nela, o pesquisador explica as singularidades de nosso regime climático, analisa a importância da Amazônia em seu funcionamento, condena a mentalidade autista do agronegócio e, mais ainda, o imobilismo dos governos. E adiciona uma agravante: “Ao desmatar a Amazônia, não queimamos árvores, mas sim uma biblioteca viva de altíssima tecnologia e valor incalculável”.


>> A vida regula o clima
“Hoje a ciência começa a aceitar que o sistema biológico condiciona a atmosfera. Isso é novidade.

A meteorologia sempre considerou a biosfera um fator secundário e a atmosfera, o principal. Mas todo oxigênio que respiramos veio das plantas; não temos gases tóxicos na atmosfera graças a inúmeros organismos que os removem; e a manutenção equilibrada do ciclo da água nos continentes depende diretamente dos organismos.

Sabemos que, num processo sofisticadíssimo que ocorre em nanoescala, no nível das moléculas, a fotossíntese é o mecanismo primordial de estabilização climática da Terra. Na fotossíntese, a energia solar é captada e, através de reações químicas, remove gás carbônico da atmosfera e libera oxigênio.

Foi essa troca de gases que moldou a vida e a evolução dos ambientes no planeta ao longo de seus 4 bilhões de anos. Nesse período, a concentração de gás carbônico em nossa atmosfera passou de 95% para 0,039%.

Para onde foi todo esse CO2? O que aconteceu nesse tempo? Sem um poderoso mecanismo de regulação, teria sido impossível que a Terra hoje tivesse água líquida na superfície e que sua temperatura mantivesse uma variação confortável para a vida, uma raridade em termos cosmológicos.

A única explicação para esse fenômeno é a vida. Todos os organismos vivos têm um sistema sofisticado de equilíbrio e autorregulação. Se fora esquenta, eles esfriam, e vice-versa.

Essa capacidade só a vida tem. E as florestas exercem no sistema planetário um papel decisivo. São o maior órgão terrestre de regulação. Têm mecanismos altamente complexos e eficientes, que outros sistemas humanos, como a agricultura, não são capazes de emular.

Dito isso, olhe o mapa-múndi. Nele, sempre na mesma faixa a 30 graus de latitude, em ambos os hemisférios, estão os desertos. O Saara, o Sonoma, o Kalahari, o Atacama, os da Namíbia e da Austrália.

Por quê? Esse fato deve-se a um fenômeno chamado Circulação de Hadley. A parte equatorial do planeta recebe maior radiação solar, é mais quente, evapora muita água e provoca chuvas. Em outras palavras, o ar sobe na faixa do equador, perde umidade e chove.

Quando desce na faixa dos 30 graus, já seco, ele consome a umidade da superfície e contribui na formação dos desertos. Só há duas exceções a essa regra: o sul da China, região próxima ao Himalaia, e a fatia meridional da América do Sul.


>> O radiador verde

A América do Sul é diferente por dois fatores: os Andes e a floresta amazônica. O ar, que nas zonas equatoriais sempre corre de leste para oeste, encontra a barreira andina, um paredão de 6 mil metros de altura.

Ela impede que o ar rico em vapor d’água vindo do Atlântico siga em frente. Esse ar úmido, então, faz uma curva para sudeste e, no verão, vai despejando sua umidade sobre essas regiões – que, sem os Andes, seriam desérticas e sem vida econômica.

A floresta, o segundo fator, é ainda mais importante. Esse vento só consegue viajar por quase 5 mil quilômetros sobre a América do Sul, com umidade suficiente para formar nuvens e chuvas, porque as árvores da Amazônia recebem suas águas, sob a forma de chuvas, mas devolvem a maior parte à atmosfera através da transpiração.

A Amazônia transpira 20 bilhões de toneladas de água por dia. É muita coisa. O Amazonas, o maior rio da Terra e responsável, sozinho, por 20% de toda água doce que chega aos oceanos, lança 17 bilhões de toneladas diárias de água no Atlântico.

É esse vapor criado pela floresta que acentua e prolonga a circulação úmida na América do Sul. A floresta funciona como um evaporador otimizado, pois suas folhas formam uma área de evaporação muito maior que a da própria superfície no solo.

São 10 metros quadrados de folhas para cada metro quadrado de solo. Elas atuam como um radiador na dispersão da umidade. Sem esse auxílio da floresta e de sua transpiração, a massa de ar vinda do oceano não conseguiria manter sua umidade do Atlântico aos Andes e mais adiante.

Se a Amazônia fosse uma região inteiramente agrícola, a massa de ar entraria no continente e choveria. Como não haveria vegetação densa o suficiente, pois o solo agrícola é mais ralo e exposto, essa água não voltaria para a atmosfera.

Seria absorvida pela terra ou mais provavelmente cairia nos rios, voltando ao Atlântico. Os ventos ficariam cada vez mais secos para dentro do continente, choveria cada vez menos e ocorreria a desertificação no interior.


>> De celeiro a deserto
A influência dessa transpiração da floresta, combinada à presença dos Andes, se manifesta no quadrilátero entre Cuiabá, São Paulo, Buenos Aires e os Andes.

Sem a Amazônia, é muito provável que essa região, responsável por 70% do PIB da América do Sul, se transforme num deserto. Mas isso não ocorreria de imediato.

O primeiro efeito do desmatamento é um desequilíbrio que provoca o excesso alternado de chuvas e de secas. Isso já está acontecendo. Santa Catarina é um bom exemplo. No vale do Itajaí, chuvas mataram pessoas afogadas ou soterradas. Ao mesmo tempo, o oeste do estado experimentava uma seca brutal.

O noroeste do Rio Grande do Sul e o pampa úmido argentino, duas regiões agrícolas riquíssimas, já enfrentam quebras em sua produção. A falta de equilíbrio no sistema regulador é uma das causas da atual crise agrícola argentina. O país enfrentou uma seca incomum, que levou também à falta de água em suas usinas hidrelétricas e, como consequência, à escassez de energia.

Se para a América do Sul a Amazônia é um coração que faz circular a umidade, para o mundo ela é um coração e também um fígado, pois processa e limpa o ar da atmosfera numa escala planetária.

Estudos mostram que a floresta absorve uma parte considerável dos abusos nas emissões de gases que estão na origem do aquecimento global. A Amazônia é uma espécie de seguro da humanidade contra esses abusos, mas não é usada como tal.


>> O agroautismo
Nossa agricultura não parece ser capaz de interagir socialmente. É como um autista savant, aquele que consegue desenvolver extraordinariamente uma única capacidade – mas tem todas as demais comprometidas.

São os campos de soja vigorosos e deslumbrantes, alcançados à custa de todo o equilíbrio biológico circundante. Nosso sistema estimula esse autismo; dá vitamina a ele. Explorar economicamente é o que interessa. O resto é obstáculo.

O Blairo Maggi (governador de Mato Grosso e um dos maiores produtores de soja do mundo) certa vez disse: “As pessoas precisam decidir se querem comida ou árvores”. Esse dilema é falso, pois, sem árvores, você não tem água, e, sem água, não tem comida. Cabeças assim acham que a floresta só ocupa espaço. Isso me parece pura ignorância.

Um tumor cancerígeno faz o melhor que pode em seu desespero para crescer, não sabe que é mau – e certa mentalidade do agronegócio no Brasil é um tumor que precisa ser removido.

Economia e ecologia não são coisas diferentes. É preciso esclarecer que, se a floresta for desmatada, todo um gigantesco e delicadíssimo sistema de equilíbrio desmoronará e, com ele, a atividade econômica.

Os brasileiros têm de saber que, se a água acabar na floresta, logo acabará também em outros lugares, como São Paulo ou Buenos Aires. Esse alerta é papel da ciência, do qual não podemos abdicar.


>> A biomimética

A ecologia é a economia da natureza. Seus princípios e possibilidades tecnológicas podem impulsionar incrivelmente a economia humana. A Amazônia abriga um dos maiores mananciais de alta tecnologia jamais concebidos.

No Primeiro Mundo há uma nova fronteira da engenharia chamada biomimética. Ela procura se inspirar nos processos naturais, a fim de copiá-los e implementá-los em soluções industriais. A natureza tem soluções tecnológicas sofisticadíssimas.

Um estudo da asa da borboleta morfo, aquela grandona, azul-metálico iridescente, descobriu que ela manipula a luz com um cristal orgânico, que é também um amplificador ótico. O mesmo princípio desse cristal pode ser copiado e implementado em fibras óticas para melhorar a transmissão de dados.

A indústria automobilística pesquisa o revestimento das folhas de árvores para criar novas tintas que tornem os carros autolimpantes. Se numa simples asa de borboleta há um sistema tecnológico que vale bilhões de dólares, imagine então na floresta amazônica inteira.

A Nasa, a GE, a Boeing e muitas outras empresas já estão contratando a consultoria de biólogos para se apropriar desses conhecimentos. Quando desmatamos a Amazônia, não queimamos árvores, mas sim liquidamos para sempre uma biblioteca viva de altíssima tecnologia.


>> De proa para o iceberg
Quando os governos se veem diante de um grave perigo, atuam com extrema rapidez.

Quando os japoneses atacaram Pearl Harbour, os Estados Unidos entraram na guerra imediatamente. Quando a organização criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) espalhou a violência em São Paulo, o governo paulista colocou toda a polícia nas ruas.

Quando a atual crise mundial eclodiu, no final do ano passado, uma semana depois uma série de medidas já estava sendo tomada para enfrentá-la. O estresse causado ao sistema climático terrestre é muito mais devastador, e no entanto não gera respostas práticas.

Se cerca de US$ 15 bilhões fossem investidos anualmente nos agricultores, para que conservassem os biomas, em vez de destruí-los, todas as florestas tropicais do mundo poderiam ser salvas. Em vez de desmatar, esses agricultores estariam prestando serviços ambientais, e recebendo por eles.

Zerar o desmatamento da Amazônia, hoje, significaria reduzir em 20% todas as emissões humanas de gás carbônico. Isso teria um valor imenso no mercado de cotas de carbono que vem sendo discutido internacionalmente. Mas nada acontece, e o tempo continua correndo.

O chamado Relatório Stern (coordenado pelo economista inglês Nicholas Stern, ex-vice-presidente do Banco Mundial) recomenda que 2% do PIB mundial seja investido em medidas contra o aquecimento. Se isso não for feito agora, diz o estudo, e a destruição seguir nesse ritmo, em 2020 serão necessários 30% desse mesmo PIB para que continuemos existindo como sistema econômico global.

Como nenhuma medida é tomada, estamos numa situação pior que a dos passageiros do Titanic. Estamos navegando a toda a velocidade na escuridão; só que num barquinho bem mais frágil, com a proa apontada diretamente para o iceberg.


foto capa: Divulgação INPA

ilustração: Tato Araujo

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Código Florestal, começar de novo

*Antonio Donato Nobre


Para introduzir este artigo, relato uma singular vivência que tive em meados de 2011 com estudantes de agronomia na UNEMAT em Nova Xavantina, nordeste do estado de Mato Grosso. Era uma semana científica, fui lá a convite da professora Vanessa Theodoro para apresentar minhas visões sobre desenvolvimento no campo, o papel da floresta no ciclo da água, a importância disso tudo para a agricultura e a controvérsia em torno do Código Florestal que ainda crepitava. Durante os debates, uma professora de biologia comentou sobre o ridículo de certas placas afixadas nas porteiras de fazendas na região: Proibido caçar e pescar.“ – “Ora”, exaltou-se, “caçar e pescar o que se os próprios fazendeiros acabaram com tudo?” Ao desabafo da professora seguiu-se uma sonora vaia dos alunos, a maior parte filhos de agricultores e pecuaristas.

Vi naquele pequeno conflito um microcosmo da controvérsia sobre o código florestal que engolfara a sociedade. Vi também uma oportunidade para explorar caminhos do diálogo. Ocorreu-me contar a historia daquele rei da antiguidade que não gostava de receber notícias ruins, mandando matar todo mensageiro portador de más novas; e de como o seu reinado durou pouco tempo. Perguntei aos alunos se eles, ali na zona rural, também não gostavam de más noticias, se desejariam que a mensagem da professora de biologia não lhes chegasse, que ela morresse (!).

Depois de rirem da piada, recordei-lhes que mais de 80% dos brasileiros vivem em cidades e repartem com a professora de biologia simpatia e respeito pela natureza.  Assim, a má noticia para o mundo rural era que, na opinião do povo urbano, os fazendeiros eram os principais responsáveis pela destruição da natureza. E essa noticia certamente trazia consequências adversas para os interesses de todos os que tiram seu sustento ou ganham com a produção da terra. Terminei com um apelo: não deveríamos antes dialogar, encontrar caminhos de colaboração inteligente e sinergia entre a cidade e o campo? Todos concordaram.

Em 2011, no auge das discussões em torno da polêmica alteração do código florestal pelo congresso, a comunidade cientifica propôs um dialogo para aperfeiçoar uma nova lei florestal que fosse balanceada, justa e respeitosa, no interesse do bem comum e iluminada pelo conhecimento. Como exemplo de que o diálogo suportado pelo conhecimento era possível e vantajoso, o próprio grupo de trabalho de especialistas montado conjuntamente pelas duas mais importantes organizações de ciência no País – a Sociedade Brasileiras para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) – continha representantes das contrastantes visões sobre o tema, com mais da metade do grupo vindo da EMBRAPA. No estudo exaustivo de centenas de trabalhos da literatura científica que trata do tema, o grupo constatou que agricultura e proteção ambiental tinham rico potencial de se complementar no uso e preservação inteligente da paisagem e que, portanto, não havia motivo para conflito.

Coerentes com o diálogo que haviam proposto e com os achados dos especialistas, a SBPC e ABC, ao apresentarem publicamente seu estudo, pediram um período de dois anos para uma melhor elaboração da nova lei, de tal forma que o saber cientifico pudesse ser diligentemente absorvido na atividade legislativa. Ao invés disso, e usando de subterfúgios e chantagens, o Congresso apresentou à Nação uma lei que desprezava a ciência e afrontava a vontade majoritária da população, manifesta em pesquisas de opinião.

Pressionada pela indignação popular, a Presidente impôs alguns vetos que atenderam minimamente às recomendações científicas, removendo o que de pior havia sido colocado no simulacro de lei produzido pelo Congresso. Não obstante, olhado em conjunto, mesmo com os vetos presidenciais, a nova lei florestal não melhorou os principais pontos de reinvindicação alardeados para a alteração do código de 1965, como a segurança jurídica por exemplo. E piorou muito os demais pontos, para a agricultura e para a conservação e valorização ambiental, tanto que vários estudiosos tem igualado seu efeito àquele da desregulamentação despudorada dos mercados financeiros que levou à quebra generalizada em 2008, iniciada em Wall Street.

Dois anos após sua publicação – no tempo que a ciência havia solicitado para turbinar uma lei que teria saído eficaz, séria e responsável – a nova lei Frankenstein das florestas tem o setor imobilizado, pois as dificuldades de aplicação somente aumentaram em relação à lei anterior.

Se o diálogo construtivo na busca de harmonia e sinergia em torno do código florestal pode acontecer entre agricultores e ambientalistas, como exemplificam projetos associativos do tipo do Y Ykatu Xingu para recuperação de matas ciliares; ou no âmbito econômico e intelectual, como exemplificam iniciativas empresariais e da comunidade cientifica, porque não pode ocorrer no âmbito maior e mais impactante da atividade legislativa?

Paradoxalmente, nosso Congresso não tem demonstrado compromisso com uma ação em consonância com a vontade dos eleitores. Infelizmente, parece que o problema da construção de leis em dissonância com os interesses da sociedade não é desvio ou privilegio da nossa democracia. Recentemente Paul Krugman relatou afirmação de Thomas Mann e Norman Ornstein em seu livro “It’s even worse than it looks” (“É ainda pior do que parece”) que um dos partidos no sistema norte-americano tornou-se “uma força insurgente e fora de centro — ideologicamente extremista; desdenhosa do regime social e político que nos foi legado; avessa a compromissos; resistente ao entendimento convencional dos fatos, provas e ciência; e desrespeitosa da legitimidade de sua oposição política“.

No caso do Brasil, os representantes políticos no Congresso, responsáveis pela gestação e aprovação da nova lei das florestas, pertencem a vários partidos, mas em seu conjunto seguem lógica similar a esta descrita para o  partido extremista norte-americano. Aqui o manto ideológico unificador destes políticos parece ter sido seu interesse privado, ligado à propriedade de grandes extensões de terras.

Uma certeza resta deste processo: para funcionar como deve, o Código Florestal terá que ser reconstruído. Com o conhecimento cientifico e tecnologias disponíveis hoje é possível desenvolver uma lei florestal moderna, compreensível, efetiva, justa, juridicamente incontroversa e inteligente.  Uma lei que logre ao mesmo tempo estimular vigorosamente a produção agrícola saudável, enquanto preserva as riquezas da biodiversidade e garante os indispensáveis serviços ambientais dos ecossistemas.
Para tanto basta a sociedade escolher melhor seus representantes na próxima legislatura, colocando claramente sua demanda e depois cobrando um novo Código Florestal iluminado pelo conhecimento.  Sempre é tempo para começar de novo.


*Pesquisador sênior do INPA e pesquisador visitante no Centro de Ciência do Sistema Terrestre do INPE, onde coordena o grupo de modelagem de terrenos. Participou no Grupo de Trabalho do código florestal, patrocinado pela SBPC e ABC, tendo relatado o livro produzido.