quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Fim de demarcações provocará mais conflitos, diz estudioso

Direitos indígenas

Antropólogo Beto Ricardo, um dos fundadores do Instituto Socioambiental, conta o que está por trás da mobilização ruralista e as tentativas de mudança da Constituição

por Felipe Milanez publicado 18/09/2013 11:39, última modificação 18/09/2013 12:21

beto ricardo
Lideranças Kayapó reunidas durante a vigília realizada na frente do auditório da Câmara, em Brasília, em luta por seus direitos durante a Constituinte de 1988

As próximas semanas são decisivas para o futuro do Brasil. É a reta final da atuação de uma das mais agressivas formações legislativas que já passaram por Brasília, e que ficará marcada no futuro pela grande destruição de direitos ambientais, principalmente a aprovação do Código Florestal, as constantes tentativas da Comissão de Meio Ambiente, presidida pelo senador Blairo Maggi (PR), de autorizar o plantio de cana na Amazônia, e uma série de medidas de menor impacto na mídia mas com grande força administrativa, como de restringir a atuação de órgãos ambientais como o Ibama. Também ficará marcada pela intolerância, como a postura da atual Comissão de Direitos Humanos, chefiada pelo pastor Marco Feliciano (PSC), e pelo imenso retrocesso de direitos que parte dos congressistas estão tentando impor às populações mais vulneráveis e mais excluídas no Brasil: os povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais. No ano que vem, ano eleitoral, o Congresso não terá a mesma força. Por essa razão, o trator ruralista vai tentar forçar, ao máximo, nas próximas semanas, a modificação da Constituição Federal com a PEC 215 e o PLP 227, projetos que acabam com as demarcações de terras e abrem as terras já demarcadas para a exploração.

"As mesmas elites que massacraram os índios, historicamente, querem voltar a fazê-lo agora", alerta o antropólogo Beto Ricardo. Essas elites, diz na entrevista abaixo, feita por e-mail, "foram responsáveis pela constituição de uma das sociedades mais desiguais do mundo contemporâneo, com uma das maiores concentrações fundiárias ainda existentes."

O antropólogo Beto Ricardo é um dos fundadores do Instituto Socioambiental (ISA), uma das maiores organizações de defesa dos direitos indígenas e de populações tradicionais. Atualmente, em São Paulo, o ISA fez a curadoria da mostra "Setembro Verde: Resistência Indígena", exposição em cartaz na galeria Matilha Cultural.

CartaCapital - A bancada ruralista promete uma movimentação intensa nas próximas duas semanas, principalmente depois da aprovação da Comissão que vai discutir a PEC 215. Para se defender, os índios estão indo a Brasília protestar. O que está em jogo? Como esse debate está acontecendo?

Beto Ricardo - A bancada ruralista e os seus interlocutores dentro do governo pretendem detonar os direitos constitucionais dos índios, mas não querem discutir o assunto com eles. Sabem que os índios virão a Brasília na primeira semana de outubro e talvez pretendam liquidar a fatura nessa comissão especial que foi criada, antes que os índios possam chegar à capital. Tratam de interesses inconfessáveis. Não há no mundo um caso de poder legislativo que proceda à demarcação de terras, o que é uma tarefa tipicamente executiva. Ao transferir uma competência executiva para o legislativo, a bancada ruralista pretende paralisar os processos ou retalhar territórios com base em critérios políticos, o que é flagrantemente inconstitucional e, portanto, inconfessável.
Os índios entendem que o texto constitucional vigente constitui um pacto entre o Estado brasileiro e os seus povos. Mudar esse texto, de forma expedita, nebulosa e unilateral, representaria o  rompimento desse pacto. É algo inaceitável. Os índios se perguntam, nesse momento, porque os ruralistas (que são todos grandes proprietários de terras) defendem o direito de propriedade só para eles?

CC - Uma análise do ISA mostrou diversos projetos contrários aos direitos indígenas e quem são os parlamentares por trás. Por que tantos projetos? Não bastaria um? Qual é a estratégia por trás disso?

BR - Cada parlamentar anti-indígena quer mostrar serviço para os seus financiadores de campanha, o que se faz melhor através de alguma comprovável autoria. Alguns pretendem destruir simultaneamente os direitos dos índios, dos quilombolas e dos brasileiros em geral ao meio ambiente sadio. Outros propõem destruir primeiro alguns e depois outros. Além disso, certas propostas podem se prestar melhor à chantagem contra o governo, como é o caso da PEC 215, para forçar a aprovação de outras propostas, como o PLP 227, que é de hierarquia legal inferior (e precisa de menor quórum para aprovação) mas mais lesivo aos direitos indígenas em decorrência da abrangência das suas disposições. Agora apareceu outro projeto de lei complementar no Senado, apresentado pelo senador Romero Jucá, mas que parece constituir a proposta (ainda não assumida) do próprio governo Dilma.

CC - Uma Constituição é uma lei para o futuro de um país, e esse ano completam 25 anos da atual Constituição. O que aconteceu de positivo nesse período, pensando em como era a situação em 1988 e o que a CF contribuiu para o futuro do Brasil no que toca aos índios, quilombolas, populações tradicionais, essa diversidade de grupos sociais?

BR - A Constituição é um marco da democratização e do auto reconhecimento do Brasil como um país diverso. Resgata os passivos históricos do país e acolhe a todos como parte do seu futuro, inclusive os primeiros povos da terra e os que foram traficados desde a África, assim como os direitos de todos ao meio ambiente sadio, aos recursos naturais e às suas próprias expressões culturais. Foi uma referência exemplar para outras Constituições do continente, construídas nos processos de democratização dos países vizinhos.

CC - E por que esse retrocesso contra a CF agora, o que mudou? Foi a sociedade que deixou de querer proteger os índios ou foram os ruralistas que ganharam poder e usam isso contra a sociedade?

BR - Há uma distorção da representação política, com um peso desproporcional dos ruralistas no Legislativo, para um país majoritariamente urbano e que apoia os direitos coletivos e difusos. Esse é um dos temas que uma reforma política democrática terá que enfrentar. Nos últimos 25 anos as fronteiras territoriais internas se fecharam. Houve um aumento importante na destinação das terras públicas federais, incluindo o reconhecimento de Terras Indígenas, a criação de Unidades de Conservação e outras áreas especiais, além do processo de privatização, com o aumento exponencial da agropecuária. Ruralistas brasileiros passaram a operar em terras de países vizinhos. E agora os interesses expansionistas dos ruralistas querem crescer sobre essas terras da União com destinações especiais e coletivas. Finalmente, há uma conjuntura política muito desfavorável. O atual Congresso é dirigido por forças reacionárias e a presidente está refém de uma equação de governabilidade conservadora.

CC - O que essas mudanças na Constituição significam para o futuro? Mais conflitos?

BR - O caminho para superar ou reduzir conflitos é a demarcação das terras. Paralisar demarcações significa perenizar conflitos. Rever demarcações significa reabrir conflitos já superados. Ao romper o pacto constitucional para não demarcar, o Congresso/governo deixaria  esses povos em permanente situação de conflito com a sociedade/estado nacional, como ocorria no tempo da ditadura. Agora, o prejuízo político para o país seria maior do que na época, pois não haveria como censurar a imprensa e os movimentos indígenas.

CC - O que pode acontecer, por exemplo, se uma lei por fim ao processo de demarcação de terras sendo que ainda há tantas terras a serem demarcadas?

BR - Mais mortos e feridos, mais sofrimento das partes, mais insegurança jurídica, menos produção, mais desgaste para a imagem do país. Com mais de duzentas pendências, os grupos interessados passariam a ocupar o Congresso de forma intermitente, já que os processos ficariam paralisados lá. É bom os parlamentares irem se acostumando com essas mobilizações indígenas, como a que ocorrerá no início de outubro, pois elas passariam a compor o cotidiano de trabalho deles.

CC - Quais são essas pendências territoriais na questão indígena?

BR - Hoje existem 128 Terras Indígenas em estudos de identificação,  35 Identificadas e aprovadas pela Funai sem portaria declaratória do ministro da Justiça  e 66 declaradas pelo ministro e ainda sem decreto de homologação. Ou seja 228 no total.

CC - Quais as semelhanças entre a atual movimentação contrária aos direitos indígenas e quilombolas e as mudanças de cunho ambiental na legislação, como no Código Florestal?

BR - Com a destruição do Código Florestal brasileiro, no ano passado, os proprietários de terra se desincumbiram de praticamente todas as obrigações legais relativas à função socioambiental de suas propriedades. Agora, avançam para além das suas propriedades, com o intuito de abrir espaços para a expansão da fronteira agropecuária através do grilo (ainda que legalizado) das terras públicas. Não se trata de prejudicar os índios, simplesmente, mas o Brasil como um todo: avançar sobre terras indígenas, quilombos, parques nacionais, reservas extrativistas, assentamentos da reforma agrária e o que mais houver para se patrimonializar.

CC - Qual o recado para quem não sabe o que esta em jogo nessas duas próximas semanas, mora nas grandes cidades, nunca viu um índio na vida mas simpatiza com os povos indígenas e esta preocupado? O que as pessoas podem fazer?

BR - Haverá mobilização em Brasília (especialmente na tarde de terça-feira, 01/10), em São Paulo (quarta-feira, 02/10, em frente ao MASP), em Belém (também quarta-feira, local a confirmar) e em outras cidades e regiões. Participe!

Lembre-se, também, que as mesmas elites que massacraram os índios, historicamente, e querem voltar a fazê-lo agora, foram responsáveis pela constituição de uma das sociedades mais desiguais do mundo contemporâneo, com uma das maiores concentrações fundiárias ainda existentes.

Não se iluda: por trás da destituição dos direitos indígenas, viria/virá a destituição dos seus direitos também!

Bloqueio à Rede ameaça democracia

Sérgio Abranches

A Rede no momento é mais que o partido: é um teste ácido para a democracia e a Justiça Eleitoral. Só será partido e, portanto, sujeito à contestação ou beneficiário do apoio popular, nas linhas das divisões que o eleitorado vier a assumir, após o seu registro. Seu desempenho partidário será, então, um desafio para suas lideranças, filiados e eleitores. Hoje, seu registro é um problema de todos que querem uma democracia com igualdade de condições e oportunidades e plenamente competitiva.
Não é preciso militar no campo ambiental, nem ser ambientalista para saber que Marina Silva está sofrendo um claro assédio coronelista. Há cartórios da Justiça Eleitoral usando práticas de currais eleitorais, sob controle de diferentes partidos dominantes, para barrar o registro da Rede, seu partido. Enquanto isso, partidos sem identidade ou história e apoio social conhecido, são registrados em silêncio. O Solidariedade, cuja formação, com muito menos capacidade de mobilização, embora contando com base sindical e a liderança de Paulinho da Força, que tenta impossível anonimato, tem transitado sem dificuldades similares pelo processo de registro na Justiça Eleitoral. Tudo indica que conseguirá o registro em tempo. O PEN (Partido Ecológico Nacional), já obteve o seu. O Solidariedade, mesmo antes do registro, já entrou no mercado de trocas partidárias, mostrando que em nada inovará e nada acrescentará ao sistema partidário brasileiro. O PEN é uma sigla vazia. Seu conteúdo político será definido pelas lideranças que o assumirem de fato. A Rede representa um movimento, tem uma liderança clara e transparente, que não nega, nem tenta disfarçar sua atuação na construção partidária, com base social e ampla popularidade. Todavia é a sigla com mais dificuldades de avançar na obtenção do registrado. Será por isso que enfrenta obstáculos?
Todo o procedimento autocrático de cartórios notoriamente sob a influência política de chefetes ou chefões locais, sem qualquer transparência, conta com certa distância complacente do Tribunal Superior Eleitoral. O TSE deveria resguardar a lisura, a isonomia de tratamento e a transparência do procedimento de registro, que é uma fase crítica do processo democrático pré-eleitoral. Ao examinar o recurso da Rede, deveria se indagar porque a maioria das assinaturas em apoio à formação do partido glosadas pelos cartórios é de pessoas que não votaram nas últimas eleições, seja porque não estavam obrigadas, por estarem acima da idade do voto compulsório, seja porque não puderam, por estarem abaixo da idade de votar naquela data. Foi assim também com os outros? Quantas assinaturas foram rejeitadas sem qualquer justificativa no processo de registro do PEN ou do Solidariedade? No caso da Rede foram em torno de 100 mil. Não seria o caso de rejeições sem justificativa aceitável, juridicamente fundamentada, serem revertidas liminarmente pelo TSE em assinaturas válidas?
Encontrei-me com Marina Silva recentemente em um evento público. Enquanto conversávamos, foi abordada para fotos, uma palavra, uma história, como é natural, por grande número de pessoas. A maioria acima da idade para o voto compulsório ou muito jovem para ter podido votar nas últimas eleições. Os cartórios miraram nesses setores numerosos de sua base eleitoral, para rejeitar apoiamentos. É no mínimo esquisito.
Marina Silva está confiante, mas preocupada. Tem mesmo que estar preocupada. Os anais recentes da política brasileira registram enorme retrocesso oligárquico e coronelista, sobre o qual já escrevi aqui. Só os tribunais superiores, mais comprometidos com a legalidade, a isenção e a racionalidade dos atos da Justiça podem controlar e coibir o desmando cartorial nos currais eleitorais de numerosos estados da federação. E ela deve estar confiante também, a mobilização de suas bases é visível e inegável. O sucesso na criação de diretórios estaduais e regionais supera o de muitos outros partidos, cujo processo de registro não teve a mesma transparência, nem enfrentou as mesmas dificuldades. A Rede opera à luz do dia e torna públicas as dificuldades que vem enfrentando, muitas, se não inéditas, no mínimo pouco usuais.
A maior desvantagem de Marina Silva é sua postura. Não quer usar as mesmas armas dos que conspiram contra a democracia eleitoral. “Não queremos ficar como eles, queremos manter a diferença”, ela me disse. E deve. Mas precisará usar recursos significativos de mobilização e pressão para contrapor alguma força à truculência coronelista que retornou à prática política brasileira nos últimos anos. Quem quiser saber mais sobre essas práticas, recomendo ler o clássico de Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto. Com as necessárias atualizações de contexto e tecnologia, continua um retrato fiel dessas práticas contumazes de anulação das regras eleitorais pela discricionariedade, acobertada pela falta de transparência.
Não sei se a Rede tem ou não o número de assinaturas requeridas pela lei. Suspeito que tenha e que parte das rejeições seja espúria. Determinar isso com precisão e presteza seria função prioritária do TSE. E por quê? Porque é obrigação precípua do TSE garantir a eleição mais livre, legítima, representativa e democrática possível. Uma eleição é tão mais livre, legítima, democrática e representativa, quanto maiores forem a incerteza e a competição. Eliminar uma força que já se provou relevante, ter ampla base social, lideranças com alto grau de legitimidade e popularidade e elevada participação de pessoas que exercem o voto voluntário, portanto, que tendem inercialmente para a alienação eleitoral, reduzindo o universo de votantes, significa reduzir a competição e a representatividade da eleição.
É claro que o fator Marina Silva introduz incerteza no resultado do pleito, que até a queda recente da popularidade da presidente Dilma Rousseff (que permanece abaixo dos 50%, que são o limite da zona de conforto), era dado como apontando para relativamente tranquila reeleição da presidente. Também interfere na rivalidade obsoleta entre PSDB – hoje um partido sem liderança clara e sem identidade – e PT, um partido outrora de bases sindicalistas e populares, que se peemedebizou. Tornou-se um partido com espinha dorsal gelatinosa e moldável.
Essa desarrumação do tabuleiro eleitoral promovida pela candidatura de Marina Silva, com um índice de popularidade superior ao dos candidatos com mandato, como Aécio Neves e Eduardo Campos, incomoda. Elimina certezas, desfaz arranjos predeterminados, ameaça de cancelamento contratos oportunistas mais açodados. E é isso que alimenta o cambalacho, a rejeição de assinaturas sem justificativa, de modo discricionário e autocrático. No mundo cartorial, tudo pode ser justificado: há leis, regras e procedimentos rotinizados, burocratizados. Se não há justificativa, não há base em nenhuma lei, regulamento ou rotina, logo, o TSE deveria decidir liminarmente que, dada a ausência de base, vale a decisão pró-demandante, ou seja a aceitação das assinaturas. É o princípio, por analogia, do notório in dubio pro reo.
A prevalecer o tratamento desigual para desiguais nos tribunais superiores do Brasil, a democracia brasileira sofrerá um duro golpe judiciário. Ela já está em crise. É evidente a falta de representatividade dos partidos existentes. É nítida a disfuncionalidade de muitos procedimentos legislativos. É patente a arbitrariedade de decisões ao arrepio da vontade popular, do bom senso e da justiça. São todos componentes da democracia, além da transparência e do tratamento igual para todos perante a lei. Democracia demanda uma grande dose de bom senso dos Três Poderes. Exige que a Justiça se faça com um olho na Constituição e na lei e outro no povo de quem deve emanar o poder em primeira instância, e seja cega às pressões dos poderosos.
A democracia está em cheque em todo o mundo. A política não se atualizou. A representação se estiolou. As sociedades avançaram. Temos uma ágora social, articulada pelas redes sociais, que debate, inquieta, mobiliza, mostra indignação, protesta e constrói caminhos de esperança. Mas não temos ainda a ágora política, que dê voz efetiva aos cidadãos, que reflita as demandas da ágora social. Teremos que caminhar para ela.
Essa marcha para o aprofundamento da democracia não invalida, nem preclui, os princípios elementares da democracia representativa, como os direitos individuais; a liberdade de expressão, reunião, organização e voto; a liberdade de imprensa; a competição com isonomia (igualdade de oportunidade e condições) na busca da poliarquia, em contraposição à oligarquia vigente e como antídoto máximo à autocracia.
O destino da Rede não será um evento trivial. Será um divisor de águas e um teste fundamental, ácido mesmo, para a Justiça Eleitoral. Por ele saberemos se ela está cumprindo a função de proteger a democracia e fazer valer a vontade popular ou se, por complacência ou anuência, está dando cobertura às manobras oligárquicas.
Uma vez registrada a Rede, cada um votará como quiser, em quem quiser. Mas até lá, todos que são pela democracia, são pela Rede.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

A Ruptura, por Ladislau Dowbor

Novas relações sociais começam a superar consumismo, devastação ambiental e desigualdade. Mas velho poder resiste. Será possível esperar transição tranquila?

Entrevista a Inês Castilho | Imagem: Arcangelo Ianelli, Ruptura, 1976 (detalhe deslocado)
Duas previsões opostas, porém igualmente verossímeis, são comuns quando se debatem os sentidos do século 21. Há quem mire, com otimismo, as grandes mobilizações sociais; a valorização da autonomia e das redes cidadãs não-hierárquicas; a tentativa de superar a crise da representação e reinventar a democracia; a expansão da consciência ambiental. Um olhar mais pessimista chama atenção para a ultra-concentração de riquezas; o esvaziamento da política, colonizada pelas grandes corporações (especialmente financeiras); a devastação da natureza e a procrastinação, pelos governos, das medidas que poderiam evitar grandes desastres naturais.

Coordenador do Núcleo de Estudos do Futuro (NEF) da PUC-São Paulo, o economista Ladislau Dowbor parece prestes a dar um passo além desta disjuntiva. Ao desnudar alguns dos fatores que estão por trás das incertezas contemporâneas, seus estudos recentes desenham um modelo em que riscos e de oportunidades não são estanques: estão sobrepostos no mesmo cenário. Aparece com clareza, então, uma alternativa além do pessimismo ou do otimismo. Ladislau lembra que, mais uma vez, o futuro está em aberto – e identifica os possíveis pontos da ruptura.

Esta visão de conjunto desenhou-se, com clareza, num diálogo que o economista – um dos intelectuais brasileiros mais mergulhados no debate sobre as crises globais – manteve com a pesquisadora e jornalista Inês Castilho, colaboradora de Outras Palavras. Ele ocorreu no âmbito do estudo qualitativo Política Cidadã, que o instituto Ideafix produziu para o IDS (Instituto Democracia e Sustentabilidade).

Há uma grande novidade civilizatória, explica Ladislau, por trás de boa parte do que enxergamos como “tendências positivas” da atualidade. A produção imaterial agora ocupa o centro da Economia. O valor dos produtos e serviços está cada vez menos nos materiais neles envolvidos, e mais no conhecimento, cultura e criatividade que permitiram gerá-los. Nenhum destes fatores, explica o professor, é regido pela “lógica da escassez” em que se baseia a teoria econômica convencional. Significa, em outras palavras, que sobre eles não pesa o princípio da propriedade – algo central ao capitalismo. Se divido um prato de comida, ou uma fábrica, resta-me apenas uma parte do que antes possuía. Mas ideias, inovações, talentos e afetos multiplicam-se, quando compartilhados.

Esta enorme mudança de paradigma, prossegue Ladislau, está promovendo imensas transformações. O conhecimento e a informação podem circular livremente, graças a iniciativas como a Wikipedia; a sites, blogs e redes sociais; ou movimentos como a Primavera Científica e as grandes bibliotecas abertas de universidades norte-americanas e chinesas.

Uma economia baseada no imaterial e no conhecimento exige muito menos intervenções sobre a natureza. Além disso, prossegue Ladislau, “casa muito bem com serviços sofisticados (Saúde, Educação, Cultura, Esporte, Lazer, Segurança) e com sistemas participativos, descentralizados, gestão local, políticas urbanas e redes”.

Conjugados, estes dois fatores insinuam uma utopia já em construção. Numa sociedade em que o principal fator de produção (o conhecimento) não é propriedade privada, mas bem-comum, seria perfeitamente possível redistribuir constantemente a riqueza. Imagine, por exemplo, uma renda cidadã paga a cada ser humano independentemente de trabalho, e capaz de assegurar vida digna. Associe esta garantia à possibilidade de dar sentido social a seus talentos e criatividade, participando de uma rede de prestadores de serviços públicos – educadores, profissionais de saúde, operadores do sistema de transporte coletivo, cuidadores de idosos ou produtores de audiovisual, por exemplo.

Por que, então, estas tendências não se tornam dominantes? Ladislau chama atenção para a inércia das velhas relações de poder e da economia que foi hegemônica nos séculos passados. Como desencadear políticas públicas que restrinjam o uso do carro individual e desmobilizem, portanto, boa parte da produção automobilística? De que forma desalojar, do aparelho de Estado, as construtoras de grandes obras rodoviárias e projetos faraônicos? Ainda mais difícil: como desmontar os mecanismos financeiros que capturam a riqueza social e a concentram nas mãos de 1% da sociedade, ou ainda menos?

Na encruzilhada em que estamos, qual das duas tendências prevalecerá? Ambas têm tanta força que, em diálogos mais recentes (como no lançamento do projeto Primaveras, em 24/10), Ladislau chegou a formular uma terceira hipótese. As transformações históricas exigem, muitas vezes, grandes fraturas. Foram necessárias duas guerras mundiais, e o fantasma da União Soviética, para que surgisse na Europa e América do Norte o Estado de Bem-estar social – hoje moribundo. Será necessária a catástrofe climática para que uma Economia do Bem-Comum e do Compartilhamento torne-se hegemônica? Ou seremos capazes de tramar rupturas mais humanas e suaves? O diálogo entre Ladislau Dowbor e Inês Castilho vem a seguir (A.M.)



Gostaria que o senhor falasse do seu trabalho sobre os megatrends, as grandes tendências atuais do planeta, e do Núcleo de Estudos do Futuro da PUC-SP.

Trabalho com a convergência das crises, fatores que antes eram avaliados de maneira independente, como por exemplo as tendências das populações, analisadas por demógrafos, as climáticas, por oceanógrafos e assim por diante. Somos sete bilhões de pessoas no planeta, 80 milhões a mais a cada ano, o que significa mais 220 mil pratos de comida na mesa a cada dia: qual é o impacto disso? Os impactos são cada vez mais visíveis, e exigem estudos permanentes. Estamos contaminando a água, tanto os rios, lagos e lençóis freáticos, como até o Golfo do México, o Báltico e certas regiões do Mediterrâneo, que já estão mortas. Contaminamos os solos por excesso de quimização, de agrotóxicos. As mudanças climáticas são estudadas nas suas diversas manifestações.
Não menos importante, as dimensões sociais: a pobreza, as migrações devido aos desastres climáticos, os impactos econômicos da desigualdade. Temos um bilhão de desnutridos, 1,5 bilhão sem acesso a água limpa. Estamos destruindo o planeta em proveito de uma minoria.
Há ainda o problema do caos econômico que está sendo gerado – não só o financeiro, mas o mercado mundial de commodities, a especulação com o petróleo e o descontrole nas áreas de comércio de armas, de produtos farmacêuticos, dos produtos químicos. Na ausência de governo mundial, de sistemas multilaterais de controle, gerou-se o caos especulativo.

O cenário é mais sombrio do que se imagina?

Uma pesquisa da Austrália perguntou aos cientistas por que os fatos se mostram mais graves, no geral, do que as previsões apresentadas nas várias reuniões sobre a questão ambiental – Estocolmo em 1972, Clube de Roma [conhecido pelo relatório Os Limites do Crescimento, de 1972], Eco-92 no Rio de Janeiro, Johanesburgo em 2002. Eles responderam que tentam reduzir os números para ganhar credibilidade, porque as pessoas se assustam. A cada reunião reajustam-se as cifras para cima, cresce a compreensão de que a janela de tempo de que dispomos é limitada.

E também porque existe um sistema mundial de construção de opinião pública por grandes empresas de relações públicas. Elas se especializaram em criar uma boa imagem das grandes corporações, como a da British Petroleum depois do desastre do Golfo do México; ou a campanha das empresas particulares de saúde dos EUA para tentar travar a aprovação de uma lei de saúde pública; as grandes campanhas para dizer que o fumo não gera câncer; ou ainda para convencer as populações de que limitar o acesso a armas de fogo seria uma limitação à liberdade. Vale tudo. São imensas campanhas, gerando o chamado “negacionismo”.

A campanha para dizer que não há aquecimento global faz parte dessas grandes iniciativas articuladas. Tem um belíssimo livro, Climate Cover-Up: The Crusade to Deny Global Warming, de James Hoggan. Ele explica como funcionam as campanhas de construção de opinião pública, hoje uma grande indústria.

Temos aqui na PUC-SP um pequeno Núcleo de Estudos do Futuro que trabalha sobre esses processos e também se articula com outras instituições. Na linha dos megatrends, ou macrotendências, promovemos estudos sobre dinâmicas de longo prazo, e também mudanças metodológicas como sobre o PIB, ou estudos setoriais como o livro sobre energias renováveis no Brasil. Disponibilizamos esses textos online, em regime Creative Commons.

A grande mídia estaria articulada com a construção dessas visões da realidade?

A grande mídia está visceralmente ligada a quem paga a publicidade. As grandes empresas de publicidade costumam se identificar com os interesses das grandes corporações – que são as que pagam a publicidade. Trata-se em geral de grandes empresas, as padarias não fazem propaganda nesse nível. Os setores financeiro, farmacêutico, automobilístico são típicos. O custo é colocado no produto que a gente paga. Assim, esse dinheiro financia as empresas de publicidade, uma grande indústria internacional, que por sua vez financia a mídia.

Isso se reflete na área editorial: primeiro porque a mídia nunca vai falar mal das corporações que a financiam; segundo porque se mantém presa a uma programação atrativa à média da população – já que os custos da publicidade são definidos pela quantidade de espectadores e leitores. O circuito se fecha: não se informa sobre os sistemas econômicos e os problemas e coisas desagradáveis. Em compensação, enche-se a televisão de PMs perseguindo bandidos no morro e coisas do gênero. Vai-se assim gerando uma indústria da burrice e uma indústria do medo.

Uma pesquisa dos Estados Unidos diz como aumenta o sentimento de insegurança das pessoas, independentemente do nível de criminalidade, em razão do uso da segurança pública como matéria-prima para atrair leitores ou espectadores de televisão. A solução organizacional e institucional e a forma de financiamento do processo deformam o nosso acesso à informação.

Em que medida as novas mídias tornam mais livre o acesso ao conhecimento?

Em vários níveis. A mudança importante é que o processo se inverte, a filosofia muda. As coisas circulam pela qualidade, e não porque os Mesquita, Civita, Marinho ou Frias querem que as pessoas pensem assim ou assado. As informações circulam pela demanda, e não pelo que vão render de publicidade. Um bom artigo é repassado nas redes porque as pessoas gostaram, e quando gostamos de algo a reação imediata é compartilhar esse gosto. A tendência é a intensificação da leitura definida pela demanda, e muito menos pela oferta forçada a um leitor ou telespectador passivo. Tem gente, como eu, que disponibiliza toda a sua produção científica online. A tiragem típica de uma revista científica em uma universidade é de 800 exemplares, e a leitura é mínima. A partir do meu site, centenas de textos científicos são baixados diariamente.  Como estão na internet, estão permanentemente disponíveis, não é noticiário de momento jogado no lixo, como jornal de ontem. E são utilizados em Angola e outras regiões onde não há dinheiro para comprar livros, nem disponibilidade nas bibliotecas.

Além de assegurar muito mais conhecimento na base da sociedade, o conhecimento circula em função da qualidade. Por exemplo: Joan Martínez Alier publicou na Universidade de Barcelona um artigo extremamente competente sobre os impactos ambientais da empresa americana Chevron-Texaco no Equador. Recebo esse artigo porque várias pessoas leram e disseram: “é excelente, o Ladislau precisa ler”. Leio e mando para um monte de gente, porque é excelente. Isso em nível individual. Existem hoje milhões de blogs – estou batalhando para que na PUC todos os professores tenham o seu blog e a gente construa uma comunidade online. A resistência é grande, há uma mudança cultural pela frente.

Em nível institucional, um exemplo: o MIT- Massachusetts Institute of Technology criou a partir de 2003 o OCW-Open Course Ware. Todo o trabalho dos professores, mais de dois mil cursos, está disponível online gratuitamente. No ano seguinte já a China conectou nesse sistema as suas 12 principais universidades: todo cientista chinês, ao criar um produto científico – um curso, um livro –, disponibiliza-o online no sistema e recebe um pagamento do governo. É uma solução institucional e organizacional interessante: milhões de chineses têm acesso à ciência gratuitamente, online. E quando se tem acesso à ciência se cria mais ciência, porque inspira e dá ideias. Hoje temos muitos países conectados ao OCW, várias instituições no Brasil – se você entrar no site do OCW Consortium, que articula mundialmente esse conjunto, vai ter os países e as instituições. Na China se chama CORE, China Open Resources for Education. Enquanto isso, na PUC, USP e outras universidades brasileiras ainda trabalhamos com pastas de professores e xerox de capítulos isolados. É pré-histórico.

Voltando à questão das novas mídias…

É muito mais do que mídia alternativa. É o fato de que as pessoas disponibilizam conhecimento segundo a relevância efetiva que tem para elas e buscam de maneira temática as informações de que necessitam. Isso, em outro nível, gera um sistema de newsletters que começa a concorrer efetivamente. Carta Maior é recebida por centenas de milhares de pessoas, temos o Envolverde, Mercado Ético, IHU, inúmeros grupos que redistribuem e fazem circular informação inteligente. E temos informação tradicional que se adaptou, como o The Guardian, no qual você pode encontrar informação internacional extremamente atualizada, gratuitamente, a partir do celular ou tablet, sem complicações de senhas, pagamentos, cadastros. É um serviço público a partir da esfera privada.
Os que se aferram à mídia antiga, e ao controle político e comercial da mídia, declaram guerra a estas formas abertas de acesso. Você liga o rádio e ouve: “seja ético” – o que é uma bobagem. Ser feliz sozinho é deprimente. Quando ouço uma música bonita penso: vou mandar para fulano. Criminalizar isso é patológico: o Brasil é de uma hipocrisia quase escandalosa, ao inverter a noção de ética. O prejudicado não é o músico, que só tem a lucrar com a divulgação. São os grandes intermediários, os donos da chamada indústria cultural, que não criam nada mas travam o acesso. O copyright é legítimo na forma como surgiu: uma editora que produz um livro não quer que outra editora aproveite o eventual sucesso comercial. Mas criminalizar o uso não comercial é inclusive uma burrice econômica, além da deformação do conceito de ética.

E existe agora esse fantástico avanço do tagging: o endereço e o código de cada documento. Estamos em um nível que, se quero estudar desemprego jovem em periferias metropolitanas, coloco esses termos no Google ou em qualquer outro buscador e tenho centenas de artigos sobre o que acontece nas periferias de Beijing, Xangai ou Moscou – e posso compor essas visões em uma articulação nova sobre a base do conhecimento acumulado. Fazer articulações inovadoras sobre a base de conhecimento acumulado chama-se ciência. Isso é inovar. Neste sentido, o acesso aberto online é muito mais do que a gratuidade, é a abertura e flexibilidade de cruzamento de informações e avanços científicos de qualquer parte do planeta, de qualquer área científica, que gera a presente explosão de inovações. Não à toa milhares de cientistas americanos geraram o movimento Science Spring, primavera científica, na linha da primavera árabe, e boicotam as revistas indexadas. Chega de intermediários que cobram pedágio sobre as inovações dos outros.

A inovação é um processo colaborativo: ninguém inova sozinho. Tem um livro muito bonito, Cognitive Capital, em que o autor Clay Shirky lembra que se não fossem as universidades terem desenvolvido os microprocessadores, os chips etc, um Bill Gates ainda estaria trabalhando com tubos catódicos – aqueles antigos de televisão. A inovação é uma maré que levanta todos os barcos, só que alguns querem cobrar pedágio sobre as inovações de todos.

Então, esse talvez seja o megatrend que atravessa todo o conjunto: o conhecimento se desmaterializa. Quando escrevo a letra a, preciso gastar tinta e papel; mas o digital é uma combinação de zeros e uns que pode ser feita com luz acesa ou apagada, polo magnético positivo ou negativo, intensidade maior ou menor de fótons – estou nas ondas eletromagnéticas. Instala-se um sistema de satélites geoestacionários ao redor do planeta que retransmitem esse conhecimento – e o planeta passa a ser banhado em conhecimento. Esses satélites ficam a 36 mil km de altitude, uma altitude da qual podem acompanhar exatamente o movimento da Terra – e tem-se a cobertura completa do planeta em conhecimento.

O que está acontecendo é que o conhecimento não está mais na cabeça do professor, está no ambiente, ou na nuvem. Isso significa que a educação tem que passar a ser articuladora, organizadora de conhecimento, muito mais do que lecionadora. Esse fluxo de conhecimento online leva à ruptura do fatiamento: isso é química, aquilo é física, e um não se mete no outro – isso está indo para o brejo.  As escolas, as universidades com seus diplomas estão se tornando um conjunto de estruturas desesperadamente desatualizadas, relativamente a todas essas transformações possíveis.

E qual é a escola necessária?

A escola necessária é muito menos lecionadora e muito mais articuladora de conhecimento. Seymour Pappert escreveu A Máquina das Crianças, The Children’s Machine, um livro sobre as inovações educacionais na era do computador, em 1993. Conta ali a história de uma professora de informática que, sentindo-se cada vez mais sem jeito porque os alunos estavam indo mais rápido que ela, num momento de crise tem um ataque de bom senso e diz: “meninos, vocês claramente estão indo mais rápido que eu. Mas sei organizar conhecimento e sei discutir com vocês como usar esses instrumentos. Então vou parar de dar aula e passar a ser uma assessora organizacional para vocês construírem novos conhecimentos através desse instrumento.” Isso é a nova escola. Se você lê José Pacheco, da Escola da Ponte, a visão é essa.

É uma escola-referência?

É uma escola-referência. Pegue os Recursos Educacionais Abertos (REA), ou o Projeto Folhas, da secretaria de Educação do estado do Paraná: não tem mais livros-textos na aula. Eles selecionaram professores voluntários, dispostos a elaborar textos com o que acham que as crianças querem aprender, pensando junto com elas. Deram ano sabático para eles poderem se dedicar, e cada texto é elaborado por esses professores junto com os alunos, numa produção online. Eles contam com núcleos universitários de apoio para as dúvidas técnicas, e triangulam isso permanentemente com a secretaria de Educação. Vão assim construindo de forma colaborativa, e incluindo os eixos de interesse dos alunos. Quando aparece uma bobagem, é corrigida na hora: não dá escândalo, a Folha de São Paulo não pode fazer uso político de um erro no livro-texto. E mais, quando surge uma nova pesquisa o professor recebe uma notinha no e-mail, dizendo: “atualize tal coisa no livro.” Os professores vivem a educação, participam do que estão ensinando. E o sentimento do aluno é de que está trabalhando online, com coisas relevantes. Ele aprende a trabalhar por problema. Um texto sobre água, por exemplo: água é vida, é lazer, água é meio de transporte, irrigação, cultura e dinâmica ambiental. Podemos, sim, ir além das disciplinas, do conhecimento fatiado.

É uma revolução, e está acontecendo – sempre com muita resistência, da mesma maneira que na área comercial as grandes corporações resistem. Estou batalhando aqui na PUC para adotarem o OCW – o que seria óbvio. É patético que ainda tenhamos que tirar xerox de um capítulo, e não do livro inteiro, porque não pode. Para o aluno, que tem uma bagagem pequena, é ruim ler um capítulo isolado. Assim trabalhamos, em pleno século XXI, quando outros países já estão em outra fase: nesses poucos anos, só no OCW-MIT, mais de 50 milhões de textos foram baixados. Imagine a contribuição ao conhecimento planetário. E os professores passaram a se sentir mais úteis, sem esperar “pontinhos” por publicação.

Isso configura uma revolução na economia?

O que acontece é que todo o referencial está mudando. Por exemplo: o que estou falando para você não tira nada de mim, e pode acrescentar algo de valor a você. Mais: falando, eu penso, “não tinha percebido tal coisa”. E você vai recriar o que eu disser. Essa máquina aqui [um gravador digital] deve ter 3% de matéria-prima e trabalho físico, 97% é conhecimento incorporado – design, pesquisa etc. No mundo, hoje, 3/4 do valor dos produtos é conhecimento incorporado. Quanto mais se generaliza conhecimento, mais se enriquece a humanidade. Pense no conceito dos economistas – de que economia é a alocação ótima de recursos escassos. Como perceber a economia quando o recurso deixa de ser escasso, e além disso pode ser retransmitido livremente, instantaneamente, sem custos, pois as ondas eletromagnéticas são da natureza? E com custos de transação praticamente nulos? E não é uma inundação, o conhecimento pode circular pelo planeta e ser acessado de maneira inteligente por meio de algoritmos que permitem foco e seleção precisos. Esse é o tamanho da revolução da chamada economia do conhecimento. O conhecimento é um fator de produção cujo consumo não reduz o estoque.

E começamos a assistir ao uso das redes sociais para a mobilização política. Como vê isso?

O pano de fundo mais amplo para toda essa mobilização, além do twitter e das manifestações, é que os pobres hoje não são mais como os pobres de antigamente. Quando de meu primeiro trabalho, como jornalista do Jornal do Comércio do Recife, na área rural, pobre era sim, sinhô pra tudo, resignado, analfabeto. Hoje ninguém mais está dizendo sim, sinhô.

Passando por África, bem no interior, encontrei um descalço, indo a pé, com seu turbante. Tinha havido uma ruptura de chuvas – uma seca, falta de água para a colheita seguinte. Perguntei: “como vocês vão fazer com a safra?” Ele olhou para mim com tranquilidade e disse: “quero saber o que vocês vão fazer.” Viu meu carro, que sou branco, da capital… São muitos os informados, sabem que podem ter acesso a uma saúde decente para os filhos, direitos de cidadania. É um despertar prodigioso.

Há algumas cifras de referência que são úteis: somos sete bilhões de habitantes no planeta, dos quais quatro bilhões são “pessoas que não têm acesso aos benefícios da globalização”– como diz o Banco Mundial, educadamente, pois não gosta de dizer “pobres”. Um bilhão dessas pessoas passa fome, e 180 milhões são crianças. Destas, entre 10 e 11 milhões são reduzidas à morte, todo ano. São dados recentes da Unicef e da FAO. Não estamos matando, estamos deixando morrer, isso porque temos os recursos, os conhecimentos, as tecnologias.

Estamos vendo morrer 12 milhões de pessoas no Chifre da África, de AIDS já morreram 25 milhões – e estamos discutindo o valor das patentes. É insustentável. Em paralelo, há facilidade de adquirir informações que mudam a atitude das pessoas. Esses 2/3 da população mundial reduzidos à miséria estão em grande parte nas cidades, não mais isolados no campo. No Brasil, 96% dos domicílios têm tevê. Celular, então…

Mesmo considerando que a tevê informa mal, deforma?

Sem dúvida informa mal – mas as coisas chegam, circulam. Digamos que, com essa expansão do acesso ao conhecimento e acesso inteligente das mensagens, as pessoas podem traduzir o seu desespero individual na compreensão de que se trata de um processo social e não de sua própria incapacidade. Os pobres estão começando a compreender. Um padre latino-americano me falou certa vez: “se ajudo um pobre, dizem que sou santo; se pergunto por que razão ele é pobre, dizem que sou comunista.” Achei interessante…

De um lado temos esse imenso desafio ambiental – as situações críticas que estamos provocando; e de outro o desafio social – que está explodindo: até os índios Aymara estão se mobilizando. E tem um terceiro eixo, o caos financeiro que estão gerando, a desorganização do sistema produtivo. São tão gananciosos que querem fazer dinheiro com dinheiro, não sabem sequer financiar de maneira inteligente o processo produtivo, para ser remunerados com ele.

Estamos começando a entender as sinergias. Por exemplo, o permafrost da Sibéria, aquele gelo acumulado há séculos sobre toda a Sibéria, que não derretia no verão, só em parte, mas se mantinha congelado e branco, e portando refletia o calor – derreteu com o aquecimento global. São milhões de quilômetros quadrados hoje escuros, que absorvem, a invés de refletir o calor – gera-se um feedback do processo de aquecimento. Começamos a entender como interagem os diversos processos. É um exemplo a mais. Hoje entendemos a seriedade das situações, porque tudo está sendo estudado, e porque nos últimos anos e nas últimas décadas se fechou a fronteira estatística do planeta. Sabemos o que está acontecendo.

Como assim?

Não há mais “buraco negro” – regiões da África em que não se sabia quanta população há, por exemplo. Está tudo mapeado. Com o cruzamento dessas informações a gente consegue entender: estamos destruindo a água, que já é chamada de ouro azul. Em 200 anos teremos liquidado com o petróleo, que se acumulou em 200 milhões de anos. O petróleo fácil acaba nos próximos 20 anos. Liquidar com o petróleo, uma preciosidade que deve servir às gerações futuras da humanidade, para andar de moto e jet-ski ou ficar parado nas avenidas… haja bom senso!

Temos a liquidação da cobertura florestal do planeta – agora o eixo principal do desmatamento está na Indonésia. O Brasil conseguiu uma vitória fantástica, com Marina Silva e depois com Carlos Minc, que foi reduzir de 28 mil km² para 7 mil km² o desmatamento anual da Amazônia. Continua sendo um desastre, mas foi uma vitória. O governo Lula foi o primeiro a não colocar ministros do meio ambiente decorativos.

Pegando segmento por segmento, a gente constata os desastres, como por exemplo o da destruição da biodiversidade. Passamos a entender que as cadeias alimentares são todas conectadas, uma colabora com a outra, uma vive da outra – e fomos cortando uma por uma. No plano dos oceanos, como estamos emitindo mais dióxido de carbono, os oceanos absorvem mais e se tornam mais ácidos; com isso, fica reduzida a capacidade de formação óssea de tudo o que exige cálcio, como as conchas e os corais.

Tem um livro belíssimo do Fred Pearce, When Rivers Run Dry, Quando os ricos secam, em que ele conversa com grandes agricultores indianos. Eles têm bombas que puxam 12 metros cúbicos de água por hora, a 350 metros de profundidade, muito mais que a capacidade de reposição do sistema de chuvas local; o argumento é: “se não for eu, vai ser outro”. A pedido do governo africano, fui falar com uma empresa de pesca que estava exaurindo os recursos pesqueiros da África Ocidental. O argumento foi o mesmo: “meu amigo, tenho 100 milhões de dólares empatados em pesca industrial, tenho que recuperar o meu, e, francamente, se não for eu…”. Há uma corrida para ver quem chega primeiro, antes que acabe. Em nome do liberalismo econômico.

Será possível construir uma governança global para cuidar do planeta?

Estamos frente a uma mudança necessária de governança, o processo decisório tem que mudar. Globalmente. Na sua hierarquia completa, nos seus problemas planetários, cada problema planetário sendo enfrentado em cada cidade.

Em São Paulo andamos de carro a 14 km/h, em primeira e segunda. O paulistano perde 2h40m por dia em deslocamento no trânsito. O transporte individual sai imensamente caro, polui e as pessoas não se movem. Estive agora na China: Xangai tem 420 km de metrô. O trajeto diário escola-trabalho-casa, todo mundo no mesmo horário, é chutado para debaixo da terra, por eletricidade, que não polui. Estive em Beijin, Xangai e outras cidades, vi poucas motos movidas a gasolina: é tudo elétrico. Aqui no Brasil essa moto não entra por interesses das empresas tradicionais, japonesas e outras. O equivalente de uma Biz, só que elétrica, custa na China  350 reais. Um motorzinho elétrico, uma bateria, o resto é lataria e borracha. E não polui. A moto no nosso trânsito emite o equivalente a 6 carros.

O grande vetor dessa mudança necessária é o acesso ao conhecimento e à informação. Por que as pessoas aceitam pagar 160% de juros do cheque especial ao ano, no Santander? Porque elas não sabem que na Espanha o mesmo cheque especial, até 5 mil euros, custa 0% por 6 meses. As pessoas ignoram, por exemplo, que quando você compra vitamina C numa caixinha, o conteúdo efetivo de ácido ascórbico custou à empresa apenas três centavos. O resto é embalagem, publicidade – “uma tampinha que faz ‘poc’” – daí que apenas 1/3 da população tenham acesso à vitamina C.

A base produtiva dos países está mudando. Antigamente eram bens essencialmente materiais, hoje o principal eixo de atividade econômica não é indústria, não é agricultura – atividades por excelência do século XX. A gente sabe o que é agricultura e indústria, todo o resto chamamos de serviços, e dentro de serviços o que se vai encontrar são as políticas sociais: saúde, educação, cultura, segurança, habitação, esporte, lazer. Que são densos em mão de obra, em interações pessoais, e portanto densos em organização social.

O maior setor econômico dos Estados Unidos, hoje, 17% do PIB, é saúde. As atividades estão se deslocando para essa área, que funciona de maneira diferente: não se põe saúde em container, não tem concorrência da China. O IPad é feito na China, mas a educação, não.

Quais são os sistemas que funcionam no Brasil?  Pastoral da Criança, Programa de Saúde da Família – porque política social é contato, é professor com aluno, são sistemas em rede, horizontais. Há um deslocamento planetário dos empregos, das atividades econômicas para os chamados bens de valor imaterial, e o imaterial casa muito bem com sistemas participativos descentralizados, gestão local, políticas urbanas, sistemas em rede. Isso significa que os movimentos sociais têm como crescer, não porque a gente é de esquerda e gosta de Ong, mas porque funciona. Não há uma organização no Brasil que se compare, em competitividade, com a Pastoral da Criança: com R$ 1,70 por criança/mês, atingiram 50% de redução de mortalidade infantil, 80% de redução de hospitalizações. Os planos de saúde comerciais ficam indignados com a eficiência do terceiro setor, os velhos interesses buscam criminalizar os movimentos sociais.

Não podemos olhar o século XXI com o olhar do século XX. Há um deslocamento intersetorial de onde estão os empregos e as atividades. O que leva à sociedade em rede, a Manuel Castells, a todas essas compreensões da reestruturação da sociedade.

E isso potencializa a mobilização política?

Isso gera uma base econômica para a sociedade articulada. Quando se produz tênis Nike, vai para fábrica, volta para casa e não organiza nada; despacha por conteiner, vende nas lojas, nos shoppings. Quando faz sistemas sociais, você articula a sociedade e a torna forte. Isso gera uma apropriação da política pela base da sociedade.

Uma coisa interessante: a Suécia, que é muito adiantada nesses processos, tem uma taxa de impostos elevada, de 60% – a nossa é baixa, de 35%. No entanto, de toda a massa de dinheiro dos impostos, de recurso público, 72% são administrados em nível local, diretamente com as comunidades. É uma política apropriada pela base, tem um aprofundamento da democracia, como em Boaventura dos Santos.

Gostaria de recomendar o meu pequeno livro Poder Local, da Brasiliense, e meu estudo As políticas sociais e transformação da sociedade, que ajudam a entender essa dinâmica. Está tudo no meu blog. No ensaio Democracia Econômica, também online, faço um painel de 20 eixos de grandes transformações. É um livro pequeno. Aliás, fiz um grande, A Reprodução social, e aí os alunos disseram: “professor, livro que fica de pé?!”. Nunca tinha pensado nesse critério.

O senhor é otimista em relação ao futuro?

Sou um pessimista ativo, digamos, faço tudo para as coisas melhorarem. Não acredito que haja pessoas boas e pessoas más – todos temos dimensões boas e más. Trata-se de criar instituições que tirem o melhor de nós. Há espaço para isso: estou vendo a multiplicação das organizações da sociedade civil, o surgimento da mídia alternativa, a conscientização sobre os desafios planetários, a indignação com a desigualdade, o funcionamento das políticas redistributivas. Só que uma coisa são as dinâmicas que melhoram os processos, e outra é a janela de tempo que temos – o petróleo está acabando, os mares estão contaminados, os rios nem se fala, as florestas estão acabando, a biodiversidade vai para o brejo e o clima está explodindo.

Haverá tempo? 

É complicado, porque são processos de inércia muito profunda. Tome a imagem do Titanic: o cara vê o iceberg a 2 km, que é longe; mas 2 km para o Titanic já era, porque até ele começar a mudar de rumo, não dá tempo. Se começarmos a mudar um conjunto de emissões de dióxido de carbono hoje, até 2040 não mudou nada, as condições já estão dadas.

O Lester Brown, que é o melhor estudioso desses problemas, trabalha com a visão de que não sabemos onde vai se dar a ruptura. Como estão se exaurindo os aquíferos, muitos países, particularmente no Oriente Médio, já não têm mais grãos, porque não têm água para os cultivos, e então se tornaram importadores. Conforme vão se acelerando as contaminações e a liquidação dos aquíferos, haverá uma bolha alimentar. Já existe no planeta um bilhão de pessoas passando fome, e pode haver uma explosão muito mais violenta. Há necessidade de mudar o paradigma energético: estamos investindo mais em aeroportos, enquanto a Europa já saiu do aeroporto e está indo para os trens, está reduzindo a velocidade.

É difícil saber onde vai se gerar uma ruptura sistêmica e quais as conexões intersistêmicas dessas rupturas. A atitude é a da chamada precaução: tudo o que gera uma sociedade mais informada é legal, tudo o que articula, organiza a sociedade e lhe dá instrumentos de controle é bom, tudo que tira as patas das corporações de dentro do governo é bom. O que conscientiza, o que gera sistemas educacionais, o que gera um sistema aberto de acesso ao conhecimento, reduz patentes e copyright – são coisas que efetivamente podem funcionar, melhoram a resiliência do conjunto.

Há duas forças básicas motivadoras: o medo e o amor...


"... Quando estamos com medo, nos retraímos da vida. Quando estamos em amor, nos abrimos com paixão, entusiasmo e aceitação para tudo que a vida tem a oferecer. Precisamos em primeiro lugar aprender a amar a nós mesmos, em toda a nossa glória imperfeições. Se não conseguirmos amar a nós mesmosnão poderemos abrir totalmente nossa capacidade de amar aos outros nem nosso potencial para criar. A evolução e todas as esperanças para um mundo melhor repousam na visão destemida e de coração aberto das pessoas que abraçam vida".

  John Lennon